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Dia Internacional da Luta Contra a LGBTfobia: a violência sobre os corpos no Brasil e a contribuição das abordagens queer

Kimberly Alves Digolin*

Júlio Fernandes dos Reis**

 

O Dia Internacional da Luta Contra a LGBTfobia é celebrado em 17 de maio. A data foi escolhida em alusão ao dia em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou oficialmente a homossexualidade de sua lista internacional de transtornos mentais, no ano de 1990, o que possibilitou um grande avanço na luta pelos direitos civis dessa população. Segundo relatório de 2019 da ILGA World (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), cerca de 74% da população mundial vivia sob legislações que criminalizavam as práticas homossexuais em 1969; número que caiu para 27% em 2018. No entanto, não considerar mais a homossexualidade como uma doença foi apenas um passo inicial para garantir mais igualdade e dignidade para todos aqueles que se identificam com a comunidade LGBTQIA+. Nesse texto, abordaremos brevemente a forma como o Regime Internacional dos Direitos Humanos incluiu o combate à LGBTfobia, o lugar que o Brasil ocupa nesse cenário, bem como a contribuição das abordagens queer para compreender a segurança internacional e as raízes da violência sobre esses corpos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada durante Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 1948, inicia-se com a frase “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. No entanto, décadas de sistemáticas discriminações motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero deixaram à mostra a necessidade que o debate coletivo incluísse de modo mais específico os direitos das pessoas LGBTQIA+. Houve uma tentativa, embora fracassada, de incorporar os “Princípios de Yogyakarta” – documento elaborado por especialistas de 25 países e que reconhece a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero como violação aos direitos humanos – ao direito internacional em 2007. Mas a primeira resolução da ONU sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero foi adotada apenas em junho de 2011, no âmbito do Conselho de Direitos Humanos[1], após diversos debates sobre leis discriminatórias, práticas em nível nacional e sobre as obrigações dos Estados em relação à proteção dos direitos da comunidade LGBTQIA+.

Em seguida, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) elaborou um relatório evidenciando “um padrão de violência sistemática e de discriminação dirigida às pessoas em todas as regiões em razão da sua orientação sexual e identidade de gênero – desde discriminação no emprego, na assistência médica e educação, à criminalização e ataques físicos seletivos” (ACNUDH, 2012). A partir desse relatório foi convocado um painel de discussão em março de 2012, quando, pela primeira vez, representantes de diversos Estados se reuniram na ONU para debater formalmente o assunto. No ano seguinte, a ONU lançou a campanha “Livres & Iguais” com o objetivo de promover direitos iguais e tratamento justo para pessoas LGBTQIA+ de todo o mundo, a partir da disponibilização de informação pública e do apoio de celebridades, líderes políticos e religiosos.

Em suma, o direito internacional[2] aponta que os Estados devem cumprir cinco medidas práticas para salvaguardar os direitos das pessoas LGBTQIA+: proteger as pessoas da LGBTfobia; prevenir a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante contra pessoas dessa comunidade; revogar as leis que criminalizam pessoas a partir de suas orientações sexuais ou identidades de gênero; proibir a discriminação a essas pessoas; e proteger as liberdades de expressão, associação e reunião pacífica das pessoas que se identificam como LGBTQIA+. Entretanto, apesar de serem frutos de debates coletivos importantes, essas determinações seguem sendo descumpridas. O mapa abaixo destaca em vermelho os países em que a homossexualidade ainda é criminalizada.

No caso do Brasil, o país possui um Movimento LGBTQIA+ bastante forte e atuante desde 1978. O grupo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual e o GGB (Grupo Gay da Bahia) são exemplos de organizações de resistência e luta pela preservação e garantia dos direitos dessa parcela da população. A luta dessas e outras associações produziu efeitos na legislação nacional que, já em 1985 – cinco anos antes da OMS –, conseguiu que a homossexualidade não fosse mais considerada uma doença pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).

Ademais, o Movimento também conquistou o estabelecimento de políticas públicas focadas no auxílio desse contingente populacional, que sempre esteve em situação de vulnerabilidade, como os Programas Nacionais de Direitos Humanos de 1996, 2002 e 2010. Nessa linha do tempo de conquistas, o casamento civil entre casais do mesmo sexo foi legalizado em 2013; o direito das pessoas de alterarem seu gênero e nome civil nos cartórios, agora sem a obrigatoriedade do indivíduo já ter passado por uma cirurgia de redesignação de sexo, foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018; e, por fim, em 2019, o STF também concedeu a possibilidade dos crimes de LGBTfobia serem enquadrados na lei do racismo, enquanto uma legislação específica para esse tipo de discriminação não é elaborada.

Porém, apesar de tantos avanços em favor do Movimento LGBTQIA+ no Brasil, o Estado ainda figura como aquele que mais mata os indivíduos dessa população entre os países nos quais a homossexualidade não é criminalizada. Os dados do GGB mostram que, em 2021, foram registrados 300 casos de mortes de pessoas dessa comunidade, o que significa a ocorrência de uma morte a cada 29 horas no país. Esses dados são um reflexo do preconceito estrutural na sociedade nacional, que ainda discrimina e marginaliza esses indivíduos, principalmente a parcela transsexual, que registrou 80 assassinatos no primeiro semestre de 2021.

Embora o grau de violência seja inegável, vale destacar que a posição ocupada pelo Brasil nesse ranking também pode estar associada ao fato de existirem dados divulgados sobre a violência contra a população LGBTQIA+ no país, especialmente coletados por ONGs ou organizações da sociedade civil. Ou seja, é possível que outros países, ainda que não possuam uma legislação específica que caracterize a homossexualidade como prática ilegal, possuam taxas maiores que as brasileiras e apenas não existam dados suficientemente divulgados.

A partir disso, é possível notar que, além de motivações étnicas e de nacionalidade, a violência também envolve os corpos, as orientações sexuais e identidades de gênero. Durante séculos a comunidade LGBTQIA+ foi pejorativamente denominado como queer – termo que remete à Queer Street, que no século XVI abrigava aquelas pessoas entendidas como “a escória britânica”. No entanto, mais recentemente houve um processo ativo para ressignificar o termo queer; distanciando-o da ideia pejorativa de retratar “os estranhos” e aproximando-o da concepção crítica de “estranhamento”, de problematização dos padrões binários e preconceituosos que embasam as discriminações.

As abordagens queer sobre política internacional, e mais especificamente sobre segurança internacional, nos ajudam a compreender a forma como as questões de gênero, sexualidade, raça, nacionalidade e classe são elementos centrais para o processo de formação do Estado e do próprio aparato militar-burocrático, uma vez que são estruturas moldadas a partir da percepção de masculinidade. Em outras palavras, nos ajudam a compreender a forma como a heterossexualidade branca traz consigo valores e práticas que não apenas estão incluídas, mas que estruturaram a segurança internacional; e, portanto, a própria noção de segurança e inimigo.

A partir dessas abordagens queer podemos analisar as contradições históricas e a forma como esses padrões político-econômicos estão baseados no discurso binário de um modelo a ser seguido e de um contraponto abjeto a ser perseguido ou exterminado. O Dia Internacional da Luta contra a LGBTfobia é um marco para lembrarmos a importância de se analisar as raízes desiguais do sistema internacional e a forma como elas buscam legitimar as violências contra corpos que representam luta e resistência.

 

* Professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista (UNIP), mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: kimberly.alves.digolin@gmail.com

** Graduando de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e integrante do Núcleo de Estudos de Gênero Iaras-GEDES. Contato: julio.reis@unesp.com

Imagem em destaque: Pride 2018. Por: Miguel Discart/Flickr.

Imagem no corpo do texto: Mapa sobre criminalização de relações entre pessoas do mesmo sexo. Por: Nações Unidas.

[1] O Conselho de Direitos Humanos da ONU foi criado em 2006 e, até aquele momento, os debates sobre direitos LGBTQIA+ eram tratados apenas de modo específico, em casos pontuais. Além disso, os principais atores políticos a chamarem atenção para o tema no âmbito da ONU ainda eram as organizações não-governamentais dedicadas à prevenção e tratamento do HIV-AIDS.

[2] Para mais informações sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ na ONU, recomendamos o artigo de Renata Nagamine (2019).

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