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A Invasão Russa na Ucrânia: Razões, Tempo e Espaço – Parte 2

            Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Na primeira parte do texto, busquei debater duas possibilidades de análise para a decisão russa de invadir a Ucrânia. Por um lado, existe a narrativa de que Putin possui um projeto expansionista e imperialista e buscaria anexar o território ucraniano, parcial ou totalmente. Por outro, há a perspectiva de que a decisão russa de invadir o país vizinho tenha se dado a partir da escolha em fazer prevalecer seus interesses político-securitários a partir do uso do aparato militar. Nessa segunda parte, abordarei a reação pública, política e midiática à guerra.

A reação à guerra: o espanto e a percepção do tempo

Tentativas de derrubada de governo têm sido prática frequente dos últimos 30 anos, capitaneadas sobretudo por operações estadunidenses e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). A exemplo, destacam-se sobretudo as guerras do Iraque, Líbia e Síria. No entanto, um grande diferencial destas invasões em relação à promovida pela Rússia na Ucrânia perpassa, sobretudo, fatores geográficos e imagéticos. De fato, EUA e OTAN não poderiam ter pretensões de anexar formalmente territórios que não são contíguos aos seus, o que dota suas operações de derrubadas de governo de uma roupagem mais sutil e que é justificada a partir da narrativa da democracia-liberal que liberta os povos da opressão de governos ditatoriais.

Dessa forma, as invasões aos países do Oriente Médio – para além da questão do preconceito que acaba por justificá-las aos olhos de parcela da opinião pública e da naturalização de conflitos nessas regiões nas grandes mídias – parecem menos agressivas pelo simples fato de não remeterem ao caráter mais “clássico” das grandes guerras do século XX e carregarem a roupagem das chamadas “novas guerras” características a partir dos anos 1990. Já no contexto ucraniano, a imagem de tanques russos invadindo por terra a fronteira do país vizinho, evoca a percepção de uma guerra de anexação em solo europeu e mobiliza a reação que expressa o espanto pela falsa sensação de que o mundo não é palco de inúmeras outras guerras. Por esse motivo, a invasão russa à Ucrânia traz um caráter de antiguidade à guerra que parece desconexa com as concepções contemporâneas dos conflitos armados.

À luz desse cenário, parece mais provável que o espanto gerado pela invasão russa decorra do contexto geográfico e histórico no qual a guerra da Ucrânia se insere do que na decisão per se de Vladimir Putin de invadir o território ucraniano. Isso se dá, sobretudo, a partir de elementos que influenciam na percepção do desenvolvimento da guerra e na expectativa que se gera entre o público em relação ao conflito. Em primeiro lugar, pode-se alegar que a guerra      na Ucrânia é a primeira na história acompanhada minuto a minuto por todos. Vale ressaltar que a guerra entre Azerbaijão e Armênia pela região de Nagorno-Karabakh, em 2020, também ganhou espaço nas mídias sociais, com impactos na guerra de informação sobre o conflito. No entanto, este se deu em menor escala e foi menos abordado pela mídia. Ainda que tenhamos a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991, como primeiro exemplo de um conflito televisionado e outros exemplos de grande interesse midiático na última década, como a Guerra Civil da Síria e a expansão territorial pelo autoproclamado Estado Islâmico, a invasão russa à Ucrânia se trata do primeiro embate no qual há análises feitas de forma quase instantânea, que se avolumam na televisão e nas mídias sociais.

Há alguns aspectos intrínsecos a este conflito que podem ser levantados para explicação do grande interesse público na guerra da Ucrânia. Em primeiro lugar, a Rússia é, junto com os EUA, a principal potência nuclear do mundo e possui um dos maiores exércitos a nível mundial. Decorrente disso, as possibilidades de transbordamento do conflito para a Europa e o risco de um confronto entre Rússia e OTAN se tornam o principal elemento de preocupação e interesse das análises. Por outro lado, há também os impactos econômicos na cadeia global de suprimentos alimentícios e energéticos que aumentam a expectativa sobre os desdobramentos da guerra. Não obstante, destaco o papel exercido pelas mídias sociais e das tecnologias de comunicação que, em 2022, estão muito mais consolidadas no cotidiano das pessoas do que na década passada. Nesse sentido, possibilita      ao mundo se relacionar com os acontecimentos em solo ucraniano de forma quase instantânea. Disto, se pode afirmar que a nossa percepção sobre o tempo da guerra e suas evoluções também foi alterada. Devido à enorme quantidade de informações que encontramos todos os dias, temos a impressão de se tratar de um conflito que já tem longa duração, quando na verdade estamos, no momento da escrita, há um mês observando-o.

Além disso, a forma como temos visualizado o desenvolvimento da guerra faz com que as análises sobre os avanços táticos e estratégicos russos possam ser distorcidas. No dia em que forças russas invadiram o país vizinho, destacava-se a narrativa de que tropas russas conseguiriam uma rápida tomada da capital Kiev e, em sequência, haveria uma rendição instantânea do governo e do povo ucraniano. Nessa linha, esperava-se, também, que as forças russas teriam um avanço muito maior em menos tempo em solo ucraniano. Por esse motivo, quando passados apenas alguns dias e observado a aparente lentidão do avanço russo, ganharam espaço análises segundo as quais a estratégia de Vladimir Putin havia falhado, uma vez que o presidente russo teria subestimado as capacidades de resistência do exército ucraniano.

Embora a aparente lentidão do avanço russo em território ucraniano, marcado por baixas humanas e de armamentos que, alegadamente, seriam maiores do que se esperava, é fato que as tropas russas continuam em progresso e garantindo avanços estratégicos dentro da Ucrânia, sem demonstrações de que pretendem recuar. Segundo o mapa de monitoramento do The New York Times, Moscou já tem o domínio de grande parte do Sul Ucraniano – como visto pela conquista da cidade de Kherson e Melitopol – assegurando grande parte do acesso ao Mar Negro; intensos ataques às cidades de Mariupol, e já cerca Kiev, ainda que sem maiores avanços ao centro da capital ucraniana. No cenário em que as negociações não avançam, em razão da relutância russa em flexibilizar suas reivindicações, em conjunto com a resistência ucraniana, a guerra tende a se estender. Nesse cenário, ambas as forças – de ataque e defesa – buscarão vencer o inimigo pela exaustão. No campo militar, a Rússia parece ter a vantagem nessa perspectiva. Do outro lado, a Ucrânia busca, com apoio sobretudo europeu e estadunidense, sufocar a viabilidade política e econômica da manutenção da guerra pela Rússia, ao mesmo tempo em que prolonga o conflito a partir de uma estratégia defensiva.

Contudo, não há ainda como afirmar a real estratégia pensada por Putin e os generais russos a respeito da invasão à Ucrânia. Tendo em mente o contexto que levou à guerra e os meses que os soldados russos estiveram estacionados próximos à fronteira com a Ucrânia, a hipótese de que o ataque tenha ocorrido às pressas, de forma mal planejada, parece pouco provável. Além disso, desde 2014 o exército ucraniano vem se fortalecendo com equipamentos e treinamentos providos pelos EUA e outros membros da OTAN. Nesse sentido, é de se imaginar que o Ministério da Defesa da Rússia e Vladimir Putin, munido de serviços de inteligência russos, tivessem ciência de que a capacidade de resistência ucraniana não deveria ser menosprezada.

Não deve ser descartada, no entanto, a hipótese de que os sucessos militares anteriores na Geórgia, Crimeia e na Síria, possam ter elevado a confiança de Putin em seu aparato militar de forma a contribuir para a tomada de decisão na expectativa de um menor poder de resistência militar, política e econômica da Ucrânia e do Ocidente. Assim, o próprio fato de que haja uma percepção de frustração dos planos russos e da bravura da resistência ucraniana, pode alterar os rumos da guerra e fortalecer ainda mais o moral do defensor e descreditar o aparato militar russo, instrumento cada vez mais utilizado por Moscou para reivindicar o status de grande potência da Rússia e fazer prevalecer seus interesses. Talvez revisitar literaturas que abordam a psicologia política como lente de análise, buscando incorporar não somente a dimensão externa aos Estados, mas também os objetivos, crenças e percepções dos indivíduos tomadores de decisão, possa contribuir para uma compreensão mais holística dos incentivos específicos que impulsionaram Vladimir Putin a seguir com a invasão. Como exemplo, vale citar as obras de Robert Jervis (2017): How Statesmen Think: Psychology of International Relations e Perception and Misperception in International Politics.

Em suma, a guerra na Ucrânia traz elementos que contribuem para o quase fascínio humano em compreender a guerra.  As análises cotidianamente difundidas pela mídia podem mudar a maneira como o público percebe e cria expectativas acerca dos desdobramentos. Ao passo que o conflito se desenrola, buscamos compreendê-lo enquanto esperamos que uma resolução rápida possa salvar um maior número de vidas. Para depois do conflito, surgirão perguntas que também trarão consigo um grau de complexidade para as análises que buscarão respondê-las. Para citar pelo menos algumas: qual o relacionamento do governo de Vladimir Putin com a Europa e os EUA no pós-conflito? Quem financiará a reconstrução da Ucrânia? Quais os desdobramentos para a coesão interna de um país que já se via dividido desde 2013? Quais os impactos da Guerra para a configuração de forças no sistema internacional, e para as instituições como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a OTAN e a União Europeia? Qual será o impacto no âmbito interno da União Europeia e dos partidos locais em termos de imigração e dependência energética em relação à Rússia? No momento atual, nos resta estar atentos aos impactos locais, regionais e globais do conflito.

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisa sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país, temas analisados em sua dissertação de mestrado. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA NETO, Getúlio Alves; MAKIO, Danielle Amaral. Guerra Civil no Leste da Ucrânia. Dossiê de Conflitos Contemporâneos, v. 1, n. 1, p. 55-60. Observatório de Conflitos Contemporâneos. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2020/10/Ucr%C3%A2nia_Observat%C3%B3rio-de-Confltos_-Dossi%C3%AA-de-Conflitos-Cont..-v.1-n.-1-2020-58-63.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022.

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JERVIS, Robert. Perceptions and Misperceptions in International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

JERVIS, Robert. How Statesmen Think: The Psychology of International Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

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PUTIN reconhece independência de regiões separatistas da Ucrânia e prevê envio  de tropas para ‘manutenção da paz’. BBC NEWS. 21 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60471555. Acesso em: 22 mar. 2022.

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Imagem: Armas russas destruídas pelas Forças Armadas da Ucrânia. Por Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/Wikimmedia Commons.

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