João Vitor Tossini*
A concepção de sucessivos governos britânicos sobre a posição do Reino Unido como uma grande potência persiste apesar do período de declínio relativo que afetou o país após a Segunda Guerra Mundial. Com o fim da Guerra Fria, sucessivos governos em Londres buscaram reafirmar o Reino Unido como uma das lideranças do Ocidente e, consequentemente, como uma grande potência. O Governo Tony Blair (1997-2007) foi um dos expoentes desse objetivo de conservação e reafirmação de status, retomando o enfoque britânico na projeção de poder para além da Europa e empregando estas capacidades militares no Afeganistão, Iraque, Serra Leoa, dentre outros países (BROWN, 2010).
Apesar de variações políticas em cada novo governo, incluindo períodos de austeridade como no primeiro Governo David Cameron (2010-2015), todos concebiam o Reino Unido como uma grande potência – ou uma potência de primeira grandeza – e almejavam a conservação desse status. Em 2016, o Governo Theresa May (2016-2019) adota o termo “Grã-Bretanha Global” (Global Britain) como uma nova definição para a política externa britânica após o voto pela saída da União Europeia. O sucessor de Theresa May, Boris Johnson, incluiu a “Grã-Bretanha Global” como o centro de sua primeira Revisão de Defesa, indicando o compromisso do governo em expandir o engajamento britânico para além da União Europeia e do eixo euro-atlântico, além de apoiar aliados contra Estados considerados revisionistas, como a China e a Rússia (UNITED KINGDOM, 2021). Assim, a Grã-Bretanha Global simboliza a disposição do Reino Unido em adotar um novo meio de se reafirmar como uma grande potência e como uma das lideranças ocidentais, ainda que isso possa representar crescente oposição e atritos com China e Rússia, como observado nas recentes incursões navais britânicas no Mar Negro.
O HMS Defender no Mar Negro
Nesse contexto, em 23 de junho de 2021, um contratorpedeiro (destroyer) da Marinha Real Britânica (Royal Navy), o HMS Defender, adentrou as águas territoriais disputadas da Crimeia, território ucraniano controlado pela Federação Russa desde 2014, visando exercer o princípio do direto de liberdade de navegação e demonstrar o apoio britânico à Ucrânia na questão do território em litígio. Segundo o Governo Britânico, o HMS Defender transitava pela rota mais curta entre a cidade portuária de Odessa, na Ucrânia, para Batumi, na Geórgia, sendo que o navio seguiria uma série de exercícios conjuntos com esses dois Estados. Durante um breve trecho dessa rota, a embarcação adentrou as águas territoriais da Crimeia que, para os britânicos e outras potências ocidentais, pertence aos ucranianos (GARDNER, 2021).
O contratorpedeiro britânico passou a poucos quilômetros da costa e de Sevastópol, local da principal base naval russa no Mar Negro, e foi o foco de avisos por parte de seus navios da guarda costeira e caças de combate, incluindo disparos de advertência. Apesar disso, Londres negou que o HMS Defender tenha sido alvo de disparos de advertência, indicando que a Rússia havia anunciado com antecedência a realização de treinamentos navais nas proximidades (BEALE, 2021; GARDNER, 2021).
No dia seguinte, outro incidente próximo ao mar territorial da Crimeia envolveu uma embarcação militar holandesa, o HNLMS Evertsen, que acompanhava o Defender no Mar Negro. Menos de uma semana após o incidente, em 28 de junho, ocorreu o início do exercício anual da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Mar Negro com a participação de todos os países costeiros da região, com exceção da Rússia – além da presença de Reino Unido, França, Itália, Estados Unidos, e outros países convidados (UNITED STATES, 2021).
Destaca-se que, diferentemente de outras incursões prévias da Royal Navy, a bordo do Defender havia um jornalista da principal estatal da mídia britânica, a British Broadcast Corporation (BBC), que foi a primeira fonte de informações sobre a questão no Reino Unido, indicando que Londres possuía interesse em deter o controle inicial da narrativa. Quatro dias após o episódio, documentos sigilosos do Ministério da Defesa britânico foram encontrados em uma estação de ônibus e divulgados pela mídia do país. Por meio desses documentos, torna-se possível indicar que o Governo Britânico realizou considerações prévias sobre as possíveis reações da Rússia ao deslocamento de navios da Royal Navy nas proximidades da Crimeia.
Segundo os documentos, oficiais militares e civis britânicos entendiam que o Reino Unido possuía duas opções no caso da rota do HMS Defender entre Odessa e Batumi: evitar as águas territoriais controladas por Moscou ou adotar o trajeto tradicional utilizado por embarcações militares antes da ocupação russa da Crimeia, o que envolvia um breve período nas águas territoriais contestadas. A primeira opção foi descartada pois a adoção de um “desvio” de rota foi interpretada pelos oficiais britânicos como uma demonstração de fraqueza relativa e de aceitação do controle russo do território ucraniano. Assim, Londres optou pela segunda alternativa apesar das possíveis reações das forças russas (ADAMS, 2021).
O Reino Unido após o Brexit: a periferia europeia e a OTAN
Nota-se que o episódio envolvendo o HMS Defender nas proximidades da Crimeia ocorre em um período em que o Reino Unido busca reforçar seu papel na OTAN após a sua saída da União Europeia (processo que ficou popularmente conhecido como Brexit). A inclusão da Ucrânia nos mecanismos de cooperação da OTAN é apoiada por Londres desde a anexação russa da Crimeia, sendo o Reino Unido, ao lado dos Estados Unidos, um dos membros da Organização mais engajados com a Ucrânia no âmbito da Defesa e Segurança. Desde 2015 o Reino Unido possui operações militares destinadas ao treinamento das forças ucranianas na medida em que adota um posicionamento para o avanço do processo de integração da Ucrânia como membro da OTAN (UNITED KINGDOM, 2020). A Declaração dos Chefes de Estado e de Governo da OTAN do início de junho de 2021 confirmou planos para o avanço desse processo, cabendo ao Governo Ucraniano a decisão final sobre sua relação com a organização quando os requisitos para alcançar o status de membro forem alcançados (NATO, 2021).
Simultaneamente, o incidente no Mar Negro ocorreu poucos meses após a divulgação da Revisão Integrada de Segurança e Defesa, na qual Londres aponta a Rússia como a principal ameaça estatal ao Reino Unido, seguida pela China, e destaca que busca maior engajamento com países do Leste Europeu, incluindo a Ucrânia (UNITED KINGDOM, 2021, p. 60). Os documentos sigilosos divulgados pela mídia britânica aparentam reforçar o entendimento de que o Reino Unido possui uma percepção mais sensível em relação à Rússia do que à China. Isso ocorre quando oficiais civis e militares britânicos indicam que o governo de Joe Biden ainda apresenta “muita continuidade” em relação ao foco no Indo-Pacífico e na China (ADAMS, 2021).
Em adição, entre maio e julho de 2021 um Grupo de Ataque a partir de Porta-Aviões (Carrier Strike Group) britânico esteve presente no Mar Mediterrâneo como parte do deslocamento inaugural da nova classe de porta-aviões da Royal Navy. Em julho, o Grupo avançou para o Indo-Pacífico, visando realizar exercícios com parceiros do Reino Unido, incluindo a Austrália, a Malásia, o Japão e os Estados Unidos. Destaca-se que o HMS Defender constitui parte da escolta de superfície do porta-aviões britânico, o HMS Queen Elizabeth, que é o centro dessa formação naval de projeção de poder. Enquanto a parte principal do Grupo realizava reabastecimento no Chipre, local de dois enclaves ultramarinos do Reino Unido, o Defender foi enviado ao Mar Negro, visitando a Ucrânia e a Geórgia, e outras embarcações participariam de missões diplomáticas e exercícios militares com Israel, Chipre, Egito e Grécia (MEDITERRANEAN, 2021).
Dentre essas missões, a visita do Defender à Ucrânia resultou em um acordo que expande a cooperação do país no âmbito da Defesa com o Reino Unido. O acordo inclui a construção de duas bases navais por parte de empresas britânicas para uso ucraniano, venda de sistema de mísseis e outros armamentos, treinamento e a compra de duas embarcações anti-minas da Royal Navy, além de oito navios rápidos de lançamento de mísseis (fast missile warships). Por fim, a indústria de Defesa britânica liderará os planos de desenvolvimento das novas fragatas ucranianas, a principal plataforma de superfície operada pela Marinha da Ucrânia. Entende-se que este ponto abre a possibilidade de exportação da nova classe Type 31 de fragatas britânicas, ou de similares projetos baseados nessa classe, elaborada especialmente visando exportações. Os recursos financeiros para a realização do acordo, que ultrapassam 1,25 bilhão de libras, serão fornecidos ao Governo em Kiev pela agência estatal de empréstimos e financiamentos do Reino Unido, a UK Export Finance (UNITED KINGDOM, 2021a), demonstrando a disposição britânica em expandir a sua influência e atuação político-militar na região.
Dentre os tópicos acordados mencionados anteriormente, destaca-se a construção de duas bases navais para a marinha ucraniana. Considerando que uma dessas bases será construída no Mar de Azov – entre a Crimeia, a Rússia e a Ucrânia – é reforçado o entendimento de que o Reino Unido busca contestar a presença russa na Crimeia ao passo que estabelece novos laços com Estados da periferia europeia e reforça seu papel como uma das principais forças de liderança da OTAN na Europa. Esta concepção é sustentada quando considerados os anseios do Governo Britânico para o avanço do seu projeto de uma “Grã-Bretanha Global” no âmbito diplomático-estratégico.
Como mencionado anteriormente, o projeto Grã-Bretanha Global almeja, dentre outras questões, maior engajamento com parceiros para além da União Europeia, a consolidação do país como a principal potência militar europeia da OTAN e o “retorno” de sua atuação estratégica no Indo-Pacífico, acompanhado pela expansão de sua presença e atuação militar ultramarina focada nas suas capacidades aeronavais (UNITED KINGDOM, 2021). Em suma, esse projeto busca encerrar o que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, intitulou de a “era do recuo” (BEALE, 2021a) do pós-Segunda Guerra Mundial, período marcado pelo fim do Império Britânico e a redução da presença global do Reino Unido.
Assim, o caso da Ucrânia apresenta-se como uma das iniciativas bilaterais iniciadas por Londres para fortalecer sua posição internacional pós-Brexit, sendo o acordo firmado a bordo do HMS Defender um complemento ao Acordo de Parceria Comercial anglo-ucraniano firmado em 2020 – que visa expandir o acesso de produtos primários ucranianos ao mercado britânico, reduzindo a dependência do Reino Unido de importações de alimentos da União Europeia (TOMS, 2020). Entretanto, ainda que o Brexit tenha reforçado a posição do Reino Unido sobre a centralidade da OTAN e estimulado maior engajamento com outros Estados, sucessivos governos britânicos tradicionalmente mantiveram posição similar. O Brexit apresenta-se como um fator que reforçou a concepção do Reino Unido sobre a centralidade da OTAN na segurança europeia e como um meio do país manter um papel relevante no continente para seus aliados, incluindo os Estados Unidos.
Nesse contexto, o incidente envolvendo o Defender ocorreu logo após o anúncio por parte do governo russo, no final de março de 2021, sobre a imposição de áreas de exclusão a navios estrangeiros em determinados locais do Mar Negro, incluindo as águas nas proximidades da Crimeia e na entrada ao Mar de Azov, local de uma das futuras bases navais ucranianas construídas pelos britânicos. Logo, a rota adotada pela embarcação da Royal Navy simbolizou a ausência de reconhecimento por parte do Reino Unido e da OTAN sobre as reivindicações russas de soberania sobre a Crimeia e a preponderância de Moscou sobre o Mar Negro. O incidente é parte de uma estratégia empregada por outros membros da OTAN desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Acompanhada pela crescente presença militar, cooperação e treinamentos conjuntos com a Ucrânia e a Geórgia, essa estratégia é caracterizada pelas demonstrações de não-reconhecimento da soberania russa, como a realizada pelo Defender, e pela rotatividade de embarcações das marinhas da Organização no Mar Negro, especialmente dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França, na tentativa de manter uma presença constante na área (EGGERT, 2021).
O crescimento de exercícios militares e da presença naval de membros da OTAN na região contribui para a adoção dos padrões da Organização por parte da Marinha Ucraniana e reduz a possibilidade da repetição de episódios de tensão entre esta força e a Marinha Russa. Neste caso, destaca-se que um episódio de confrontação ocorreu em 2018 e resultou na apreensão de três navios militares ucranianos por parte da frota russa. A diferença das ações russas derivadas das tensões envolvendo as forças navais da Ucrânia em 2018 e as resultantes da incursão britânica em 2021 destaca o peso ligado às capacidades diplomático-militares do Reino Unido e da OTAN. Apesar da aparente tensão enquanto o Defender navegava nas águas territoriais da Crimeia (BEALE, 2021), o comportamento russo em relação aos membros da Organização apresenta-se significativamente mais contido do que em relação à Ucrânia. Apesar da retórica oficial de Moscou após a passagem do HMS Defender incluir ameaças aos futuros deslocamentos navais britânicos nas proximidades da Crimeia, entende-se que as maiores capacidades diplomático-militares do Reino Unido e da OTAN em relação aos ucranianos contribuíram para que as reações russas imediatas fossem mais comedidas.
Dessa forma, o interesse de Kiev na continuidade da aproximação com a OTAN e com o Reino Unido pode ser aprofundado por demonstrações similares às realizadas pela Royal Navy. Como constatado pelos documentos sigilosos do Governo Britânico, a adoção da rota pelo mar territorial da Crimeia seria uma excelente “oportunidade” para demonstrar o interesse do Reino Unido em restaurar a integridade territorial da Ucrânia, ainda que fosse necessário gerar novos atritos com a Rússia (ADAMS, 2021). Considerando o enfoque renovado de Londres na OTAN para a cooperação em Defesa, a inclusão da Ucrânia nesta organização estaria alinhada com os interesses geoestratégicos britânicos que, dentre outras questões, possuem na Rússia a principal percepção de ameaça imediata ao Reino Unido.
A Grã-Bretanha Global no Mar do Sul da China
Por fim, ainda que o Governo Britânico tenha colocado maior ênfase na Rússia como competidora imediata, a China encontra-se como um dos principais desafios estratégicos identificados pela Revisão Integrada de Segurança e Defesa (UNITED KINGDOM, 2021). Neste ponto, a própria presença temporária do HMS Defender no Mar Negro e o restante do Carrier Strike Group no Mediterrâneo possui como principal objetivo operacional de seu deslocamento inaugural contestar a crescente preponderância chinesa no Mar do Sul da China. Assim, o Defender, em conjunto com os outros nove componentes navais do Strike Group, realizará incursões próximas aos territórios insulares reivindicados pela China na região como demonstração de não reconhecimento das reivindicações chinesas e como exercício de livre-navegação.
Acompanhando esse grupo desde sua partida da costa britânica, há um navio da Marinha dos Estados Unidos, o USS The Sullivans, e o HNLMS Evertsen da Marinha Real Holandesa (Royal Netherlands Navy), sendo que este último esteve com o Defender no Mar Negro em junho de 2021 (ALLISON, 2021). A presença de ao menos uma embarcação dos Estados Unidos e um aliado europeu membro da OTAN no deslocamento naval do Reino Unido contribui para o fortalecimento da posição britânica na contestação da posição chinesa ao demonstrar que Londres atua com o suporte direto de Washington e de outros aliados atlânticos.
Assim, o enfoque do Reino Unido por meio do Strike Group está na demonstração de sua capacidade em projetar poder em escala global e na apresentação aos seus aliados regionais do crescente engajamento britânico no Indo-Pacífico, caracterizado pela oposição às reivindicações regionais da China. Dentre os laços no aspecto da Defesa regional mantidos por Londres destacam-se os Cinco Acordos de Força de Defesa (Five Power Defence Arrangements) em conjunto com Singapura, Malásia, Austrália e Nova Zelândia. Originalmente estabelecidos para a defesa da Malásia e Singapura, esses acordos visam a consulta mútua em caso de uma das partes ser atacada militarmente. Tendo exercícios militares realizados de forma anual por meio dos Cinco Acordos, a presença do Strike Group marca a celebração dos 50 anos da organização em 2021 (ALLISON, 2021). Além disso, a incursão britânica no Mar do Sul da China pode ser vista como uma forma de Londres indicar estar disposta a apoiar atos similares dos Estados Unidos, contribuindo para a conservação da “relação especial” com Washington.
Logo, apesar de inserido dentro da reorientação do Reino Unido para além da União Europeia, o incidente envolvendo o HMS Defender pode ser entendido como um ensaio prévio e em menor escala quando comparado ao deslocamento similar que o Governo Britânico pretende realizar de forma regular a partir de 2021 no Mar do Sul da China. Na percepção de Londres, a Rússia permanece como a principal ameaça estatal ao Reino Unido, contudo, os anseios de uma Grã-Bretanha Global indicam que a expansão da atuação do país em regiões como o Indo-Pacífico colocam o Reino Unido crescentemente em oposição à China. As tensões renovadas com a Rússia e a disposição em testar a China em condições similares indicam que a Grã-Bretanha Global representa uma nova forma do Reino Unido se reafirmar como uma grande potência e como uma das lideranças ocidentais na oposição aos anseios político-territoriais da Rússia e da China.
* João Vitor Tossini é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Imagem: O HMS Defender da Royal Navy. Por: Royal Navy/Defence Images/Wikimedia Commons.
Referências
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