Gastos militares e investimentos em Defesa: a qual futuro nos leva a ponte?

No início do mês passado, o Instituto Internacional de Pesquisa de Paz de Estocolmo – SIPRI, na sigla em inglês – publicou seu relatório periódico sobre os gastos militares mundiais no ano de 2017. O Instituto produz e divulga, gratuitamente, um dos bancos de dados mais extensivos e consistentes a respeito dos dispêndios militares em nível mundial. A publicação repercutiu particularmente na imprensa brasileira devido ao alarde criado em torno dos dados referentes aos gastos militares nacionais que, segundo o SIPRI, apresentaram o maior crescimento desde 2010.
A literatura especializada discute os fatores que influenciam o incremento e/ou a redução nos orçamentos militares, considerando desde motivações de natureza securitária até dinâmicas políticas internas. A despeito dessa complexidade, frequentemente o argumento econômico, sobretudo nos ditos países em desenvolvimento, veste-se de prioridade para justificar a manutenção ou aumento dos orçamentos de Defesa. No entanto, tal vinculação lógica entre os gastos militares e o desenvolvimento econômico é objeto de intenso debate no âmbito teórico da literatura. De maneira geral, o que os estudos mais recentes indicam é que há um custo econômico nos gastos militares, isto é, ao contrário de um efeito positivo sobre o crescimento econômico, tais dispêndios militares tendem a afetar negativamente a economia de um país (DUNNE; TIAN, 2013, p. 8-9).
Em perspectiva histórica, após elevados gastos na segunda metade da década de 1980, a dissolução da URSS e o consequente término da Guerra Fria marcou um período de substantivas reduções nos dispêndios militares mundiais, estimulando processos de transformação em setores industriais de países produtores de armamentos. Um notório exemplo foram os EUA, país no qual houve um acentuado processo de concentração na indústria de defesa ao longo da década de 1990. Entretanto, sobretudo após as invasões de Afeganistão e Iraque, os gastos militares mundiais apresentaram um contínuo crescimento ao longo da primeira década dos anos 2000.
Em linhas gerais, a trajetória evolutiva dos gastos militares brasileiros acompanhou a tendência mundial desde o início do século XXI. Contudo, uma leitura geral e agregada sobre tais dispêndios mostra-se insuficiente para lançar luz sobre a dinâmica e as idiossincrasias dos gastos militares brasileiros. Dessa forma, a fim de produzir melhores subsídios sobre o que significam tais dados, faz-se necessário qualificá-los de acordo com a natureza da despesa. Em primeiro lugar cabe apontar os elementos que compõem tais gastos, os quais reúnem custos relacionados a uma ampla sorte de despesas, tais como: pessoal e gastos correntes; investimentos para a aquisição de armamentos; e recursos destinados para a realização de P&D. Segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Defesa, nos últimos anos o orçamento da pasta comprometeu mais de 70% com o pagamento de pessoal, enquanto os dispêndios relativos a investimentos representaram cerca de 10% apenas.
Sobretudo durante o segundo governo Lula, o orçamento destinado à Defesa apresentou um significativo crescimento. Inserido em um contexto de aumento nos investimentos da União, entre 2006 e 2009 os investimentos realizados pelo Ministério da Defesa cresceram em 77%, o que ampliou a participação dessas despesas nos gastos militares de maneira expressiva – passando de 6,1% no ano de 2006, para 9,2% em 2009. Adicionalmente, no escopo dos investimentos, os recursos voltados ao reaparelhamento das Forças Armadas representaram um crescimento de quase 300% no período de 2003 a 2009 (FERREIRA; SARTI, 2011).
Condição necessária para compreender a trajetória dos investimentos de defesa nos anos 2000 é a publicação de documentos estratégicos brasileiros ao longo do período, principalmente a Estratégia Nacional de Defesa (END) de 2008. De maneira geral, parte dos objetivos expressos no conjunto dos documentos manifesta uma preocupação com o reaparelhamento das Forças Armadas e o incentivo ao desenvolvimento de capacidades industriais e tecnológicas por parte das empresas que compõem a base industrial de defesa. Assentada sobre o binômio Defesa-Desenvolvimento, a perspectiva assumida por esses documentos compreende o conjunto de indústrias de defesa como vetor de inovação e difusão tecnológica para os demais setores industriais, em consonância com o pressuposto econômico apontado anteriormente.
Nesses termos, a manutenção dos níveis de dispêndios destinados aos investimentos militares atende à necessidade de previsibilidade da demanda para a sustentabilidade das atividades realizadas pela base industrial de defesa. Entretanto, o quadro político de redução de gastos promovido durante o governo de Dilma Rousseff refletiu negativamente sobre o volume de investimentos realizados no setor de Defesa e parte das atividades desenvolvidas por empresas brasileiras, particularmente pelos cortes orçamentários e contingenciamento nos recursos destinados a investimentos.
A distribuição dos recursos orçamentários de Defesa por natureza de despesa não alterou sua configuração durante o atual governo. Contudo, talvez a principal contribuição da atual conjuntura política à já dificultada equação dos investimentos militares, e consequente manutenção dos projetos estratégicos em desenvolvimento, seja a controversa aprovação da emenda constitucional do teto dos gastos públicos. Recentemente, chamou atenção da mídia a aquisição por oportunidade do porta-helicópteros britânico HMS Ocean, descomissionado em março deste ano, pelo valor de aproximadamente R$ 380 milhões. Ainda em processo de incorporação, o porta-helicópteros supre uma demanda da Marinha do Brasil em substituir o NAe São Paulo como navio-capitânia da força, desativado em virtude dos elevados custos envolvidos para sua modernização.
No entanto, outro processo de aquisição por parte da Marinha emerge como instrutivo exemplo da maneira pela qual as severas restrições orçamentárias podem afetar os projetos das forças armadas do país. Concebido como um dos projetos prioritários para o objetivo de construção do núcleo de poder naval, o Programa de Obtenção de Meios de Superfície (PROSUPER) teve parte de seu escopo inicialmente atendido, no final do ano passado, com a requisição de propostas para a obtenção de quatro corvetas – ou fragatas leves – Classe Tamandaré. Com previsão orçamentária de US$ 1,6 bilhão, cabe destacar o criativo artifício empregado no projeto a fim de evitar as limitações do teto de gastos, como propriamente reconheceu o então ministro da Defesa, Raul Jungmann. O esforço empreendido pelo governo federal foi no sentido de capitalizar a Empresa Gerencial de Projetos Navais (EMGEPRON) por meio de um projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional, a qual foi sancionada em dezembro de 2017.
Nesses termos, considerando a evolução recente dos investimentos no orçamento da Defesa, bem como os objetivos manifestados nos atuais documentos de defesa, são obscuras as reais capacidades de manutenção sustentável dos projetos estratégicos brasileiros, o que pode acarretar em consequências críticas para a base industrial de defesa brasileira. A insaciável busca pela modernização não é um fenômeno hodierno, tampouco o atual governo pode ser acusado de gerar as dificuldades relativas ao orçamento de Defesa. Entretanto, enquanto escuda-se sob o prestígio popular das Forças Armadas para resolver seus problemas de legitimidade, ao postiço governo cabe reivindicar a obra de uma ponte que guia a um incerto futuro.
Jonathan de Araujo de Assis é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes.
Imagem: HMS Ocean From Shoreside – 25/8/12. Por: Royal Navy Media Archive.
Referências bibliográficas:
DUNNE, P.; TIAN, N. Military expenditure and economic growth: A survey. The Economics of Peace and Security Journal, v. 8, n. 1, p. 5-11, 2013.
FERREIRA, M.; SARTI, F. Diagnóstico: Base Industrial de Defesa Brasileira. Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. – Campinas: ABDI, NEIT-IE-UNICAMP, 2011.

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