Kimberly Alves Digolin*
No dia 24 de fevereiro de 2022, um vídeo do presidente Vladimir Putin anunciou que a Rússia conduziria uma “operação militar especial” na região leste da Ucrânia, dando início a um conflito que já resultou em mais de 5,5 milhões de refugiados. Não bastasse a magnitude do ato em si, é importante também ressaltar os detalhes que envolveram esse anúncio. No momento em que a gravação de Putin era divulgada, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) – do qual a Rússia é membro permanente – reunia-se justamente com o propósito de buscar uma solução diplomática para as tensões bilaterais. Em outras palavras, o anúncio de Putin desferiu um golpe duplo: por um lado, à soberania da Ucrânia; por outro, à credibilidade da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse cenário nos leva à questão norteadora do presente texto: quais as limitações da atuação da ONU no conflito russo-ucraniano?
Criada ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o principal objetivo da ONU é garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Para isso, entre outros órgãos e departamentos subsidiários, a estrutura da organização inclui: um órgão deliberativo composto por todos os Estados membros, intitulado Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU); o Conselho de Segurança, único órgão com poder decisório formado por cinco membros permanentes com poder de veto, e dez membros não-permanentes com mandatos bianuais[1]; a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judiciário da Organização composto por quinze juízes; e o Secretariado, que presta serviço aos demais órgãos das Nações Unidas, administrando as políticas e os programas elaborados.
Trata-se, portanto, de uma organização intergovenamental de adesão voluntária que “representa o ápice do processo de institucionalização dos mecanismos de [cooperação e] estabilização do sistema internacional” (HERZ; HOFFMAN, 2004, p. 29), uma vez que possui 193 Estados membros e que está no centro dos debates internacionais sobre temas como proliferação nuclear, direitos humanos, desenvolvimento sustentável, entre outros. Porém, a despeito dessa estrutura tão consolidada e de sua legitimidade perante a sociedade internacional, o conflito entre Rússia e Ucrânia deixou à mostra diversas limitações.
Após a invasão russa da Ucrânia, a primeira ação da ONU foi convocar uma reunião emergencial do Conselho de Segurança no dia 25 de fevereiro para debater a questão. Contudo, o rascunho de resolução condenando a invasão da Ucrânia foi vetado pela Rússia, contando com abstenções de China, Emirados Árabes Unidos e Índia. Em seguida, utilizando um recurso intitulado “Uniting for Peace”[2] (“Unindo-se pela Paz”, em tradução livre), o Conselho de Segurança convocou uma reunião extraordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas para debater o conflito, a qual, no dia 2 de março, aprovou uma resolução conjunta condenando a investida russa com 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções.
No âmbito da Corte Internacional de Justiça, foi divulgado no dia 16 de março o resultado da investigação sobre os possíveis crimes de guerra no conflito entre Rússia e Ucrânia. Ao apontar que não haveria provas de que a Ucrânia tivesse cometido ou planejado ataques que pudessem ser considerados crimes contra a humanidade, como argumentou a Rússia para legitimar a invasão, o parecer incluiu a decisão que o governo russo deveria suspender imediatamente suas ações militares em território ucraniano. O documento teve 13 votos favoráveis e 2 contrários, da Rússia e da China.
Uma nova resolução foi adotada pela AGNU no dia 24 de março, culpando a Rússia pela crise humanitária em curso. O documento foi elaborado pela Ucrânia e seus aliados e recebeu 140 votos a favor, 5 votos contra e 38 abstenções. Duas semanas depois, a partir de uma proposta estadunidense votada durante reunião da AGNU no dia 7 de abril, a Rússia foi expulsa do Conselho de Direitos Humanos da ONU[3] com 93 votos a favor, 24 contra e 58 abstenções. O único antecedente de um país expulso de algum Conselho da ONU ocorreu em 2011, envolvendo a Líbia. Além disso, destacam-se as viagens do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, para Kiev e para Moscou – onde debateu propostas para a evacuação segura de civis e a entrega de ajuda humanitária.
Essa breve linha do tempo com as ações adotadas demonstra duas principais limitações em torno da atuação da ONU. A primeira diz respeito aos entraves que a Organização encontra ao se deparar com conflitos que envolvem as grandes potências com assento permanente no CSNU. E a segunda limitação, que está intrinsecamente associada à primeira, diz respeito à forma como interesses individuais de alguns Estados membros acabam por dificultar a atuação da Organização, tornando-a parcial e controversa. Em outras palavras, se o século XXI foi marcado por diversos conflitos – tão ou ainda mais violentos –, por que eles não foram alvo de tamanha mobilização onusiana como o caso da Ucrânia?
Ao ser criada com o objetivo de evitar uma nova guerra de grandes escalas, a estrutura da ONU foi moldada em torno do princípio de segurança coletiva e contenção mútua. Para isso, as grandes potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial e, portanto, com capacidade para iniciar novos conflitos de escala global foram alocadas em um órgão decisório com poder de veto, de modo que fossem capazes de impedir uma eventual tentativa de desestabilização da ordem internacional. Entretanto, é essa mesma estrutura que dificulta o debate coletivo em temas que envolvem de modo mais direto os interesses desses cinco países.
Para exemplificar esse argumento, basta resgatarmos o veto da Rússia na primeira reunião extraordinária do CSNU que debateu a invasão da Ucrânia, seu não-comparecimento à audiência da CIJ ou mesmo a ameaça que Moscou realizou ao afirmar que os países que votassem a favor de sua expulsão do Conselho de Direitos Humanos da ONU sofreriam retaliações – o que, inclusive, pode nos ajudar a compreender o alto número de abstenções em torno dessa votação na AGNU. Em contraponto, situar o conflito russo-ucraniano em um quadro mais amplo de disputa hegemônica nos ajuda a compreender de modo mais contundente os interesses estadunidenses e, por consequência, dos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Essas limitações suscitam críticas em torno da eficácia da ONU em garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Entre elas, podemos apontar que a própria estrutura da Organização representa uma cristalização da divisão de poder internacional, reforçando seu caráter excludente. A falta de representatividade no CSNU é alvo de contestações e envolve demandas frequentes por uma reforma que inclua membros permanentes da América Latina e da África, por exemplo. Além disso, a padronização de condutas a serem adotadas pelos países é associada a uma espécie de “ocidentalização da política internacional”, a qual mobiliza os mecanismos da ONU em casos que interessam aos Estados ocidentais – especialmente Estados Unidos e países da Europa –, mas dificulta o acionamento desses mesmos mecanismos nos casos em que a narrativa de violação aos direitos humanos vai contra os interesses dessas potências.
Nesse sentido, o aparato da ONU “pode ser interpretado tanto como uma ferramenta para a construção de uma sociedade mundial mais justa, quanto como um instrumento que legitima e justifica as assimetrias do sistema internacional” (REIS, 2006, p. 41). Como exemplo dessa instrumentalização dos mecanismos por parte das grandes potências, podemos citar as violações aos direitos humanos perpetradas pela Arábia Saudita – parceiro dos Estados Unidos –, mas que não foram objeto de tanta atenção internacional ou mesmo de resoluções mais taxativas condenando as ações do governo saudita.
No entanto, embora as críticas sejam legítimas e necessárias, é importante não perder de vista o papel fundamental que a ONU desempenha. Partindo do pressuposto de que a política internacional não é feita apenas pelas capacidades materiais, mas também de normas, ideias e simbolismos, a existência de organizações internacionais como a ONU representa uma série de importantes constrangimentos para os Estados que planejam se utilizar da violência para alcançar seus interesses. Embora muitas das resoluções e decisões adotadas no âmbito onusiano não subtraiam a soberania dos países, ou seja, não sejam obrigatórias, elas desempenham um importante papel nas relações internacionais, pois seu desrespeito pode gerar sanções dos mais diversos tipos. Lopes (2007) define essa autoridade da ONU como a capacidade que o aparato administrativo possui para inspirar confiança em indivíduos e Estados-membros por meio de suas ideias e ações, fazendo com que ocorra adesão às normas diretivas da Organização.
Lopes também argumenta que a autoridade da ONU não poderia ser refutada pela ocorrência de novos conflitos, mas que deveria, em realidade, ser reafirmada pelo fato de a Organização ter conseguido evitar até o presente momento uma Terceira Guerra Mundial. Ao resgatar o preâmbulo da Carta de São Francisco – que se inicia com a célebre expressão “Nós, os povos das Nações Unidas” – o autor argumenta que a proposta de manutenção da paz ali expressa “significava impedir a ocorrência de uma terceira guerra em que estivessem envolvidas as grandes potências mundiais – e não, como algumas análises querem fazer crer, impedir qualquer novo confronto internacional” (LOPES, 2007, p. 50). Embora seja importante pontuar que o atual cenário de invasão da Ucrânia se mostra particularmente desafiador para a ONU, uma vez que o próprio ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que existe um sério risco de ocorrer uma Terceira Guerra Mundial caso os países membros da OTAN continuem oferecendo armamentos para a Ucrânia.
Por fim, para além da pressão política, a ONU também desempenha um papel fundamental no apoio às vítimas, na investigação de eventuais violações e mesmo em eventuais mediações de cessar-fogo ou resolução do conflito. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), por exemplo, tem como principal função prestar assistência aos refugiados e pessoas que foram obrigadas a deixar suas cidades por conta de guerras, conflitos ou perseguições. A ajuda aos civis vítimas do conflito entre Rússia e Ucrânia passa em grande parte por essa estrutura, tanto no que se refere às normas legais que orientam as ações dos Estados no acolhimento dessas pessoas, quanto na coleta de dados e na rede de apoio propriamente dita. Em suma, embora o figurino demande atenção, o papel da ONU segue necessário na complexa peça de teatro da política internacional.
* Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista (UNIP), mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), especialista em Docência para o Ensino Superior, e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).
Imagem: Volodymyr Zelensky em reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por: Manhhai/ Flickr CC.
[1] Os membros permanentes do CSNU são: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Os atuais membros não-permanentes são: Albânia, Brasil, Gabão, Gana, Emirados Árabes Unidos, Índia, Irlanda, Quênia, México e Noruega.
[2] Convocar reuniões extraordinárias da AGNU foi um recurso muito utilizado durante a Guerra Fria, por conta da “política de travamento” que caracterizou o CSNU em meio às tensões entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. Além disso, também foi utilizado em algumas ocasiões para debater o conflito entre Israel e Palestina.
[3] É importante destacar que, no dia 4 de março, foi criada uma comissão internacional independente de inquérito no âmbito do CDH da ONU para verificar violações aos direitos humanos durante o conflito entre Rússia e Ucrânia.