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Boletim PAET&D 01.2023 – Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa

Patrícia Matos, José Augusto Zague, Ana Penido,

David Succi Junior e Samuel Soares*

Acesse a versão original em pdf.

 

A Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa – Rede PAET&D – constitui-se em torno da pesquisa “Incorporação de tecnologia aeroespacial para a Defesa: impactos organizacionais, doutrinários e na autonomia estratégica”, um projeto PROCAD-DEFESA, financiado pela CAPES. Compõem a Rede pesquisadores do ensino médio a docentes vinculados a três Programas de Pós- Graduação: em Relações Internacionais, San Tiago Dantas – UNESP-UNICAMP-PUC-SP; em Ciências Aeroespaciais, Universidade da Força Aérea – UNIFA –; e em Desenvolvimento Econômico, da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

A abordagem geral reside nas vinculações entre desenvolvimento tecnológico, doutrina de emprego, organização militar, impacto social e as políticas públicas de Defesa e de Segurança Internacional, à luz de um quadro mais geral de mudanças substantivas no cenário internacional, com o recrudescimento de antagonismos entre grandes potências e a multiplicação de conflitos de caraterísticas que dificultam seu enquadre taxonômico. Neste cenário, o posicionamento de países mais distantes do centro de poder mundial torna-se mais complexo diante da turbulência de influxos que buscam atrair países periféricos e semiperiféricos para os polos em disputa. O resultado deste reordenamento polar é a drástica redução da liberdade de ação dos países do Sul Global com impactos na autonomia estratégica destes países.

A Rede analisa os impactos da dependência epistêmica em relação aos países do centro nas definições do emprego dos meios de força, no quadro de dependência tecnológica e nos desdobramentos para o futuro.

Diferentes questões marcam os primeiros meses de 2023, e tomamos duas delas como estruturantes. Internacionalmente, segue se estendendo a guerra na Ucrânia, ampliando os impactos na indústria de defesa em específico e na economia global em geral. No plano doméstico, a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva promete mudanças para a indústria de defesa doméstica e maiores investimentos para o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacional.

Buscando contribuir para a redução das dependências e descolonização das práticas, a Rede PAET&D consolidará periodicamente as principais notícias que merecem uma análise crítica sobre o tema em quatro grandes eixos: o que adquirir ou produzir; de quem adquirir ou com quem produzir; processos de aquisição e produção; e quanto gastar. Os links para as notícias utilizadas como matéria prima estão inseridos no próprio corpo do texto. Boa leitura!

O QUE ADQUIRIR OU PRODUZIR

A decisão sobre o que produzir (ou mesmo adquirir) na área de defesa precisa partir das definições estratégicas nacionais. No caso brasileiro, os documentos oficiais (Livro Branco da Defesa Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa), não apresentam uma articulação clara entre a produção endógena de armamentos e as ameaças que justifiquem os gastos para produzi-los. Por sua vez, definições estratégicas se subordinam à política externa e doméstica em geral. A discussão sobre autonomia costuma se relacionar com um terceiro grupo de questões sobre como produzir. Na prática, o Brasil tem poucas empresas com capacidade para participar das cadeias produtivas globais do setor, pela baixa incorporação de tecnologia dos bens e serviços produzidos internamente, notadamente na produção de componentes e partes utilizadas na montagem dos armamentos.

A Avibras, uma das principais empresas estratégicas de defesa do Brasil, após anunciar problemas financeiros, poderá ser adquirida por grupo alemão. Outro grupo estrangeiro interessado em adquirir a Avibras é o Edge Group, dos Emirados Árabes. A venda da empresa é prejudicial à autonomia nacional no campo de mísseis e foguetes. Grupos estrangeiros adquiriram importantes empresas estratégicas que antes eram controladas por capital nacional, com destaque para a AEL (antiga Aeroeletrônica), controlada pela israelense ELBIT, que também produz componentes para o GRIPEN-NG; e para a subsidiária brasileira da empresa italiana Iveco (que produz o blindado Guarani).

A venda do blindado Guarani para as Filipinas foi vetada pelo governo alemão, algo possível pois o veículo blindado possui entre seus componentes a transmissão automática, que é produzida pela empresa alemã ZF. Segundo a Alemanha, o veto ocorreu porque as Filipinas são um país que desrespeita os direitos humanos. Entretanto, analistas apontam o veto como uma retaliação pela recusa brasileira em fornecer munições para a Ucrânia. O ocorrido pode impulsionar o Brasil a contornar o problema encontrando fabricantes nacionais para as peças alemãs. De maneira geral, o veto alemão é uma demonstração da grande dependência da indústria de defesa brasileira dos fornecedores externos, e da ausência de fornecedores nacionais para produção de componentes e sistemas de maior sofisticação tecnológica.

DE QUEM ADQUIRIR OU COM QUEM PRODUZIR

Acordos nessa área precisam levar em conta as disputas geopolíticas globais, identificando, se possível, parcerias que possam também cooperar no nível estratégico e político, além de se tornarem compradores de outros produtos brasileiros, e não competidores no mercado internacional.

Após a Boeing desistir de comprar a Embraer, a empresa estadunidense tem contratado engenheiros da empresa brasileira que podem deter segredos industriais, prática que vem sendo contestada na justiça como uma forma indireta de absorção da capacitação da engenharia aeronáutica nacional. A iniciativa pode indicar uma mudança na estratégia da Boeing, na busca por enfraquecer a Embraer e preparar o ambiente para uma nova tentativa de aquisição.

Outro projeto estratégico brasileiro, o submarino nuclear, também apresenta motivos para preocupação. A empresa estadunidense Flowserve adquiriu a empresa estratégica francesa Velan, detentora da Segault, que equipa os submarinos nucleares franceses, e é também fornecedora da Naval Group (que tem parceria com o Brasil no projeto do submarino nuclear). A França desenvolveu durante a presidência de Charles De Gaulle, na década de 1960, uma política de autonomia estratégica na produção de armamentos. No modelo de difusão da tecnologia militar globalizada, a produção de armamentos é concentrada em grandes conglomerados. Os projetos autônomos de alta tecnologia na área militar têm enfrentado dificuldades com a escala produtiva (quantidade reduzida) e menor possibilidade de ganhos em aprendizagem, que poderiam contribuir para a redução dos custos. O avanço de empresas estrangeiras na produção de partes e componentes também dentro do Brasil, amplia a dependência externa da indústria de defesa nacional.

PROCESSOS DE AQUISIÇÃO E PRODUÇÃO

A UOL produziu matéria descritiva sobre as capacidades da Força Aérea Brasileira. Quando comparada a outras forças aéreas da região, o Brasil tem a segunda maior frota das Américas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos da América. A reportagem, entretanto, discute apenas o quantitativo de equipamentos, sem colocar em pauta as diferentes estratégias e os consequentes instrumentos de força necessários para atendê-las pelos países comparados.

A Embraer anunciou que iniciará a montagem final de quinze caças Gripen como parte da transferência de tecnologia contratada com a SAAB para o fornecimento de 36 caças para a FAB, dentro do Programa F-X2. A empresa brasileira absorverá tecnologias na área da engenharia de sistemas, hardware, software e integração de sistemas, o que permitirá a produção de aeronaves de combate de 4ªgeração. A produção da aeronave exigiu a regionalização da montagem, com a consequente construção de uma fábrica da SAAB em São Bernardo (SP). A estrutura financeira da fábrica é composta por um sócio majoritário, a Saab (90%) e um parceiro minoritário, a brasileira Akaer (10%), empresa de engenharia especializada no desenvolvimento de aeroestruturas, parceira da Saab desde 2009, quando foi contratada para desenvolver o projeto de segmentos da fuselagem do Gripen. Não há previsão de que outras empresas brasileiras forneçam componentes (recheio) de tecnologia avançada para a aeronave.

Por fim, cumpre lembrar que os processos de aquisição de armas leves por particulares estiveram aquecidos nos últimos anos. Entre 2018 e 2021, enquanto o mercado mundial que comercializa armamentos retraiu-se (tendência que se modifica com a erupção da guerra na Ucrânia), aumentou a importação de armas no Brasil, notadamente devido à política de facilitação para a aquisição de armas por grupos de Colecionadores, Atiradores e Caçadores adotada por Jair Bolsonaro. A empresa Taurus, importante fabricante, importadora e exportadora de armas leves para o mercado mundial, tem sede no Brasil.

QUANTO GASTAR

Quando se trata de gastos para a indústria de defesa bélica no âmbito global, o céu não tem limites. A Guerra entre a Rússia e a OTAN na Ucrânia tem impulsionado o complexo industrial militar dos EUA. As projeções do Pentágono para investimento no desenvolvimento de caças de sexta geração alcançam a marca de 34 bilhões de dólares. A tecnologia hipersônica para aeronaves pode ser disruptiva, e seu desenvolvimento, inclusive para uso militar, tem sido levado a cabo pelos EUA e China.

No Brasil, a demanda pela ampliação dos gastos em defesa é recorrente, e consta na atual minuta da Estratégia Nacional de Defesa em análise no Congresso Nacional, com a proposta de destinar 2% do PIB nacional para gastos da pasta (parâmetro de gasto inspirado nas recomendações da OTAN). São frequentes também as análises críticas do orçamento de defesa nacional, que direciona a maioria dos recursos para o pagamento de despesas correntes e de pessoal, em detrimento dos gastos com aquisições e investimentos.

Por fim, para além da discussão sobre quanto gastar, é pertinente refletir sobre a origem dos recursos. Uma empresa sul-coreana lançou foguete utilizando a Base de Alcântara, ainda sem finalidade comercial. De toda maneira, os recursos com o aluguel do Centro de Lançamentos não podem ser utilizados para o desenvolvimento de lançadores pelo programa espacial brasileiro, devido ao acordo de salvaguardas assinado com os EUA. Recorda-se que o acordo não prevê nenhuma transferência de tecnologia.

 

PARA SE APROFUNDAR: ARTIGOS ACADÊMICOS SOBRE O TEMA PUBLICADOS RECENTEMENTE

“The technopolitics of security: Agency, temporality, sovereignty”. Artigo de Frank Müller and Matthew Aaron Richmond na revista Security Dialogue, 2023 (v.54:1, pg. 3-20). Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/epub/10.117 7/09670106221141373.

“Developments in Military Expenditure and the Effects of the War in Ukraine”. Artigo de Nan Tian, Diego Lopes, da Silva, Lucie Béraud- Sudreau, Xiao Liang, Lorenzo Scarazzato e Ana Assis na revista Defence and Peace Economics, 2023. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/ 10242694.2023.2221877.

 

* Patrícia Matos é professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Aeroespaciais da Universidade da Força Aérea (UNIFA), Doutora em Ciências Aeroespaciais pela UNIFA e Doutoranda em Economia Política Internacional pela UFRJ. José Augusto Zague é membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES- Unesp), e-mail: j.zague@unesp.br.; Ana Penido é pesquisadora de pós-doutorado do programa de Ciência Política da Unicamp, David Succi Junior é pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e Samuel Soares é professor da UNESP, campus de Franca, e do PPGRI San Tiago Dantas. Todas as autoras e autores participam do Programa de Pesquisa Acadêmica em Defesa Nacional (Procad-Defesa) no Projeto “Incorporação de Tecnologia Aeroespacial para a Defesa” da Rede PAET&D.

Imagem: Logo da Rede PAE&D.

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