O governo federal, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, lançou recentemente a segunda edição do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres. Com o objetivo de atualizar os dados apresentados na primeira edição de 2014, o INFOPEN Mulheres lançado este ano traz informações e estatísticas referentes à situação do sistema prisional feminino até o ano de 2016.
Para além dos importantes dados sobre a infraestrutura e acesso a direitos básicos, como saúde e educação, dos presídios brasileiros que recebem mulheres infratoras (sejam unidades prisionais femininas ou mistas – aquelas em que há alas para homens e mulheres), o levantamento ressalta o crescente aumento de mulheres encarceradas no país. De 2000 a 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres no Brasil aumentou 455%, um valor alarmante quando observado em comparação com os três primeiros países com maior número absoluto de mulheres encarceradas: Estados Unidos (18%), China (105%) e Rússia (-2%) (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018, p. 14).
Os dados apresentados também são desagregados por estados da federação. São Paulo, Minas Gerais e Paraná aparecem no topo da lista com o maior número absoluto de mulheres encarceradas. Entretanto, quando realizada a proporção com a taxa demográfica dos estados, o Mato Grosso do Sul (MS) salta para a primeira posição como o estado que mais encarcera mulheres no país, com uma média de 113 mulheres presas para cada grupo de 100 mil (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018, p. 18).
O tipo de penalidade que mais leva as mulheres para as prisões no Mato Grosso do Sul (77% dos casos) segue a tendência nacional: o envolvimento com crimes relacionados ao tráfico de drogas. No Brasil, 62% das mulheres encarceradas são por delitos de tráfico de drogas, sendo que o segundo tipo penal mais incidente, o crime por roubo, abarca 11% da população prisional feminina (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018, p. 53). Há, portanto, uma grande diferença da taxa de mulheres encarceradas por envolvimento com o tráfico de drogas em relação aos demais tipos penais.
O aumento do número de mulheres encarceradas não é uma peculiaridade do Brasil. Na América Latina, a população carcerária feminina aumentou 51,6% entre 2000 e 2015 (em comparação com um aumento de 20% no caso dos homens) (YOUNGERS; PIERIS, 2015). O envolvimento com tráfico também aparece como principal motivo para o encarceramento das mulheres na maioria dos países. Na Argentina, Costa Rica e Peru a porcentagem passa dos 60% (YOUNGERS; PIERIS, 2015).
O aumento do encarceramento feminino e a preponderância do tráfico de drogas como o principal crime cometido ressaltam a importância de discutir o envolvimento cada vez maior de mulheres em contextos de violência e na criminalidade. Dar luz para os papeis que as mulheres exercem em situações de conflito e criminalidade é um dos esforços das discussões feministas na área de Relações Internacionais (TICKNER, 2001; SJOBERG, VIA, 2010). As análises levantam discussões que visam romper com certos estereótipos que designam a feminilidade como inerentemente pacífica (MOURA, 2008).
Há uma percepção socialmente construída de que as mulheres não praticam violência. E quando o fazem, estão indo contra ao entendimento ideal do que venha a ser mulher – uma pessoa frágil, sentimental e propensa aos cuidados maternos (SJOBERG; GENTRY, 2007). Assim, para justificar os casos em que mulheres cometem atos ilícitos, como atentados terroristas e o envolvimento com o tráfico internacional de drogas, muitas análises apontam para uma possível perturbação ou deficiência biológica nessas mulheres, as quais as impedem de exercerem sua feminilidade em total plenitude. Outra justificativa também utilizada é a que relaciona o ato praticado pela mulher aos laços afetivos que esta possui com seu companheiro e filhos (SJOBERG; GENTRY, 2007). As mulheres utilizariam da violência para atender um pedido de seus companheiros, para proteger suas famílias ou vingar-se da morte de seus entes familiares, seguindo, portanto, um comportamento de mulher/mãe protetora e preocupada com as questões da vida privada.
Nessas duas linhas de explicação recorrentes podemos observar um duplo movimento: de condenação da feminilidade dessas mulheres, uma vez que rompem com o papel que a sociedade espera delas, e de negação da agência das mulheres, ou seja, a iniciativa de praticar o ato ilícito não necessariamente parte delas, mas sim é uma demanda que vem de outros atores (principalmente homens próximos à elas) ou é diretamente relacionado a eles (SJOBERG; GENTRY, 2007). Às mulheres não é computada a possibilidade de praticar a violência por interesses econômicos e políticos, crenças ideológicas ou apenas o desejo pela emoção que o mundo da criminalidade poderia proporcioná-la.
Apesar da maioria das mulheres exercerem a atividade de “mula” no tráfico de drogas – aquelas que levam as drogas em seus corpos e bagagens – há aquelas que alcançam posições de liderança nas organizações criminosas. Howard Campbell (2008) faz uma interessante análise sobre os vários perfis de mulheres envolvidas com o tráfico de drogas e narra histórias de algumas que chefiaram grandes carteis no México, chamando a atenção para os desejos pessoais e ambições econômicas que impulsionaram essas mulheres à criminalidade. Mariana Barcinsk (2012) traz algumas entrevistas com mulheres que chefiavam “bocas de fumo” em comunidade do Rio de Janeiro, apresentando como a participação nessa atividade ilícita muitas vezes representa uma forma dessas mulheres conseguirem maior visibilidade dentro do seu meio social.
Dar visibilidade para o papel exercido pelas mulheres nas políticas globais, seja praticando ações lícitas ou ilícitas, e para os impactos que elas sofrem nos conflitos permite uma análise mais real dos atores e interesses que permeiam os contextos de violência e criminalidade. Além da contribuição ao processo de desconstrução de uma única imagem sobre o que é ser mulher (e o que é ser homem), esse olhar atento e crítico em relação às mulheres que praticam violência pode ser positivo para o desenvolvimento de políticas estatais preparadas para lidar e atender esse “novo” perfil de agente criminoso. Como o próprio levantamento do INFOPEN Mulheres 2018 apresenta, a maior parte dos presídios foi projetada para atender o público masculino, o que gera tantas deficiências de infraestrutura e de políticas de saúde específicas para atender as necessidades das mulheres encarceradas (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL, 2018).
Helena Salim de Castro é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e professora da Universidade Paulista (UNIP).
Imagem: INFOPEN – Mulheres. Por: Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Referências:
BARCINSKI, Mariana. Mulheres no tráfico de drogas: a criminalidade como estratégia de saída da invisibilidade social feminina. Contextos Clínicos, v. 5, n. 1, 2012, p. 52-61. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822012000100007>.
CAMPBELL, Howard. Female drug smugglers on the US-Mexico border: Gender, crime, and empowerment. Anthropological Quarterly, v. 81, n. 1, p. 233-267, 2008. Disponível em: < https://muse.jhu.edu/article/235056/summary> .
MOURA, Tatiana. Rostos Invisíveis da Violência Armada: um estudo de caso sobre o Rio de Janeiro. Gênero. Niterói, v. 8, n. 2, 2008, p. 227-256.
SJOBERG, Laura; GENTRY, Caron E. Mothers, monsters, whores: women’s violence in global politics. Zed Books, 2007.
SJOBERG, Laura. VIA, Sandra. Gender, war, and militarism: feminist perspectives. ABC-CLIO, 2010.
TICKNER, J. Ann. Gendering world politics: Issues and approaches in the post-Cold War era. Columbia University Press, 2001.
YOUNGERS, Coletta A.; PIERIS, Nischa (Coord.). Mujeres políticas de drogas y encarcelamiento: Una guía para la reforma de políticas en América Latina y el Caribe. Organização dos Estados Americanos, 2015. Disponível em:
<https://www.oas.org/es/cim/docs/WomenDrugsIncarceration-ES.pdf>.