Thaiane Mendonça
No Rio de Janeiro, é inevitável falar de milícias e segurança pública quando se debate política, principalmente durante o período eleitoral. As milícias fazem parte do imaginário e do cotidiano da cidade, já viraram tema de filme[1] e, desde 2019, com as acusações de proximidade da família Bolsonaro com as milícias no Rio, o tema tem chamado atenção nacional. Ainda que, historicamente, o termo “milícia” tenha sido utilizado para designar diferentes experiências de forças de segurança, atualmente no Brasil o termo é usado para tratar de grupos criminosos formados por policiais, ex-policiais, bombeiros e agentes
O fenômeno das milícias deriva dos chamados “grupos de extermínio” ou “justiceiros”, presentes mesmo em outras cidades do país, ao menos desde a década de 1960. Moradores e comerciantes de determinada região possuíam um acordo tácito com estes grupos, relacionados até com as lideranças locais das comunidades e ações assistenciais, para garantir a sua proteção contra grupos traficantes e outros criminosos. Com o acordo, estabelecia-se uma “paz cínica” através de um poder tutelar: os grupos mantinham o território sob um controle militarizado e violento à margem do controle estatal enquanto proviam uma sensação de segurança para os moradores do local contra os “verdadeiros criminosos”. Ainda é comum encontrar como “mito de origem” para as milícias atuais a experiência “bem-sucedida” de segurança de Rio das Pedras, favela/bairro na zona oeste do Rio de Janeiro.
Há diversas configurações possíveis de milícias e uma particularidade interessante dos grupos, hoje em dia, é a diversificação dos serviços oferecidos à população. Além dos serviços de segurança, os milicianos controlam o fornecimento local de botijões de gás, cobram “pedágios” e taxas para proteção, fornecem sinal clandestino de televisão a cabo, linhas de transporte alternativo e, mais recentemente, cobrança de aluguéis ilegais. Nota-se que as milícias emulam tanto atividades de responsabilidade do Estado quanto aquelas oferecidas pela iniciativa privada justamente em locais com presença historicamente precária de ambos.
Há uma outra particularidade interessante desses grupos: suas relações com a política e o poder público. Desde os anos 1990, é possível observar a ocupação de cargos eletivos por integrantes de milícias, principalmente aqueles que já exerciam algum tipo de liderança local. Sobre isto, foi notável, em 2004, a eleição de Nadinho, liderança comunitária de Rio das Pedras e acusado de ser chefe da milícia na região, já indicando um movimento que se tornaria mais comum nos anos seguintes de ocupação de cargos públicos por candidatos relacionados às milícias na cidade. Em certa medida, até meados dos anos 2000, a classe política não identificava as milícias como um problema, sendo mesmo consideradas como uma forma de conter o “verdadeiro” problema, os traficantes. A própria família Bolsonaro chegou a se pronunciar publicamente de forma positiva e favorável às milícias. Esta perspectiva começa a se alterar em 2008 quando jornalistas do O Dia foram presos e torturados pela milícia do Batan, na Zona Oeste, enquanto faziam uma reportagem sobre a atuação dos grupos.
Como consequência, ainda em 2008, foi aberta a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Milícias, com autoria do então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Dentre os mais de duzentos indiciados estavam diversos vereadores e deputados do estado, principalmente ligados às milícias de Campo Grande e de Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade. Dentre eles estava também Nadinho, que acabou assassinado em 2009, assim como ocorreu com diversos outros nomes da lista da CPI. É notável ainda o caso da milícia conhecida como “Liga da Justiça”, maior milícia do estado, predominante no bairro de Campo Grande, mais populoso e um dos maiores colégios eleitorais. Os líderes do grupo, os irmãos Jerominho e Natalino Guimarães, ex-vereador e ex-deputado estadual, respectivamente, além de ex-policiais, foram presos em resultado da CPI e soltos em 2018. Além do envolvimento de outros membros da família com a política na cidade desde então, agora em 2020, a sobrinha de Jerominho, Jéssica Natalino, foi candidata à vice-prefeita na chapa de Suêd Haidar (PMB), chapa atualmente investigada pela Polícia Federal por envolvimento com as milícias.
Além das candidaturas de figuras reconhecidamente relacionadas às milícias, é notável também que as campanhas políticas nos territórios controlados só podem ocorrer caso sejam autorizadas pelos grupos daquela localidade. Ainda, os moradores costumam ser coagidos, até com ameaças de morte, a votar nos candidatos apoiados pelos milicianos. De acordo com informações fornecidas por um morador à Revista Veja sobre as eleições deste ano: “Os milicianos convocam a população para uma reunião, portando identidade e título de eleitor. Cadastram um a um e passam a monitorá-los para impedir que apoiem candidatos “de fora”. No dia do pleito, com o mapa eleitoral da região em mãos, fazem sua boca de urna, ameaçando quem chega ao local de votação com “olha bem em quem você vai votar” — às vezes na cara da polícia. “A maioria cede à pressão, por medo de morrer”, diz o morador.”
Junta-se à coação dos milicianos o fato de controlarem bairros populosos na cidade, principalmente na zona oeste, e é assombrosa a capacidade desses grupos de influenciar o resultado do pleito no estado.
No Rio de Janeiro, a vereadora Marielle Franco (PSOL) era conhecida por suas denúncias de uma prática comum das milícias, a grilagem, que consiste na construção, venda ou locação ilegal de imóveis nos territórios controlados. Marielle foi assassinada em março de 2018 juntamente com o motorista Anderson Gomes e as investigações, ainda que não estejam concluídas, apontam que a motivação do crime tenha sido a luta contra as milícias no estado. O Ministério Público Federal indica, até o momento, que há fortes indícios de que os assassinatos foram cometidos pelo Escritório do Crime, milícia que atua em Rio das Pedras e cujo comando era apontado como pertencendo a Adriano da Nóbrega, ex-policial militar. Além desta investigação, o ex-policial era também investigado por fazer parte do esquema de “rachadinhas” operado por Fabrício Queiroz no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro. Apesar de ter chamado a atenção da mídia nos últimos dois anos, Adriano da Nóbrega foi homenageado, na cadeia, por Flávio Bolsonaro, ainda em 2005, com a Medalha Tiradentes, honraria mais alta da Assembleia Legislativa. Adriano foi morto em uma operação policial em fevereiro de 2020, na Bahia, quando estava foragido.
Atualmente, as milícias não são formadas apenas por pessoal advindo das forças de segurança. Há alguns casos de cooptação, inclusive de membros de grupos traficantes, o que a mídia tem chamado recentemente de “narcomilícias”. Isso revela a força desses grupos e sua capacidade de influência na política do estado, além da capacidade da mídia de ditar e legitimar o debate sobre segurança pública no estado.
Ao observar o modo de atuação das milícias no Rio de Janeiro, fica evidente sua profunda associação e infiltração na burocracia pública e em órgãos representativos das instituições estatais, sejam elas as próprias forças de segurança, de onde vem a maior parte de seus integrantes, sejam elas os gabinetes de funcionários eleitos pelo povo – além de o próprio processo eleitoral já ser influenciado pela ação dos milicianos.
Dessa constatação, duas outras são possíveis. Em primeiro lugar, o combate ao crime organizado efetivo e eficiente não pode ser restrito a operações violentas e ostensivas de polícia em territórios marginalizados, como tem sido a política de segurança pública no Rio de Janeiro. Relacionado a isso, em segundo lugar, isolar casos e individualizar a culpa e a punição – nos poucos casos em que há punição – apenas contribui para a invisibilização de uma questão estrutural: a simbiose entre as forças de segurança e o crime organizado, que vem se projetando em demais instituições do Estado, nos mais diversos níveis da administração pública. Assim sendo, apenas propostas de reforma das instituições ou punição dos “agentes desviantes” não são suficientes para lidar com um modus operandi relacionado à própria estrutura das instituições democráticas, o que ressalta a necessidade de se repensar o tipo de democracia que se quer daqui para frente.
Thaiane Mendonça é doutoranda no PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), pesquisadora do GEDES (UNESP) e do LASInTec (UNIFESP).
Imagem por: Rafael Defavari; Wikimedia Commons.
[1] As milícias foram abordadas na sequência do filme “Tropa de Elite” (2007), intitulado “Tropa de Elite: o inimigo agora é outro” (2010).