Getúlio Alves de Almeida Neto*
Maria Eduarda Carvalho de Araujo**
Como citar este artigo: ALMEIDA NETO, Getúlio Alves de; ARAUJO, Maria Eduarda Carvalho de. O novo governo Trump e a guerra na Ucrânia: possíveis indícios e cenários. CIRE – Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético, 26 dez. 2024. DOI: 10.5281/zenodo.14552263.
RESUMO
A vitória de Donald Trump contra Kamala Harris para a presidência dos Estados Unidos traz novas especulações sobre o futuro da guerra na Ucrânia. Neste artigo analisamos o impacto dessa transição política, com base no histórico do primeiro mandato de Trump e suas declarações desde 2022. Utilizando análise documental e bibliográfica, examinamos as possíveis mudanças no apoio estadunidense à Ucrânia e os efeitos na dinâmica do conflito. Concluímos que a postura ambígua de Trump e seu possível foco em interesses domésticos sugerem uma redução no apoio, o que pode impactar as negociações de paz e a posição militar ucraniana.
Palavras-chave: Rússia, Estados Unidos, Donald Trump, Guerra na Ucrânia, política externa.
Introdução
A vitória do candidato Republicano Donald Trump contra a atual vice-presidente Kamala Harris, então candidata à Presidência dos Estados Unidos da América (EUA) pelo Partido Democrata, tem repercutido nas análises e projeções sobre o futuro da guerra na Ucrânia. Desde o início do conflito, os Estados Unidos têm sido o principal apoiador do governo de Volodymyr Zelensky através do envio de recursos que somam aproximadamente 175 bilhões de dólares aprovados pelo congresso estadunidense. Mais recentemente, a decisão do governo de Joe Biden de permitir o uso de mísseis de longo alcance (Sistema de Mísseis Táticos do Exército, ATACMS, na sigla em inglês) contra o território russo, contribuiu para a escalada da guerra. Em resposta, a Rússia atacou a Ucrânia com míssil hipersônico de médio alcance, Oreshnik, utilizado pela primeira vez.
Desde então, tem-se especulado os motivos que levaram a Administração Biden a autorizar o uso dos mísseis ATACMS pela Ucrânia somente após ter sido derrotado nas eleições presidenciais. Uma das principais hipóteses debatidas é que a vitória de Donald Trump acarreta uma possível diminuição do apoio estadunidense a Kiev a partir de janeiro de 2025, em razão de declarações de Trump de que “acabaria com o conflito em 24 horas”. Tal declaração poderia significar uma possível pressão sobre o governo ucraniano para ceder parte de seu território à Rússia, o que consagraria o governo de Vladimir Putin como politicamente vitorioso na guerra. Nesse sentido, uma possível explicação para a escalada da guerra a partir do uso de armamentos estadunidenses contra a Rússia é a tentativa do governo Biden de avançar alguma vitória militar no conflito e aumentar o espaço de manobra da Ucrânia – sobre influência dos interesses estadunidenses – em possíveis negociações de paz futuras.
Portanto, neste texto, buscamos entender os primeiros indícios de uma possível mudança de postura do governo dos EUA sob Trump e projetar cenários no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia. Para isso, analisamos a postura de Donald Trump em relação à Rússia durante seu primeiro mandato, inserindo as declarações do recém-eleito presidente dos Estados Unidos desde a eclosão do conflito em fevereiro de 2022 – principalmente durante a campanha de 2024 –, e as indicações de nomes para cargos-chave na condução da política de Washington em relação à guerra. Com esta análise, temos como objetivo compreender os possíveis impactos dessa transição de governo nos desdobramentos da guerra russo-ucraniana. Argumentamos que a eleição de Donald Trump, marcada por sua postura ambígua e de priorização dos interesses domésticos dos EUA, abre possibilidades de mudanças significativas na condução da guerra na Ucrânia, especialmente no que diz respeito à vantagem militar e a condução da política da Rússia em um contexto complexo de uma ordem mundial em transição.
O primeiro governo Trump e as relações com a Rússia
Eleito em 2016, Donald Trump foi o 45ª Presidente dos Estados Unidos entre 20 de janeiro de 2017 e de 20 de janeiro de 2021. Desde a campanha presidencial em 2016, especulou-se sobre a interferência russa nas eleições estadunidenses com objetivo de favorecer o então candidato Donald Trump. Investigações foram conduzidas inicialmente por agências de inteligência dos Estados Unidos e, em 2017, passaram a ser lideradas pelo Departamento de Justiça, que nomeou Robert Mueller, ex-diretor do FBI, como Conselheiro Especial para as investigações sobre a interferência russa nas eleições do país. Em março de 2019, Robert Mueller publicou o relatório final no qual afirmava que, apesar de não poder inocentar totalmente Donald Trump e sua equipe de campanha das acusações, não encontrou provas suficientes de que estes teriam conspirado com agentes russos e/ou tentado obstruir as investigações e a justiça estadunidense.
O possível conluio entre a equipe de Trump com agentes russos foi alimentado, principalmente, pela suposta admiração pessoal de Trump em relação a Putin – atribuída a suas falas sobre o presidente russo – e de que Putin teria preferência por um governo republicano em detrimento da alternativa democrática para fazer avançar seus interesses em regiões que considera de sua primazia, como a Ucrânia e Geórgia. Ainda, durante a campanha presidencial, Trump afirmou o interesse de reaproximar Rússia e Estados Unidos, considerando a cooperação entre os dois países necessária no combate ao terrorismo.
Não obstante, o que se observou sobre as relações Washington-Moscou durante o primeiro mandato de Donald Trump foi a continuidade do distanciamento entre os dois países que havia se iniciado desde a Guerra da Geórgia, em 2008, e se intensificado sobretudo após a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014. Embora uma possível tendência de reaproximação entre os dois países pautadas pela alegada simpatia pessoal entre os dois líderes, as diferenças entre os interesses de política externa – em especial na Ucrânia e Síria – impediram que, de fato, pudesse haver uma reaproximação mais robusta.
Assim, a Administração Trump ampliou as sanções impostas à Rússia durante o governo de Barack Obama em resposta à anexação da Crimeia, continuou o apoio financeiro e militar às forças ucranianas contra os separatistas pró-Rússia no contexto da Guerra do Donbass iniciada em 2014. No entanto, Donald Trump já se mostrava crítico ao fato de que os Estados Unidos eram os maiores apoiadores do governo de Kiev na ocasião, alegando não ser justo que o país carregasse essa responsabilidade mesmo estando longe do continente europeu, e que os outros países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) deveriam ser mais ativos na questão ucraniana do que os EUA (KELLOGG; KEITZ, 2024).
Para além da guerra na Ucrânia, as relações entre EUA e Rússia durante o primeiro governo Trump foi marcada por outros elementos de distanciamento. Trump criticou a Alemanha – e a Europa como um todo – por sua dependência energética em relação à Rússia, e impôs sanções contra o projeto Nord Stream II, gasoduto ligando a Rússia e a Alemanha. Na Síria, Washington e Moscou se mantiveram em lados opostos no contexto da guerra civil, havendo inclusive um ataque aéreo estadunidense contra mercenários russos do Grupo Wagner após estes terem avançados contra bases dos EUA (KELLOGG; KEITZ, 2024).
O maior exemplo da contínua desconfiança estratégica entre EUA e Rússia foi a retirada unilateral dos EUA em 2018 do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), muito embora esse movimento provavelmente tenha mais a ver com a necessidade de incluir a China em um novo acordo, do que apenas uma preocupação em relação à Rússia. O tratado havia sido assinado entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, em 1987, e previa a eliminação dos mísseis balísticos de alcance intermediária, nucleares ou convencionais. Ao anunciar a retirada dos EUA do acordo, Trump alegou que a Rússia havia abandonado as regras do acordo há muito tempo. Em agosto de 2019, o tratado foi oficialmente encerrado entre as partes. Trump também retirou os Estados Unidos do Tratado de Céus Abertos, em 2020, seguido pela denúncia russa do mesmo tratado no ano seguinte.
Fora da presidência, Trump acumulou uma série de declarações sobre a guerra na Ucrânia reiterando o fato de que a decisão de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia teria sido inteligente, uma vez que a Rússia estaria incorporando uma grande extensão de território estratégico, ao passo que as sanções impostas pela Administração Biden seriam brandas; reafirmou sua boa relação pessoal com Putin; afirmou que seria capaz de encerrar o conflito em 24 horas após se reunir com Putin e Zelensky; e criticou os países europeus por não contribuírem para o auxílio à Ucrânia no mesmo montante que os Estados Unidos, novamente se referindo à proximidade geográfica dos países europeus com a Ucrânia como elemento que justificasse o auxílio, ao passo que a distância em relação ao Washington demonstraria como a questão ucraniana não é tão relevante para os interesses estadunidenses. Por fim, em debate presidencial em setembro deste ano, Trump se recusou a responder se deseja que a Ucrânia vença a guerra, afirmando que seu objetivo é acabar com o conflito e salvar vidas. Também afirmo que caso fosse o presidente dos Estados Unidos em 2022, Putin jamais teria invadido a Ucrânia.
Não obstante, não se deve tomar as declarações de Trump fora do cargo de Presidente como verdades absolutas sobre sua postura em relação à guerra na Ucrânia. Enquanto oposição ao governo Democrata, é de se esperar de qualquer candidato críticas à forma como o atual governo estadunidense tem conduzido as ações desde fevereiro de 2022. A figura de Trump, sobretudo, é marcada por falas hiperbólicas que tendem a causar um impacto entre seus apoiadores maior do que a realidade das ações práticas revelam. Em especial no contexto de campanha eleitoral, suas falas devem ser analisadas mais como um discurso ao ambiente doméstico com objetivos eleitoreiros do que uma garantia de seu posicionamento externo quando assumir o cargo.
Primeiros indícios
Sobre a postura inicial de Trump em relação à guerra na Ucrânia, o máximo que se pode conjecturar, por hora, baseia-se nos indícios que temos a partir dos nomeados para cargos-chave em seu governo, e considerando que o Partido Republicano terá maioria nas duas casas do Legislativo. Em primeiro lugar, J.D. Vance, então senador de Ohio e eleito vice-presidente na chapa de Donald Trump, é um ávido crítico da ajuda militar dos EUA à Ucrânia, em especial devido aos custos financeiros envolvidos. Durante a campanha, Vance defendeu a necessidade de negociar com o governo de Vladimir Putin, caracterizando-o como um adversário e competidor, mas não como um inimigo dos Estados Unidos. Ainda, Vance defende uma zona desmilitarizada entre Rússia e Ucrânia e adoção do status de neutralidade pela Ucrânia, que se absteria de sua intenção de aderir à OTAN. Outro nome é do senador da Flórida, Marco Rubio, apontado para Secretário de Estado, que deu declarações defendendo que a Ucrânia busque um acordo negociado com Moscou, ao invés de tentar recuperar todo o território ocupado por tropas russas. Em abril, Marco Rubio foi um dos 15 senadores a votar contra o pacote de ajuda de 61 bilhões de dólares à Ucrânia. Em setembro, afirmou que: “não está do lado da Rússia”, mas que “a realidade é que o modo como a guerra na Ucrânia vai terminar é com um acordo negociado”. Em 6 de novembro, Marco Rubio declarou: “Eu acho que os ucranianos foram incrivelmente corajosos e fortes ao enfrentar a Rússia, mas, no final das contas, o que estamos financiando aqui é uma guerra em um impasse, e ela precisa ser trazida a uma conclusão, ou aquele país será jogado para trás 100 anos.”
Para o cargo de Secretário da Defesa, Trump nomeou Pete Hegseth, veterano do Exército e apresentador da Fox News. Hegseth tem sido crítico da OTAN, considerando os aliados europeus dos Estados Unidos “ultrapassados, superados belicamente, invadidos e impotentes” em seu livro The War on Warriors: Behind the Betrayal of the Men Who Keep Us Free. Além disso, em entrevista ao Podcast “Shawn Ryan Show”, em 7 de novembro de 2024, Hegseth afirma ser contra uma intervenção direta dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia em razão da possível escalada nuclear do conflito. O ex-militar, que atuou no Afeganistão e no Iraque, afirmou que os Estados Unidos desperdiçaram 20 anos de dinheiro nestes países, e que estão seguindo os mesmos passos na Ucrânia.
Por fim, um dos nomes mais importantes que indica um possível posicionamento do governo Trump em relação à guerra na Ucrânia é Keith Kellogg, nomeado como enviado especial para a Ucrânia e Rússia, cargo criado por Trump. Kellog é um tenente-general aposentado do Exército estadunidense que foi chefe de gabinete do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca durante o primeiro mandato de Trump de 2017 a 2021, e Conselheiro de Segurança Nacional do então vice-presidente Mike Pence. A princípio, acredita-se que o plano a ser apresentado por Kellogg para a solução do conflito tem suas bases no artigo publicado por ele, em conjunto com Fred Fleitz, pela organização America First Policy Institute, criada em 2021 para promover a agenda de políticas trumpistas nos Estados Unidos. No texto, intitulado America First, Russia and Ukraine, os autores criticam a Administração Biden pela ocorrência e prolongamento da guerra, afirmando que o conflito poderia ter sido evitado, e que acabou se transformando numa guerra de procuração dos Estados Unidos contra a Rússia sem uma estratégia definida dos objetivos a serem alcançados. Consequentemente, os Estados Unidos se abstiveram de promover qualquer tentativa de cessar-fogo e negociações de paz.
Kellogg e Fleitz constatam a improvável vitória ucraniana no campo militar, afirmam que o envio contínuo de armamentos dos EUA para a guerra está drenando os estoques de armas estadunidenses, e que o governo dos Estados Unidos tem outras prioridades domésticas mais importantes do que os interesses na guerra da Ucrânia. Sobretudo, afirmam que o prolongamento da guerra colabora para a crescente aproximação russa com a Coreia do Norte, o Irã e a China.
Ao final do artigo, os autores propõem os seguintes pontos que poderiam levar ao fim da guerra: 1) os Estados Unidos continuariam a armar a Ucrânia e fortalecê-la a fim de evitar novos avanços russos. No entanto, essa ajuda estaria condicionada à participação ucraniana em negociações de paz com a Rússia; 2) a fim de convencer Putin a participar das negociações, os líderes da OTAN deveriam oferecer o adiamento indefinido da entrada da Ucrânia na aliança; 3) Moscou poderia receber algum alívio das sanções em troca de cumprir um cessar-fogo, estabelecer uma zona desmilitarizada e participar de negociações de paz; 3) a Ucrânia não seria obrigada a renunciar ao objetivo de recuperar seu território, mas teria de aceitar que essa passa por uma solução diplomática e não bélica e que dificilmente ocorreria enquanto Putin estiver no poder; 4) os Estados Unidos e seus aliados ocidentais só suspenderiam por completo as sanções contra a Rússia e normalizariam as relações com Moscou após um acordo de paz final assinado pelas partes que fosse aceitável para Kiev; 5) a reconstrução da Ucrânia seria financiada através de taxas aplicadas sobre as vendas de energia russa.
Ademais, suas relações com líderes europeus acentuam a dubiedade de seus objetivos. Em fevereiro, o presidente francês, Emmanuel Macron, sugeriu a possibilidade de a Europa enviar tropas à Ucrânia após discussões entre líderes europeus em Paris. Na ocasião, a proposta foi rejeitada pela OTAN e outros atores. No entanto, o esforço de Trump por um cessar-fogo reacendeu este debate. Autoridades francesas enfatizaram que a iniciativa dependeria de algum tipo de apoio dos EUA, mas permanece incerto se o governo Trump estaria disposto a considerar tal medida. Assim, a possível postura de priorização dos interesses domésticos dos EUA parece ser um fator que adicionaria complexidade às possibilidades de atuação do Ocidente na guerra em curso. Essa postura reflete-se nas relações com líderes europeus e com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Durante a reabertura de Nôtre-Dame, em 7 de dezembro, Trump afirmou a Zelensky e a Macron de que não apoiava a adesão da Ucrânia à OTAN, argumentando que a Europa deveria assumir o papel principal na defesa e no apoio à Ucrânia.
A despeito das intenções do novo governo Trump de iniciar negociações de paz com a Rússia, é necessário ponderar o posicionamento russo neste contexto. Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, Putin não estaria disposto a congelar as linhas atuais de combate, e só aceitaria participar de negociações quando seus objetivos forem atingidos. Nesse caso, as demandas russas contemplam, atualmente: 1) o abandono das ambições ucranianas d e entrar na OTAN; 2) retirada das tropas ucranianas das quatro zonas ocupadas parcialmente pela Rússia: Donetsk, Luhansk, Kherson and Zaporizhzhia; 3) reconhecimento Crimeia enquanto parte da Federação Russa.
Possíveis cenários
A partir do exposto, consideramos que quatro cenários podem se desenvolver a partir de 2025:
1 – Trump cessa por completo o apoio à Ucrânia e as tropas russas continuam a avançar sobre território ucraniano antes de iniciarem negociações de paz, com o objetivo de obter maior quantidade de território possível;
2 – Trump cessa por completo o apoio à Ucrânia, há o congelamento do conflito, e Rússia e Ucrânia aceitam participar de negociações de paz;
3 – Trump propõe o congelamento do conflito, mas Rússia e Ucrânia não aceitam as condições e o conflito continua nos moldes atuais;
4 – Não há o início de negociações de paz e a guerra continua a escalar;
Em qualquer um destes cenários, no entanto, o status da Ucrânia em relação à OTAN é a questão fundamental para a solução do conflito. A expansão da aliança militar ocidental para o leste é o tema mais sensível para a segurança russa desde o processo de dissolução do Pacto de Varsóvia e da União Soviética. Muito antes das falas de Trump e de outros membros do seu governo, essa percepção já era clara para muitos dentro do próprio Estados Unidos da América, como é o caso do teórico John Mearsheimer, crítico desde os anos 1990 da contínua incorporação de países que anteriormente compunham a URSS, sobretudo da perspectiva de adesão da Ucrânia ao bloco.
No entanto, a incerteza sobre as intenções de ambos os lados sobre esta questão será, provavelmente, a principal dificuldade em um possível processo de negociação de paz. Do lado russo, qualquer solução momentânea e que não deixe explícito em acordo oficial e escrito o status de neutralidade e de renúncia do pleito ucraniano de entrar para a OTAN é insatisfatória. Afinal, é de interesse primário russo evitar que o mesmo cenário se repita após as promessas feitas à Gorbachev, no final da Guerra Fria, de “nenhum centímetro para o leste”. Já do lado ucraniano e da OTAN, há o receio de que garantir a neutralidade ucraniana e a renúncia do país aderir à aliança irá possibilitar a Putin continuar com o ímpeto expansionista e, futuramente, tentar controlar todo o território ucraniano.
Considerações finais
Após a eleição de Donald Trump como novo presidente dos Estados Unidos, muito tem se especulado sobre o futuro posicionamento do governo estadunidense em relação à guerra da Ucrânia, e a possibilidade de, após quase três anos de conflito, terem início negociações de paz entre Moscou e Kiev. A forma como Trump expressa seus posicionamentos, ao mesmo tempo categóricos e hiperbólicos, mas também dúbios e sem maiores detalhes, colabora para que diferentes interpretações e análises sejam feitas acerca do que esperar de seu segundo mandato como presidente. Contudo, afirmações de que Trump será capaz de pôr um fim imediato à guerra são ingênuas e carecem de uma visão holística que engloba os interesses não somente de Donald Trump e de seus apoiadores, mas também os interesses russos, ucranianos e a compreensão sistêmica de uma ordem mundial em processo de transição.
Naturalmente, a postura de Trump de priorizar os interesses estadunidenses domésticos em detrimento uma presença maior externamente, epitomizada pelo discurso America First, e de seu círculo de conselheiros mais próximos, em especial o enviado Keith Kellogg, faz com que seja possível conjecturar uma diferença na condução da guerra em relação ao governo de Joe Biden. Nesse sentido, a simples menção a negociações de paz traz um indício mais promissor para o fim do conflito do que a postura atual estadunidense de auxílio financeiro e bélico constante à Ucrânia, a tentativa de isolar Putin e sancionar pesadamente a economia russa.
Assim, é possível afirmar que o governo Trump pode, por iniciativa própria, pressionar a Ucrânia e a Rússia ao início às negociações de paz. Isso não implica, no entanto, no sucesso destas negociações, muito menos em acreditar na possibilidade de resolução do conflito em 24 horas como propagado por Trump. Enquanto divergências estratégicas entre as partes não forem resolvidas – sobretudo no que tange à disputa territorial e a participação ou não-participação da Ucrânia na OTAN, o conflito continuará a se estender, podendo se tornar ainda mais complexo, uma vez que surgem discussões entre os membros da OTAN sobre a possibilidade de enviar tropas europeias em solo ucraniano em uma iniciativa de manutenção de paz, que não configuraria uma operação da própria OTAN. Estes aspectos e divergências contribuem para a permanência e aprofundamento do impasse militar que, por hora, parece mais favorável ao avanço russo do que a capacidade de defesa ucraniana. Por sua vez, a vantagem atual russa pode implicar em uma maior necessidade da Ucrânia de renunciar a seu território do que Moscou fazer concessões.
Consequentemente, Putin parece ter a vantagem de uma vitória política em uma possível resolução diplomática do conflito. Ironicamente, esse cenário é o que torna mais improvável o abandono completo do futuro governo Trump em relação a Kiev, como aventado por aqueles que argumentam que Trump, por admiração pessoal por Putin e seu pouco interesse na continuidade de auxílio estadunidense à Ucrânia, cessaria, de imediato, o apoio de Washington. No caso de uma vitória política de Putin, pode-se afirmar se tratar de uma grande derrota dos Estados Unidos em um conflito com traços de transição hegemônica, que poderia sacramentar o fim da hegemonia estadunidense e da ordem internacional liberal característica do período pós-Guerra Fria.
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*Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP). Contato: getulio.neto@unesp.br
**Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Contato: mec.araujo@unesp.br