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Sem cessar-fogo, sem negociação: a atuação do Eixo da Resistência após o 07 de Outubro

*Karime Cheaito

Em 07 de Outubro de 2023, organizações palestinas, sob a liderança do Hamas, romperam as cercas da Faixa de Gaza, invadiram e atacaram o território sul de Israel, como uma reação que refletia o esgotamento das políticas coloniais de apartheid, violência e abusos de poder perpetrados pelos sucessivos governos israelenses. Imediatamente, o governo de Israel, sob o comando de Benjamin Netanyahu, declarou guerra. No momento em que este ensaio é escrito, 26.900 palestinos foram mortos na Faixa de Gaza, a maioria mulheres e crianças, e 1.139 israelenses foram mortos pelos ataques do Hamas (dados de 31/01/2024). Após uma denúncia realizada pela África do Sul, Israel está sendo julgado pela Corte Internacional de Justiça por crime de genocídio.

Analisa-se nesta investigação a atuação do Eixo da Resistência na conjuntura médio-oriental após a reação do Hamas contra Israel em 07/10. Para isso, buscou-se compreender como o bloco tem, historicamente, se estruturado e atuado, apesar das divergências entre seus membros.

O Eixo da Resistência é, atualmente, liderado pelo Irã, que possui o governo sírio como parceiro estratégico e político (Munareto; Silva, 2023). Além disso, inclui grupos armados não-estatais da Síria; o Hamas e a Jihad Islâmica, nos territórios palestinos; o Hezbollah, no Líbano; as Unidades de Mobilização Popular do Iraque; e os Houthis (ou Ansar Allah), no Iêmen, que foram os últimos a ingressarem no Eixo (em 2015) e, em comparação com os demais membros, possuem um auxílio limitado advindo do Irã (Juneau, 2016).

Embora o 07/10 tenha explicitado a sua capacidade de atuação no Oriente Médio, o bloco não surgiu nesta data. De acordo com El Husseini (2010), sua origem data de 2003, quando o Iraque foi invadido pelos EUA, no contexto da Guerra ao Terror, e teve como fundador o comandante iraniano Qassem Soleimani, da Força Quds, unidade de elite do grupo paramilitar Guarda Revolucionária. Soleimani visava construir uma rede com aliados regionais e, desde o início, defendeu que cada parte fosse autossuficiente.

Apesar das divergências entre seus membros – como se evidenciou na guerra da Síria – o Eixo se consolidou e tem mantido sua unidade, primordialmente, por conta do alinhamento de seus objetivos e bases ideológicas. Todos os membros, apesar de suas pautas locais, possuem uma agenda antissionista e anti-EUA. A ideia de um aliado comum – o Irã – e, principalmente, um inimigo comum – Israel e os EUA – tem garantido sua coesão e existência.

Nesse sentido, embora o Irã seja responsável por fornecer a maior parte dos armamentos e treinamentos aos membros do bloco, cada ator domina suas próprias técnicas, estratégias e táticas e atua a partir de seus próprios objetivos. Por esse motivo, a pesquisadora Amal Saad afirma: o Eixo da Resistência é mais do que um conjunto de milícias apoiadas pelo Irã. Nessa mesma linha, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano afirmou: “Não temos nenhum papel na tomada de decisões em nome de qualquer partido na região”. Essa percepção também foi partilhada por Brian Katz, ex-funcionário do governo dos EUA: os aliados não-estatais do Irã “não são simplesmente representantes iranianos. Pelo contrário, tornaram-se um conjunto de atores político-militares maduros, ideologicamente alinhados, militarmente interdependentes, comprometidos com a defesa mútua”.

Essa perspectiva confronta as análises que identificam esses atores como proxies iranianos (Levitt, 2015; 2022; Khan; Zhaoying, 2020). Para El Husseini (2002) e Saad-Ghorayeb (2002), as relações entre o Irã e os demais membros do Eixo não são tão unificadas e interdependentes. Cada organização está, em primeira estância, conectada aos seus objetivos políticos, majoritariamente nacionalistas e pragmáticos. Após Soleimani ter sido assassinado pelos EUA em 2020, seu sucessor, Esmail Qaani, buscou descentralizar ainda mais o bloco, delegando cada vez mais autonomia às unidades locais e aos seus comandantes no que se refere às decisões táticas e operacionais.

Apesar da autonomia, a identificação de Israel como um inimigo próximo e o apoio militar entre os seus membros têm garantido a sua unidade. Em seu interior, enquanto o Irã fornece assistência militar e financeira ao Hezbollah, Hamas, Houthis e demais grupos iraquianos, a Síria tem oferecido seu território como rota de transporte ao Hezbollah, que tem auxiliado na formação técnica e militar dos demais membros.

O Eixo da Resistência se originou com uma perspectiva a longo prazo e tem se desenvolvido numa coligação em tempos de guerra, como se evidenciou em 2013, durante a guerra da Síria (com exceção do Hamas, que se posicionou contrário ao governo de Bashar al-Assad)  e no Iraque em 2014, na luta contra o ISIS ou DAESH. Nessas ocasiões, esses grupos puderam aprofundar suas capacidades militares, principalmente no que concerne aos combates urbanos, e aperfeiçoaram a lógica estratégica de sua aliança.

O 07/10 representou um importante marco ao simbolizar a primeira vez que uma coligação composta majoritariamente por atores não-estatais se envolveu diretamente em um conflito em apoio a outro ator não-estatal: o Hamas. Nos últimos 4 meses, o Hezbollah, os Houthis e grupos iraquianos e sírios lançaram ataques contra alvos israelenses e estadunidenses em apoio aos palestinos com um objetivo comum: forçar Israel a um cessar-fogo em Gaza.

Como manifestado publicamente pelo Hezbollah e pelos Houthis, tanto na fronteira com Israel como no Mar Vermelho, nenhuma negociação ocorrerá enquanto não houver cessar-fogo nos territórios palestinos. Desde o dia 08/10, três frentes de batalhas foram travadas: 1) entre Hezbollah e Israel; 2) os ataques dos grupos iraquianos contra bases estadunidenses no Iraque e na Síria; 3) os ataques dos Houthis contra navios de carga no Mar Vermelho.

Com o assassinato de Saleh al-Arouri – funcionário do alto escalão do Hamas – em Beirute no dia 02/01/24, nota-se uma escalada em toda região. O atentado representou o ataque israelense mais significativo no Líbano desde a guerra de 2006. Em resposta, o Hezbollah atacou uma das principais bases israelenses de vigilância aérea. Nos dias seguintes, a Resistência Islâmica do Iraque enviou drones para atacar bases dos EUA na Síria e no Iraque e atacou a cidade de Haifa. No Mar Vermelho, os Houthis intensificaram suas ações contra navios suspeitos de terem ligações com Israel e o Irã capturou um navio comercial no Golfo de Omã.

A atuação dos Houthis fez com que os EUA e o Reino Unido conduzissem uma série de ataques militares no Iêmen desde 11/01, fato este que tem aumentado as preocupações de escalada do conflito para uma guerra regional, pois é pouco provável que os ataques contra membros do bloco gerem um recuo, visto a identidade, os objetivos e princípios dos atores envolvidos.

Cabe destacar que o combate não tem ocorrido apenas no terreno físico. O campo de batalha tem se estendido para as redes sociais e impactado a opinião pública mundial, que tem debatido de forma inédita – em relação à dimensão da repercussão – os crimes de guerra cometidos por Israel.

Como enunciado por Nasrallah em 11/11/2023: “O mais importante neste momento é a mudança na opinião mundial em relação a Israel (…). Este desenvolvimento é do interesse da Resistência, do seu projeto e da população de Gaza (…) Com o tempo, a pressão aumenta sobre o inimigo” Desse modo, a maneira como a causa palestina reascendeu internacionalmente a partir do 07/10 pode ser identificada como uma vitória para os objetivos do Eixo da Resistência, principalmente por causa das críticas e acusações que têm sido desenvolvidas contra Israel.

Embora ainda não possamos dimensionar o impacto da opinião pública nos desdobramentos de uma solução para o conflito, o Eixo tem se evidenciado com elevado nível de coordenação e tem feito com que os EUA e seus aliados enfrentem desafios na dinâmica desses combates. Sua evolução para uma aliança, apesar da autonomia de atuação dos seus membros, está coordenada e centrada nas concepções de segurança coletiva e dissuasão alargada. A sua evolução e atual popularidade regional – manifestada publicamente – exige uma mudança fundamental na maneira como o Ocidente tem analisado as dinâmicas médio-orientais e, principalmente, suas possíveis alterações de poderes.

 

* Karime Cheaito é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre em Estudos Estratégicos (INEST/UFF) e membra do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI-PUCSP) e do Laboratório Nexus (INEST/UFF).

Imagem: cartazes retratando o fundador do Hamas, Sheikh Ahmed Yassin, o ex-comandante da Força Quds do Irã, Qassem Suleimani, e o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Sana’a, Iêmen, 4 de janeiro de 2024. Por: Mohammed Hamoud/Getty Images

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKBARZADEH, Shahram. Why does Iran need Hizbullah?: Iran and Hizbullah. The Muslim World, v. 106, n. 1, p. 127–140, 2016.

EL HUSSEINI, Rola. Hezbollah and the Axis of Refusal: Hamas, Iran and Syria. Third World Quarterly, v.31, n. 5, p. 803-815, 2010

JUNEAU, Thomas. Iran’s policy towards the Houthis in Yemen: a limited return on a modest investment. International Affairs, v. 92, n. 3, p. 647–663, 2016.

KHAN, Akbar; ZHAOYING, Han. Iran-Hezbollah Alliance Reconsidered: What Contributes to the Survival of State-Proxy Alliance? Journal of Asian Security and International Affairs, v. 7, n. 1, p. 101–123, 2020.

LEVITT, Matthew. Hezbollah: Party of Fraud – How Hezbollah Uses Crime to Finance Its Operations. Foreign Affairs, July 27, 2022.

LEVITT, Matthew. Iranian and Hezbollah Operations in South America: Then and Now. Prism: A Journal of the Center for Complex Operations, p. 119-133, 2015.

MUNARETO, Camila Hirt; SILVA, Gabriela Santos da. Casamento por convergência: identidades estatais e a aliança entre Síria e Irã. Malala, Revista Internacional de Estudos sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, v. 14, pág. 78–98, 2023.

SAAD-GHORAYEB, Amal. Hizbul̉lah: politics and religion. London: Pluto Press, 2002.

 

 

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