Putin_(2022-02-19)

Primeiro como farsa, depois como tragédia: Crimeia, Ucrânia e as novas regiões anexadas pela Rússia

Danielle Amaral Makio*

Era março de 2014 quando Vladimir Putin, em seu segundo mandato presidencial, assinava o documento que reconhecia a anexação da península da Crimeia à Federação Russa. Oito anos mais tarde, a Ucrânia voltaria a ter parte de seu território integrado ao estado russo por decisão do Kremlin. O documento que reconhece as regiões de Kherson, da Zaporizhia e das Repúblicas Populares do Donbass, Donetsk (DNR) Luhansk (LNR), como parte da Rússia foi assinado em 29 de setembro de 2022, logo após a realização de referendos que sondaram o desejo das populações locais de serem anexadas. Segundo os resultados divulgados, respectivamente 87,05%, 93,11%, 99,23% e 98,42% dos habitantes de cada local apoiam a anexação. Apesar de terem contado com supostos observadores, as consultas populares, bem como a decisão pela violação da integridade territorial ucraniana, não conta com amplo reconhecimento internacional. Até mesmo a China, parceiro importante do governo russo, demonstrou cautela ao tratar do ocorrido, abstendo-se de abertamente condenar ou reconhecer a atitude de Putin. A decisão de Moscou acontece a despeito das afirmações feitas pelo Kremlin em 2014 e 2015, as quais garantem que a anexação da Crimeia não seria seguida por novas tomadas de território ucraniano pela Rússia. Nesse contexto, a nova onda de anexações levanta alguns questionamentos acerca de suas semelhanças em relação ao ocorrido em 2014, de suas motivações e de sua legitimidade.

                                       Regiões anexadas pela Rússia, por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

De início, é preciso salientar que há diferenças e semelhanças fundamentais entre o contexto da Crimeia e das quatro regiões recentemente anexadas. O contexto político da primeira à época de sua anexação era razoavelmente distinto daquele que vemos nas outras. A península crimeia, em virtude de seu processo de formação populacional e política, passou por diversos períodos históricos nos quais seu pertencimento à Rússia ou Ucrânia foi contestado até chegar à situação em que gozava de relativa autonomia administrativa em relação a Kyiv. Tal “independência” era reconhecida pelas autoridades ucranianas e não tinha seu status contestado como o que ocorria em regiões do Donbass, desde 2014, quando coalizões irredentistas tomaram o poder em certas províncias e instalaram regimes próprios. Dessa forma, a península mantinha certo distanciamento, ainda que limitado, das decisões políticas da capital. É por conta destes dispositivos que, entre outros exemplos, a Crimeia foi capaz de criar diretrizes particulares acerca de algumas políticas linguísticas e educacionais.

Outro ponto de afastamento importante entre os locais aqui analisados são as vantagens estratégicas oferecidas por cada um. Ainda que Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk favoreçam Moscou na medida em que lhe oferecem maior presença nos mares de Azov e Negro e conectem a Rússia à Crimeia por terra, esta conta com atrativos únicos. Entre estes, destacamos (i) o acesso privilegiado ao Mar Negro, uma vez que a península se localiza em região muito propícia à navegação, é próxima de jazidas de hidrocarbonetos e tem boa estrutura portuária; e (ii) a presença da base naval de Sevastopol, onde se localiza o principal destacamento da Marinha russa. Para além das vantagens geopolíticas representadas pelo entreposto militar, Sevastopol é também importante para o Kremlin do ponto de vista afetivo e discursivo. Conhecida como a “cidade da glória”, o local é usualmente usado para invocar os avanços tecnológicos e militares que garantiram a grandeza do Império Russo, narrativa muito mobilizada por Vladimir Putin em sua política de grande potência.

Entre as semelhanças observadas entre a anexação das cinco regiões aqui mencionadas, podemos destacar (i) os fortes traços de russofonia e de aproximação a símbolos étnicos e culturais da Rússia; (ii) a queda nos níveis de aprovação popular em relação a Vladimir Putin, que também passava por um período de baixa popularidade às vésperas da incursão sobre a Crimeia; e (iii) a contestação da veracidade dos referendos realizados. Apesar de ter uma estrutura administrativa que permitia maior “alinhamento” à política russa, a Crimeia contou com um processo de consulta popular que, dada a ampla presença de militares russos e a rapidez com que se deu, levantou suspeitas acerca da legitimidade de seu resultado. Da mesma maneira, a ausência de cabines de votação e a intensa participação do Exército russo durante as votações nas regiões de Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk sugerem limites ao livre-arbítrio dos votantes.

Além desse contexto que torna a legitimidade dos referendos questionável, ainda deve-se considerar que, nos locais recentemente anexados, houve uma intensa onda de emigração de cidadãos e cidadãs que, podemos supor, eram em sua maioria opostos à integração à Rússia. Tal inferência é corroborada pelo resultado de pesquisas feitas antes mesmo do início da “incursão militar russa sobre a Ucrânia”, segundo as quais 80% e 90% da população de Kherson e Zaporizhia, respectivamente, era contrária à anexação. Os dados sugerem que, apesar de serem parte de uma região historicamente mais afeita a uma postura pró-Rússia, parte considerável da população local não estava disposta a renunciar à Ucrânia. Nesse contexto, na tentativa de garantir apoio irrestrito à secessão e subsequente união à Federação Russa, esta vem oferecendo uma série de benefícios aos locais, como acesso a passaporte russo, assistência social e médica, entre outros. Estas medidas, quando somadas a outras como adoção do rublo, veiculação de mídias russas e mudanças nas políticas educacionais das regiões, sugerem a estruturação de um projeto de dominação que se debruça sobre o estabelecimento de uma presença moscovita plena nos âmbitos militar, civil, burocrático e afetivo.

Apesar da legitimidade contestável do ocorrido, Vladimir Putin reiterou, à semelhança do ocorrido em 2014, que a Rússia está agindo em prol da defesa do direito de autodeterminação dos povos. A postura oficial do Kremlin se baseia em um entendimento do processo de formação estatal que julga ser a Ucrânia, sobretudo suas porções leste e sudeste – tradicionalmente mais afeitas a características etnolinguísticas tipicamente russas -, parte indissociável do estado russo. Na esteira desta narrativa, notamos também a centralidade do conceito de política externa do país, segundo o qual é dever deste proteger os povos russos e/ou russófonos, entre os quais se enquadram aqueles que habitam as regiões recém anexadas. Estas pessoas, no atual contexto de guerra que se estende desde fevereiro, estariam sob a ameaça de um governo ucraniano que persegue e intimida vida das minorias étnicas russas no país. O teor discursivo desta justificativa tem relação com a própria identidade que vem sendo promovida por Moscou sobretudo desde 2012, momento em que o Kremlin assevera sua busca por lugar de destaque na política internacional e fortalece discursos que legitimam a superioridade russa e seu dever cívico de proteger seu povo e seu Estado.

As motivações russas em relação às províncias de Kherson e Zaporizhia e às Repúblicas de Donetsk e Luhansk, porém, vão além do desejo de proteger a população. Após sofrer importantes reveses em fronts localizados na porção leste e centro-leste da Ucrânia, Moscou se vê encurralada por duas necessidades: de um lado, precisa garantir uma retomada da liderança militar do conflito, aumentando sua superioridade tática sobre a Ucrânia; do outro, precisa aumentar a moral do país perante a própria população russa, que já começa a demonstrar crescentes níveis de desaprovação das ações do governo em relação ao conflito. As anexações, nesse sentido, vêm em resposta a ambas as demandas.

Na medida em que fazem desses territórios parte da Rússia, abrem precedente para que qualquer ataque às províncias seja interpretado como um ataque ao próprio Estado russo, possibilitando, assim, uma declaração de guerra por parte do Kremlin – lembremos que, até o momento, a Rússia está oficialmente em uma “incursão militar especial”, não em guerra de fato, o que limita o número de efetivo militar que pode ser mobilizado pelo país e as armas que podem ser usadas. Uma declaração de guerra oficial, portanto, levaria ao uso total da capacidade militar de Moscou, possibilitando, inclusive, o uso de armamento nuclear. Ademais, como já mencionado, as anexações facilitam o estabelecimento de um corredor terrestre ligando Rússia à Crimeia, o que traz benefícios econômicos e militares à primeira. Do ponto de vista doméstico, a expectativa é que a união das províncias à Federação Russa aumente a aprovação do governo, seguindo os resultados positivos da guerra na Geórgia de 2008 e da anexação da Crimeia em 2014.

Os resultados de médio e longo prazo referentes aos recentes desdobramentos da guerra russo-ucraniana ainda são incertos. À semelhança do ocorrido em 2014, o Kremlin parece agir a partir de um cálculo que envolve interesses estratégicos, necessidade de garantir alta nos níveis de aprovação interna e desejo por tomar para si – ou retomar se considerarmos a visão do governo russo – regiões historicamente pertencentes ao Estado russo. Do complexo universo de razões que explicam os eventos aqui comentados, portanto, forma-se uma amálgama de identidade, afetos, memória, geopolítica e tentativa de sustentação de regime político. Nesse ínterim, ainda que Vladimir Putin tenha se declarado aberto a negociações, as recentes manobras de Moscou parecem afastá-lo de obter alguns de seus objetivos iniciais, como a desmilitarização da Ucrânia e a não adesão desta à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de forma menos traumática.

 

Danielle Amaral Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa de mestrado internacional CEERES (Central and East European, Erausian and Russian Estudies). É também pesquisadora do Gedes e do Observatório de Conflitos.

Imagem em destaque: Putin em fevereiro de 2022, por Kremlin.ru, CC BY 4.0.

Imagem no corpo do texto: Regiões da Ucrânia anexadas pela Rússia. Por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

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