Laís Azeredo*
João Carlos Jarochinski Silva**
A escalada de conflito na Ucrânia, decorrente da invasão russa em 24 de fevereiro, tem resultado em mortes de civis, destruição de infraestrutura, medo e violência, o que levou ao deslocamento forçado de 10,7 milhões de pessoas, sendo que 4,2 milhões dessas são refugiadas, recepcionadas principalmente na Polônia, Romênia, Moldávia e Hungria. A maioria absoluta dessas pessoas é formada por mulheres e crianças. Desde os conflitos nos Bálcãs nos anos 1990 e da invasão russa à Crimeia, esse é o mais novo episódio europeu que ocasionou uma crise humanitária, demandando soluções emergenciais para atender a refugiados. De fevereiro a abril de 2022, em cerca de cinco semanas, um quarto da população da Ucrânia foi forçada a sair de suas casas, em busca de assistência e segurança, o que torna essa crise a que cresce mais rapidamente desde a Segunda Guerra Mundial.
Interessante notar que nesse caso, diferentemente do que ocorreu em outras situações de mobilidade com destino a Europa – envolvendo os deslocados em situação de refúgio, em fuga de cenários de violência, conflitos, perseguições e graves violações de direitos humanos -, os ucranianos, felizmente, não estão sendo recepcionados por medidas que inserem essas pessoas em centros de detenção, criminalizando-as e tratando-as como ameaça. A resposta, de grande parte dos países[1] à crise ucraniana, tem sido positiva e acolhedora, compreendendo esse fluxo migratório como dever ser, a fuga pela sobrevivência, pela vida, não uma ameaça à segurança, ao emprego dos nacionais, à saúde pública. Ao ver esse cenário com medidas tão díspares, faz-se mister questionar: o que determina quem vai ser rechaçado e quem vai ser acolhido?
A pronta resposta dos países da União Europeia (UE) esteve baseada na permissão de entrada das pessoas refugiadas ucranianas sem a necessidade de visto. A acolhida por parte dos países vizinhos europeus tem sido de apoio público, com ações das comunidades, e também político, com posicionamentos claros dos líderes de que os ucranianos são bem-vindos. Eslováquia e Polônia permitiram que refugiados pudessem atravessar suas respectivas fronteiras até sem passaporte ou outros documentos válidos. Na Europa, o transporte público foi disponibilizado de forma gratuita, assim como os serviços de telefone. A UE propôs, inclusive, reativar a Diretiva de Proteção Temporária que foi utilizada nos anos 1990 para atender à crise de refugiados nos Bálcãs e que permite às pessoas ucranianas até um ano de Proteção Temporária, sem precisar solicitar refúgio, com acesso a direitos e a residência. Caso o conflito tenha seguimento, essa temporalidade será reavaliada. Em um contexto de fechamento e de forte retrocesso em ações de proteção às pessoas refugiadas, ver esse tipo de medida ser discutida é relevante para demonstrar que não podemos abdicar de um sistema protetivo tão relevante como o dos refugiados.
Ações como a da UE nesse contexto são medidas que contemplam a forma como o regime de Proteção às pessoas refugiadas deveria funcionar: fronteiras abertas, acolhida, sem penalizações para os que estão fugindo e buscando Proteção. Mas, infelizmente, esse não tem sido o padrão europeu e, tampouco, tem sido o padrão adotado nessa situação para os não-ucranianos, mesmo sendo atingidos pela mesma violência. Pessoas que foram afetadas pela crise humanitária na Ucrânia, mas que tinham outra nacionalidade, particularmente nacionais de países africanos, asiáticos ou do Oriente Médio, não conseguiram as mesmas oportunidades de acesso facilitado. Inúmeros relatos de pessoas provenientes de outras localidades, com destaque pelas anteriormente citadas, que viviam na Ucrânia, evidenciaram desafios no acesso à ajuda e Proteção, especialmente racismo e violência.
Enquanto alguns foram impedidos de embarcar em ônibus e trens em cidades ucranianas, porque a prioridade eram os nacionais, outros descreveram maus tratos por parte de guardas de fronteira e autoridades daquele país, enquanto tentavam atravessar as fronteiras. Os Estados que estão demonstrando tamanha solidariedade com os ucranianos são os mesmos que rechaçam os nacionais de outros países. Na Polônia, migrantes africanos, do sudeste da Ásia e do Oriente Médio sofreram ataques por parte de nacionalistas poloneses e também têm enfrentado dificuldades para acessar o território.
A pronta e efetiva resposta dos países europeus à crise de refugiados decorrente do conflito na Ucrânia é representativa da capacidade da Europa em responder a esse tipo de situação e permite o questionamento: por que isso não foi feito em outras circunstâncias , como na crise da Síria em 2015-2016? Quando milhares de refugiados sírios e de outras partes do Oriente Médio e África chegaram pela Itália ou Grécia em barcos precários, correndo risco de morte, mulheres com crianças, pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, a resposta foi bastante distinta. A associação desses grupos com atividades terroristas, devido ao sentimento anti-muçulmano e à islamofobia, resultou em uma ação agressiva aos deslocamentos, inclusive reforçando plataformas políticas xenofóbicas, além de ações de criminalização, impedimento de acesso a território seguro e devolução, contrariando princípios basilares do Direito Internacional dos Refugiados e da estrutura jurídica europeia.
Como esquecer que a mesma Hungria, que hoje mostra solidariedade para com os ucranianos, instalou cercas nas fronteiras, legalizou a devolução de migrantes e fechou a fronteira com a Sérvia, além de ter associado a migração com diversos tipos de problemas e ameaças. De acordo com Parekh, é compreensível a recepção que os ucranianos têm recebido de seus vizinhos, muito em função da empatia construída pela fluidez de suas fronteiras e pelas diásporas constituídas nos países mais próximos, além do histórico pertencimento à antiga União Soviética. No mais, é mais fácil recepcionar os ucranianos por conta de seu direito já estabelecido de permanência nos países do bloco por até 90 dias. Ignorar, todavia, a racialização dessa resposta seria não perceber o contexto relacionado ao tema nos últimos anos, o que permite formular a hipótese de que a solidariedade existiu porque eles são percebidos como mais semelhantes, em termos de características físicas, de crenças, história. São vistos como parte da mesma “civilização” europeia. “Não são refugiados com um passado desconhecido”, conforme afirmou o primeiro-ministro búlgaro.
A justificativa utilizada para que os não-europeus não recebam o mesmo tratamento que os ucranianos – por mais que também tenham sido afetados pela mesma Guerra -, e a resposta anterior que era dada aos outros deslocamentos de refugiados – notadamente provenientes do Oriente Médio e África -, pautam-se na ideia de que esses fluxos representam uma ameaça à segurança. Não há dados embasados que comprovem que pessoas do Oriente Médio ou da África estão mais ou menos propensas a cometer crimes ou a realizar um ato terrorista. Utilizar essa perspectiva é abrir espaço para um pensamento racializado, que associa determinados grupos étnicos, tidos como indesejados, a práticas criminosas. É racismo disfarçado de motivação de segurança.
A situação deixou mais claro algo que já ocorria anteriormente: que a dinâmica europeia de dar boas-vindas a pessoas refugiadas e migrantes é focada em grupos específicos. Essa eficiente resposta aos refugiados ucranianos deixou explícito que a abordagem de compartilhamento de responsabilidades – que envolve governos, sociedade civil, agências humanitárias e comunidades locais – e uma política de solidariedade e acolhida humanitária são possíveis e podem funcionar muito bem. O necessário é vontade política.
Muito se tem questionado se a partir desse exemplo, um novo paradigma para o acolhimento e proteção de pessoas refugiadas pode surgir, baseado no desenvolvimento esperado de uma lógica de ação pautada na solidariedade e nos direitos humanos. Infelizmente, mesmo com a importante, necessária e significativa resposta que tem sido dada para essa situação, quando se enxerga em perspectiva, a mudança de paradigma parece algo distante, pois só ocorrerá quando os critérios de raça, cor e nacionalidade deixarem de ser associados a questões de segurança. Enquanto discursos, percepções sociais e políticas e, principalmente, as ações corroborarem a racialização da segurança, a acolhida decente de pessoas refugiadas vai permanecer uma exceção.
[1] A resposta da Grã-Bretanha à crise tem sido distinta da que a União Europeia tem oferecido, visto que manteve o padrão de segurança recorrente e restringiu a concessão de entrada aos que tivessem familiares próximos vivendo na Grã-Bretanha, mas que teriam que ter visto prévio, para evitar a entrada de “infiltrados russos e extremistas”.
*Laís Azeredo, doutora pelo PPGRI San Tiago Dantas
**João Carlos Jarochinski Silva, Professor do Mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (PPGSOF/UFRR) e Coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFRR)
Imagem: Refugiados partindo da Ucrânia em direção à Polônia. Por: Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia/Wikimedia Commons.