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Primeiro como farsa, depois como tragédia: Crimeia, Ucrânia e as novas regiões anexadas pela Rússia

Danielle Amaral Makio*

Era março de 2014 quando Vladimir Putin, em seu segundo mandato presidencial, assinava o documento que reconhecia a anexação da península da Crimeia à Federação Russa. Oito anos mais tarde, a Ucrânia voltaria a ter parte de seu território integrado ao estado russo por decisão do Kremlin. O documento que reconhece as regiões de Kherson, da Zaporizhia e das Repúblicas Populares do Donbass, Donetsk (DNR) Luhansk (LNR), como parte da Rússia foi assinado em 29 de setembro de 2022, logo após a realização de referendos que sondaram o desejo das populações locais de serem anexadas. Segundo os resultados divulgados, respectivamente 87,05%, 93,11%, 99,23% e 98,42% dos habitantes de cada local apoiam a anexação. Apesar de terem contado com supostos observadores, as consultas populares, bem como a decisão pela violação da integridade territorial ucraniana, não conta com amplo reconhecimento internacional. Até mesmo a China, parceiro importante do governo russo, demonstrou cautela ao tratar do ocorrido, abstendo-se de abertamente condenar ou reconhecer a atitude de Putin. A decisão de Moscou acontece a despeito das afirmações feitas pelo Kremlin em 2014 e 2015, as quais garantem que a anexação da Crimeia não seria seguida por novas tomadas de território ucraniano pela Rússia. Nesse contexto, a nova onda de anexações levanta alguns questionamentos acerca de suas semelhanças em relação ao ocorrido em 2014, de suas motivações e de sua legitimidade.

Regiões anexadas pela Rússia, por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

De início, é preciso salientar que há diferenças e semelhanças fundamentais entre o contexto da Crimeia e das quatro regiões recentemente anexadas. O contexto político da primeira à época de sua anexação era razoavelmente distinto daquele que vemos nas outras. A península crimeia, em virtude de seu processo de formação populacional e política, passou por diversos períodos históricos nos quais seu pertencimento à Rússia ou Ucrânia foi contestado até chegar à situação em que gozava de relativa autonomia administrativa em relação a Kyiv. Tal “independência” era reconhecida pelas autoridades ucranianas e não tinha seu status contestado como o que ocorria em regiões do Donbass, desde 2014, quando coalizões irredentistas tomaram o poder em certas províncias e instalaram regimes próprios. Dessa forma, a península mantinha certo distanciamento, ainda que limitado, das decisões políticas da capital. É por conta destes dispositivos que, entre outros exemplos, a Crimeia foi capaz de criar diretrizes particulares acerca de algumas políticas linguísticas e educacionais.

Outro ponto de afastamento importante entre os locais aqui analisados são as vantagens estratégicas oferecidas por cada um. Ainda que Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk favoreçam Moscou na medida em que lhe oferecem maior presença nos mares de Azov e Negro e conectem a Rússia à Crimeia por terra, esta conta com atrativos únicos. Entre estes, destacamos (i) o acesso privilegiado ao Mar Negro, uma vez que a península se localiza em região muito propícia à navegação, é próxima de jazidas de hidrocarbonetos e tem boa estrutura portuária; e (ii) a presença da base naval de Sevastopol, onde se localiza o principal destacamento da Marinha russa. Para além das vantagens geopolíticas representadas pelo entreposto militar, Sevastopol é também importante para o Kremlin do ponto de vista afetivo e discursivo. Conhecida como a “cidade da glória”, o local é usualmente usado para invocar os avanços tecnológicos e militares que garantiram a grandeza do Império Russo, narrativa muito mobilizada por Vladimir Putin em sua política de grande potência.

Entre as semelhanças observadas entre a anexação das cinco regiões aqui mencionadas, podemos destacar (i) os fortes traços de russofonia e de aproximação a símbolos étnicos e culturais da Rússia; (ii) a queda nos níveis de aprovação popular em relação a Vladimir Putin, que também passava por um período de baixa popularidade às vésperas da incursão sobre a Crimeia; e (iii) a contestação da veracidade dos referendos realizados. Apesar de ter uma estrutura administrativa que permitia maior “alinhamento” à política russa, a Crimeia contou com um processo de consulta popular que, dada a ampla presença de militares russos e a rapidez com que se deu, levantou suspeitas acerca da legitimidade de seu resultado. Da mesma maneira, a ausência de cabines de votação e a intensa participação do Exército russo durante as votações nas regiões de Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk sugerem limites ao livre-arbítrio dos votantes.

Além desse contexto que torna a legitimidade dos referendos questionável, ainda deve-se considerar que, nos locais recentemente anexados, houve uma intensa onda de emigração de cidadãos e cidadãs que, podemos supor, eram em sua maioria opostos à integração à Rússia. Tal inferência é corroborada pelo resultado de pesquisas feitas antes mesmo do início da “incursão militar russa sobre a Ucrânia”, segundo as quais 80% e 90% da população de Kherson e Zaporizhia, respectivamente, era contrária à anexação. Os dados sugerem que, apesar de serem parte de uma região historicamente mais afeita a uma postura pró-Rússia, parte considerável da população local não estava disposta a renunciar à Ucrânia. Nesse contexto, na tentativa de garantir apoio irrestrito à secessão e subsequente união à Federação Russa, esta vem oferecendo uma série de benefícios aos locais, como acesso a passaporte russo, assistência social e médica, entre outros. Estas medidas, quando somadas a outras como adoção do rublo, veiculação de mídias russas e mudanças nas políticas educacionais das regiões, sugerem a estruturação de um projeto de dominação que se debruça sobre o estabelecimento de uma presença moscovita plena nos âmbitos militar, civil, burocrático e afetivo.

Apesar da legitimidade contestável do ocorrido, Vladimir Putin reiterou, à semelhança do ocorrido em 2014, que a Rússia está agindo em prol da defesa do direito de autodeterminação dos povos. A postura oficial do Kremlin se baseia em um entendimento do processo de formação estatal que julga ser a Ucrânia, sobretudo suas porções leste e sudeste – tradicionalmente mais afeitas a características etnolinguísticas tipicamente russas -, parte indissociável do estado russo. Na esteira desta narrativa, notamos também a centralidade do conceito de política externa do país, segundo o qual é dever deste proteger os povos russos e/ou russófonos, entre os quais se enquadram aqueles que habitam as regiões recém anexadas. Estas pessoas, no atual contexto de guerra que se estende desde fevereiro, estariam sob a ameaça de um governo ucraniano que persegue e intimida vida das minorias étnicas russas no país. O teor discursivo desta justificativa tem relação com a própria identidade que vem sendo promovida por Moscou sobretudo desde 2012, momento em que o Kremlin assevera sua busca por lugar de destaque na política internacional e fortalece discursos que legitimam a superioridade russa e seu dever cívico de proteger seu povo e seu Estado.

As motivações russas em relação às províncias de Kherson e Zaporizhia e às Repúblicas de Donetsk e Luhansk, porém, vão além do desejo de proteger a população. Após sofrer importantes reveses em fronts localizados na porção leste e centro-leste da Ucrânia, Moscou se vê encurralada por duas necessidades: de um lado, precisa garantir uma retomada da liderança militar do conflito, aumentando sua superioridade tática sobre a Ucrânia; do outro, precisa aumentar a moral do país perante a própria população russa, que já começa a demonstrar crescentes níveis de desaprovação das ações do governo em relação ao conflito. As anexações, nesse sentido, vêm em resposta a ambas as demandas.

Na medida em que fazem desses territórios parte da Rússia, abrem precedente para que qualquer ataque às províncias seja interpretado como um ataque ao próprio Estado russo, possibilitando, assim, uma declaração de guerra por parte do Kremlin – lembremos que, até o momento, a Rússia está oficialmente em uma “incursão militar especial”, não em guerra de fato, o que limita o número de efetivo militar que pode ser mobilizado pelo país e as armas que podem ser usadas. Uma declaração de guerra oficial, portanto, levaria ao uso total da capacidade militar de Moscou, possibilitando, inclusive, o uso de armamento nuclear. Ademais, como já mencionado, as anexações facilitam o estabelecimento de um corredor terrestre ligando Rússia à Crimeia, o que traz benefícios econômicos e militares à primeira. Do ponto de vista doméstico, a expectativa é que a união das províncias à Federação Russa aumente a aprovação do governo, seguindo os resultados positivos da guerra na Geórgia de 2008 e da anexação da Crimeia em 2014.

Os resultados de médio e longo prazo referentes aos recentes desdobramentos da guerra russo-ucraniana ainda são incertos. À semelhança do ocorrido em 2014, o Kremlin parece agir a partir de um cálculo que envolve interesses estratégicos, necessidade de garantir alta nos níveis de aprovação interna e desejo por tomar para si – ou retomar se considerarmos a visão do governo russo – regiões historicamente pertencentes ao Estado russo. Do complexo universo de razões que explicam os eventos aqui comentados, portanto, forma-se uma amálgama de identidade, afetos, memória, geopolítica e tentativa de sustentação de regime político. Nesse ínterim, ainda que Vladimir Putin tenha se declarado aberto a negociações, as recentes manobras de Moscou parecem afastá-lo de obter alguns de seus objetivos iniciais, como a desmilitarização da Ucrânia e a não adesão desta à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de forma menos traumática.

 

Danielle Amaral Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa de mestrado internacional CEERES (Central and East European, Erausian and Russian Estudies). É também pesquisadora do Gedes e do Observatório de Conflitos.

Imagem em destaque: Putin em fevereiro de 2022, por Kremlin.ru, CC BY 4.0.

Imagem no corpo do texto: Regiões da Ucrânia anexadas pela Rússia. Por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

As razões pelas quais a Rússia já perdeu a guerra da Ucrânia

Guilherme Cuter Rodel*

 

Uma das afirmações mais conhecidas e utilizadas nas Relações Internacionais é a máxima de Clausewitz: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Desta declaração deve-se entender que o conflito armado é um meio utilizado para se alcançar objetivos políticos. 

Com relação à Guerra da Ucrânia, a despeito das declarações de Putin e de membros de seu governo sobre “desnazificar” a Ucrânia ou proteger minorias russas, podem ser depreendidos como objetivos que levaram a Rússia a invadir o país vizinho: alterar o governo ucraniano e fazer com que este Estado deixasse de ser um aliado dos países ocidentais; conquistar alguns novos territórios; desestabilizar e enfraquecer a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); impedir essa organização – e especialmente os Estados Unidos da América (EUA) – de se aproximar das fronteiras russas, talvez querendo até mesmo forçar a retirada de tropas e equipamentos da OTAN da Europa Oriental; e dissuadir outros países vizinhos – especialmente aqueles que faziam parte da União Soviética – de se aproximarem demais do Ocidente. 

Quando é dito, no título desse texto, que a Rússia já perdeu a guerra, eu quero dizer que, mesmo com o conflito ainda em andamento, os objetivos políticos russos já se encontram fora de alcance. Isto é afirmado, pois o oposto do pretendido pelo país euroasiático aconteceu após a invasão.

A começar pela OTAN, uma organização que estava, nos anos que antecederam 2022, em seu pior momento desde sua criação, em 1949. Após a presidência isolacionista e disruptiva de Donald Trump nos EUA e o Brexit no Reino Unido, as divergências entre os aliados ocidentais chegaram a tal ponto que Emmanuel Macron, presidente francês, declarou que a OTAN se encontrava em estado de “morte cerebral” em 2019. Porém, após a Rússia invadir a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, os países-membros da OTAN apresentaram uma resposta unificada de oposição às ações do governo de Putin. Sanções foram anunciadas e uma grande quantidade de ajuda financeira e militar foi – e continua sendo – enviada para Kiev.

Este último ponto é especialmente importante, pois, antes do início das hostilidades, armamentos ocidentais serem alocados próximo das fronteiras russas era algo extremamente sensível para Moscou e considerado “inaceitável”. Os russos afirmavam que um dos motivos de sua invasão era exatamente se sentirem ameaçados pela maior presença militar estadunidense na Ucrânia e pelo potencial de mísseis, incluindo aqueles com capacidades nucleares, serem instalados no país vizinho. Todavia, como já foi dito, o número de armas ocidentais presentes na Ucrânia aumentou exponencialmente desde que o conflito começou e provavelmente os equipamentos militares permanecerão no país mesmo depois que a guerra acabar.

Além disso, a OTAN foi revitalizada, adquirindo uma importância que havia sido perdida nos debates internos de cada país-membro e nos assuntos internacionais. Junto com isso, o apoio das populações dos membros ao bloco militar aumentou consideravelmente depois do início da guerra. Ademais, a aliança ganhou um motivo claro para sua existência: opor-se à Rússia e quaisquer medidas expansionistas deste país. Como estabelecido pelo novo conceito estratégico da organização, publicado no fim de junho, a Rússia passa a ser considerada a principal ameaça para a segurança da OTAN e de seus Estados-membros.

Com base nisso, os assinantes do Tratado do Atlântico Norte que fazem fronteira com a Rússia receberam ainda mais apoio da organização após o início da guerra. A presença de soldados permanentes do bloco nos países bálticos – Letônia, Lituânia e Estônia – aumentou consideravelmente e países como Romênia e Polônia ganharam novos equipamentos e mais tropas.

Outrossim, demais países e organizações ocidentais – com destaque para Alemanha e União Europeia – estão quebrando precedentes ao enviar armas para a Ucrânia e propor embargos ao petróleo russo e diminuição drástica da compra de gás da nação agressora. Estas medidas sobre cortar importações de fontes de energia da Rússia são relevantes pelo fato de tais produtos, tradicionalmente, servirem de instrumento geopolítico russo para utilizar contra governos europeus. Ou seja, os países ocidentais estão mais unidos e dispostos a confrontar a Rússia, com este Estado perdendo mecanismos de contrabalancear e pressionar as nações europeias.

Outra tendência que vai na direção contrária dos objetivos russos é de países vizinhos à Rússia se aproximarem de instituições ocidentais. Suécia e Finlândia abandonaram suas políticas tradicionais de neutralidade e pediram para aderir à OTAN. A organização, por sua parte, já estendeu oficialmente o convite para os países nórdicos se juntarem à aliança. Logo, ao invés da Rússia fazer com que a OTAN recuasse para mais longe do território russo e estabelecer para seus vizinhos que entrar na organização ocidental estaria fora de questão, o que houve foi uma expansão considerável das fronteiras divididas entre o bloco militar e o país euroasiático, além da perspectiva de a OTAN se fortalecer ainda mais com a entrada de dois membros com significativas capacidades militares.

Seguindo a tendência descrita no último parágrafo, Geórgia e Moldávia fizeram pedidos para entrar na União Europeia após o início da guerra. Ao segundo foi concedido status de candidato oficial a entrar no bloco, enquanto ao primeiro foi requisitado que fizesse algumas reformas internas para poder também ser considerado um candidato. Deve-se dizer que simplesmente receber o status de candidato não é tão impactante, já que o processo de adesão à União Europeia costuma ser bem longo e pode ser revertido com facilidade. 

Entretanto, o que é relevante é o fato de, após o início da guerra na Ucrânia, esses dois países ex-soviéticos buscaram se aproximar do Ocidente. Ambos fazem parte de uma área que Moscou considera sua zona de influência e têm, atualmente, tropas russas ocupando partes de seus territórios, resquícios de intervenções militares. Logo, nessas condições, é notável que Geórgia e Moldávia tenham adotado a decisão de tentar entrar na União Europeia após a Rússia invadir a Ucrânia, assim buscando se aproximar do Ocidente, em contrariedade aos desejos russos.

No que se refere à situação da Ucrânia, na data em que este artigo é escrito parece certo que a Rússia conseguirá conquistar toda a região do Donbas. Com isto, as repúblicas separatistas ucranianas de Donetsk e de Luhansk se expandirão e, possivelmente, serão anexadas à Rússia. Apesar dessa conquista de território, deve ser destacado que os ataques russos contra as principais cidades ucranianas – Kiev e Kharkiv – fracassaram. Desse modo, no atual momento, a conquista total da Ucrânia parece estar fora de alcance, fazendo com que os objetivos russos de derrubar o governo de Volodymyr Zelensky e forçar Kiev a abandonar sua política externa pró-Ocidente não sejam mais realizáveis.

A Ucrânia, então, deve seguir uma política externa ainda mais pró-Ocidente e contra a Rússia do que já vinha fazendo antes de 2022. Além de ter recebido uma gigantesca quantidade de armamentos ocidentais e outros recursos para combater a guerra, o país fez o pedido para aderir a União Europeia – já tendo obtido status de candidato oficial – e esta mesma organização já se propôs a arcar com grande parte do custo para a reconstrução da Ucrânia. Logo, tal nação, mesmo que enfraquecida por todos os danos do conflito e por perdas territoriais, deve se consolidar como uma grande aliada dos países ocidentais.

Dado todo o exposto, conclui-se que a Guerra da Ucrânia já pode ser considerada um fracasso para o país agressor, a despeito da luta ainda não ter acabado. Eu defendo esse ponto de vista, pois, mesmo que seja impossível determinar com precisão tudo que a Rússia visava ganhar ao invadir o país vizinho, está claro que os objetivos políticos mais importantes já estão fora de alcance. Mais do que isso, em alguns aspectos o contrário do pretendido pelo país euroasiático aconteceu, como por exemplo a OTAN adicionar membros e se revitalizar ao invés de ser desestabilizada e enfraquecida. 

No final, a única coisa que a Rússia deve conquistar é um pouco mais de território ucraniano. Isto, apesar de fortalecer tanto a posição russa na Crimeia quanto as repúblicas separatistas ucranianas, ainda está muito aquém do esperado pelo país agressor, ao ponto de poder ser afirmado que tais conquistas não conseguem compensar pelo alto número de perdas russas – seja em termos de vidas, equipamentos, geopolítica ou até econômicas, visto as sanções e embargos ocidentais – e que a guerra, no final das contas, não deve ser considerada um sucesso para o país euroasiático.

* Guilherme Cuter Rodel é graduando do curso de Relações Internacionais na PUC-SP.

Imagem: Fotos de Bucha, na Ucrânia. Por: AP Photo/Felipe Dana/Flickr.

A extrema-direita na Guerra da Ucrânia: combatentes estrangeiros e a ameaça transnacional – Parte 2

Álvaro Anis Amyuni*

Na primeira parte do texto, analisei os desenvolvimentos endógenos à Ucrânia que contribuíram para a criação do ambiente permissivo à atuação da extrema-direita ucraniana a partir do Euromaidan e durante a guerra civil. Nesta segunda parte é analisado o desenvolvimento exógeno, ou seja, as conexões transnacionais estabelecidas entre os atores de extrema-direita ucranianos e russos com grupos e indivíduos estrangeiros ao conflito.

Os símbolos, atos e ideologia do desenvolvimento endógeno da extrema-direita ucraniana nos permitem perceber e analisar as consequências transnacionais da atuação de atores abertamente extremistas. O desenvolvimento exógeno se refere à atração que grupos como Azov exercem sobre atores de extrema-direita externos à região, recrutando indivíduos para participar do conflito e estabelecendo laços transnacionais com outras organizações.

Entre 2014 e 2021, estima-se que mais de 17 mil “combatentes estrangeiros” (em inglês, “foreign fighters”) atuaram no conflito em Donbass – e não apenas do lado ucraniano. Segundo Christian Kaunert e Alex Mackenzie (2021), desse total, cerca de 15 mil são russos, robustecendo as forças das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, sendo 3 mil desse contingente pró-Ucrânia. Os demais, 2 mil, dividem-se entre combatentes de países como Belarus e Sérvia (majoritariamente pró-Rússia) e  combatentes vindos do Ocidente. A partir da deflagração da guerra em 2022, esse número aumentou consideravelmente. Nas semanas de escalada das tensões e preparação para o conflito, houve uma mobilização da inteligência de alguns países ocidentais para impedir a saída de cidadãos para lutar na Ucrânia, como foi o caso do Reino Unido.

Diante desse número expressivo de combatentes estrangeiros, é inevitável comparar a situação dos últimos 8 anos na Ucrânia com guerras que gestaram o surgimento de grupos extremistas e terroristas durante o século XX e no século XXI. O precedente mais próximo é a Guerra da Síria, quando milhares de indivíduos de países ocidentais se radicalizaram através do Estado Islâmico, inclusive criando células terroristas em seus países de origem que produziram atentados como o de Paris (2015). A semelhança com a Síria para por aí, visto que o recrutamento de estrangeiros (até o momento) não é destinado à criação de células terroristas ou exclusivamente com o objetivo de serem praticados atos violentos quando retornarem aos seus países de origem.

Entretanto, o conflito na Ucrânia já gerou conexões transnacionais importantes entre atores do Ocidente com organizações paramilitares russas. É o caso do Movimento Imperial Russo (MIR) e do Movimento de Resistência Nórdica (MRN). O primeiro, um grupo paramilitar ultranacionalista e supremacista russo que atua na Ucrânia e na Rússia que recruta indivíduos de países ocidentais para o treinamento militar. O segundo, um grupo neonazista atuante principalmente na Suécia e responsável pelo ataque a um campo de refugiados em Gotemburgo, em 2017, logo após seus perpetradores terem viajado para a Rússia para participarem de um treinamento oferecido pelo MIR. Destaca-se que o MIR foi designado como um grupo terrorista pelos EUA e Canadá em 2020 e 2021, respectivamente, apesar de sua atividade principal não ser o engajamento em uma campanha terrorista internacional contra o Ocidente.

O caso do MIR mostra que o problema não se concentra somente nas organizações ucranianas. A Rússia possui uma perigosa cena de extrema-direita que atua a partir da vista grossa do governo Putin, este de forte inspiração ultranacionalista e conservadora. Além da atração de combatentes ocidentais, os grupos paramilitares russos construíram um forte nexo pan-eslavista com grupos e indivíduos de países dos Bálcãs, especialmente a Sérvia.

Os grupos de extrema-direita ucranianos não apenas realizam recrutamentos como se tornaram símbolos de referência para extremistas em atentados e movimentos políticos em outros países. No atentado de Christchurch na Nova Zelândia, em 2019, o perpetrador, Brenton Tarrant, exibiu o símbolo do Regimento Azov em seu “manifesto” com o objetivo de propagar e inspirar outros terroristas. Apesar disso, a comissão de investigação neozelandesa não comprovou uma relação direta de Tarrant com Azov.

Outro exemplo foi o caso do Brasil, no auge das manifestações bolsonaristas, em 2020, quando militantes radicais manifestavam a intenção de “ucranizar” o Brasil, fazendo referência à milicianização das forças armadas, a própria guerra civil que a Ucrânia se afundou desde 2014 e à inspiração ideológica racista, anticomunista e neofascista dos grupos de extrema-direita ucranianos, ilustrada pela presença de símbolos de grupos como o Setor Direito.

O fato de combatentes estrangeiros ocidentais e não-ocidentais atuarem dos dois lados do conflito Rússia-Ucrânia nos impede de fazer uma análise simplista dessa “atração ideológica” sobre a qual Putin remete e que busca utilizar como uma das justificativas para a guerra atual. Por um lado, a Ucrânia representa para parte da extrema-direita ocidental a “fronteira” do Ocidente, um território que deve ser defendido contra forças anti-ocidentais, como a Rússia. Há também a inspiração tomada por neonazistas e supremacistas do passado colaboracionista ucraniano com o nazismo na Segunda Guerra Mundial, fato também exaltado pelo Regimento Azov. Do outro lado, a atração em relação a Rússia de Putin se encontra na defesa de uma nação-modelo de comunidade étnica “pura” que subjuga outras etnias, além do relacionamento íntimo do poder político do Kremlin com a Igreja Ortodoxa.

Outra possibilidade vai além das proximidades ideológicas e encontra a oportunidade de aperfeiçoamento tático e estratégico individual e grupal, como é o caso do relacionamento entre o MRN e o MIR. Não necessariamente, entretanto, a razão para peregrinação está atrelada a ideologias de extrema-direita. Kaunert e Mackenzie traçaram vários veteranos de guerra norte-americanos que enxergam na guerra da Ucrânia uma oportunidade de voltarem à ativa, não possuindo necessariamente uma inclinação ideológica à direita. Porém, há o risco de radicalização no conflito, fazendo com que indivíduos atraídos pela ideia de realizar “atos heroicos” em uma situação de guerra entrem em contato com as ideologias de grupos como Azov e MIR e se tornem adeptos.

Toda essa complexidade envolvendo o relacionamento transnacional da extrema-direita com a guerra da Ucrânia encontra parte de sua razão na forma como aquela se manifesta e se organiza desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Roger Griffin (2003), cientista político dedicado ao estudo do fascismo e do neofascismo, afirma que a extrema-direita no cenário hostil à sua atuação e crescimento do pós-guerra passou a não mais se organizar de forma centralizada, em movimentos de massa, e sim a partir de “grupúsculos” que agem de forma independente. Não existe uma liderança central que dite os rumos ideológicos e concentre carisma o suficiente para unificar a extrema-direita nacional e internacionalmente. Isso se aplica principalmente para grupos violentos que rejeitam atuações pela via democrática/institucional e que são os principais reprodutores de ideologias que remetem ao nazismo e ao fascismo.

Assim, apesar dessa autonomia, a atuação concorrente e cooperativa entre os grupos é o que cria um ambiente ideológico comum, mas ao mesmo tempo adaptado à realidade nacional de cada ator, sendo justamente essa falta de centralidade o que permite a sua sobrevivência contra tentativas de governos de sufocá-los. Nos Estados Unidos, por exemplo, supremacistas brancos resumiram sua estratégia de atuação como “resistência sem liderança” e sumariza muito bem a concepção de “grupúsculo” proposta por Griffin ao não encorajar filiações formais de indivíduos a grupos bem estruturados, mas sim ações violentas reativas individuais.

Essa característica tem sido intensificada com o advento da internet, onde há um ambiente propício para a rápida propagação transnacional de ideias de extrema-direita e articulações em torno de práticas violentas. A comunicação on-line se dá principalmente por meio de símbolos, algo que a extrema-direita envolvida no conflito ucraniano não deixa a desejar. A extrema-direita grupuscular não tem como objetivo alcançar “corações e mentes” de multidões, por outro lado, seus atores, inclusive, almejam o confronto. Por isso, grupos como Azov, o MIR, o Setor Direito e a milícia Wagner[1] servem de oportunidade para suprir o “fetiche” militarista comungado entre militantes da extrema-direita global.

Mas não devemos esperar que haja uma tomada de liderança pelos grupos envolvidos no conflito russo-ucraniano para formar grupos paramilitares “filiados” sob sua tutela em outros países. Eles servem a diversos propósitos para atores estrangeiros de extrema-direita, principalmente para dar experiência de campo para a prática de violência. Mesmo assim, esses nexos não estão claros, ou seja, nem todos os combatentes estrangeiros de extrema-direita irão, de fato, realizar atentados terroristas quando retornarem a seus países de origem ou organizar movimentos para “ucranizar” a sua sociedade. O impacto dos combatentes estrangeiros na guerra em si é difícil de ser mensurado, mas se apresenta como a minoria em ambos os lados.

Internamente para a Ucrânia e para a Rússia a permissividade para a atuação da extrema-direita na guerra tem um potencial nocivo muito maior. Primeiro, pela possibilidade de a ideologia influenciar ações violentas que violem os direitos humanos da população civil a partir do estabelecimento de critérios étnicos e raciais. O governo russo repetidamente acusa as forças do Regimento Azov de terem praticado limpeza étnica em Donbass e a Ucrânia acusa as forças russas de terem provocado o Massacre de Bucha.

Segundo, pelo recrudescimento político dos grupos radicais no pós-guerra, especialmente na Ucrânia, onde há uma dependência muito maior das forças milicianas de extrema-direita. Não há qualquer sinal de Zelensky que aponte para uma desmobilização dessas forças no pós-conflito e o presidente segue negando a ligação do Regimento Azov com o neonazismo. Trata-se menos de uma vinculação/defesa ideológica de Zelensky a esses grupos e mais uma posição baseada em um pragmatismo extremo visando negar a narrativa de Putin sobre a ligação do Estado ucraniano com o neonazismo. Além disso, Zelensky se vê diante de uma armadilha quase sem saída, já que caso repreenda essas milícias durante ou após o conflito, pode perder a guerra pela redução do contingente de seu exército e ainda criar um inimigo interno, arriscando a estabilidade de seu próprio governo.

De qualquer maneira, falta espaço no atual estágio do conflito para mensurar o real impacto e potencial da atuação da extrema-direita. A guerra da Ucrânia apresenta-se como um elemento ideológico e organizacional importante para a extrema-direita transnacional, mas a essência grupuscular se impõe, impedindo uma articulação que supere a barreira das realidades nacionais dos atores em direção a um movimento unificado e centralizado nos atores envolvidos na guerra. Isso não significa que o potencial dos combatentes estrangeiros seja diminuído, no entanto, será necessário que seus países de origem estejam atentos às movimentações – em campo e on-line – destes indivíduos quando retornarem.

[1] Empresa militar privada que é financiada secretamente pelo Kremlin. Atua na Guerra da Ucrânia, com passado importante em conflitos na África. Seus fundadores comungam de ideias supremacistas e ultranacionalistas.

Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr.

*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).

A extrema-direita na Guerra da Ucrânia: do Euromaidan às fileiras do exército ucraniano – Parte 1

Álvaro Anis Amyuni*

Desde o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, uma das principais justificativas do presidente russo, Vladimir Putin, para a invasão ao país vizinho é o alegado domínio neonazista na região. Putin tenta emular a luta nacionalista dos soviéticos contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial a partir do superdimensionamento da presença de militantes supremacistas brancos, neonazistas e de extrema-direita nas fileiras do exército ucraniano, especialmente no Regimento Azov.

Desde os protestos do Euromaidan que deflagraram a crise que a Ucrânia vive desde 2013 há, de fato, um ambiente bastante permissivo ao desenvolvimento de grupos de extrema-direita no país, sobretudo a partir de dois movimentos importantes. O primeiro, endógeno, que envolve os grupos políticos e armados que participaram ativamente das ações violentas durante e após o Euromaidan.

O segundo, exógeno, está relacionado à força de atração que grupos envolvidos no conflito civil-militar, que se formou no leste ucraniano a partir de 2014, exercem sobre indivíduos e grupos da extrema-direita transnacional, transformando a Ucrânia em um local de peregrinação e treinamento paramilitar. A narrativa de Putin explora esses dois fatores, bem como as conexões oficiais estabelecidas entre determinados grupos paramilitares de extrema-direita – como o Azov – e o Estado ucraniano. Mas, qual o real tamanho da ameaça posta pela extrema-direita no conflito ucraniano e quais são as possíveis consequências transnacionais de sua atuação durante e após a guerra atual?

A primeira parte deste texto está concentrada em responder esse questionamento pela análise do movimento endógeno de permissividade à extrema-direita gestado nos protestos do Euromaidan em 2013 e na guerra civil na região de Donbass a partir de 2014. Na segunda parte, concentro a análise no movimento exógeno, sobre as consequências internas e externas da presença de combatentes estrangeiros da extrema-direita na guerra.

Os protestos da praça Maidan em Kiev reuniram grupos políticos de diversas orientações ideológicas e uma diversidade de objetivos que iam desde a retomada das negociações para a entrada do país no bloco da União Europeia – acordo interrompido pelo presidente, pró-Rússia, Viktor Yanukovitch – até a deposição do governo incumbente e a instalação de um novo regime ultranacionalista e pró-Ocidente. Nesta parcela mais extremista, se destacavam organizações e partidos de direita, como o Svoboda e o Setor Direito, que foram atores protagonistas de ataques violentos contra políticos e a polícia.

Cientistas políticos ocidentais mediram o impacto da opinião popular sobre as ações desses grupos a partir do nível de aceitação eleitoral dos ucranianos à extrema-direita, que se provou baixo nas eleições de 2014 (pós-Euromaidan) quando não conseguiram sequer superar a barreira de 5% dos votos. Levando em consideração o cenário atual de guerra, o insucesso desses partidos continua a ser a principal fonte de refutação à narrativa de Putin. Argumenta-se que há pouca adesão ao extremismo de direita na Ucrânia e, por isso, não existe um problema de escala nacional como um governo abertamente nazista; por outro lado, a presença isolada e diminuta de organizações de extrema-direita.

No entanto, segundo Volodymyr Ischenko (2016), esta não é a melhor maneira de avaliar o impacto dessas organizações na criação de um ambiente propício à atuação da extrema-direita, visto que, apesar do apoio diminuto e de serem minoria nos protestos, tiveram papel central nos confrontos com a polícia em meio à dinâmica dos protestos de massa. Justamente essa escalada de violência, ao lado do aumento das tensões separatistas, também no leste ucraniano, forçou a fuga e renúncia do presidente Yanukovitch.

Paralelamente, em meio ao cenário de caos social com a iminente perspectiva de combate das forças ucranianas com separatistas pró-Rússia na região de Donbass, emergiram grupos paramilitares informais e semi-informais com a intenção de defender o país de uma invasão russa. Como afirma Andreas Umland (2019), esses grupos foram rotulados de “Batalhões de Defesa Territorial”, “Destacamentos de Patrulha Policial Especiais”, “Regimentos de Operações Especiais”, entre outros, tendo um caráter fortemente nacionalista e telúrico, além de justificar sua criação a partir da impotência do exército ucraniano. Esses batalhões “voluntaristas”, como ficaram conhecidos, foram total ou parcialmente absorvidos pelo exército ucraniano durante o mandato presidencial de Petro Poroshenko.

O Regimento Azov, nesse sentido, foi o grupo mais destacado por conta do feito de recapturar a cidade de Mariupol das forças pró-Rússia em junho de 2014, fazendo com que fosse absorvido como parte formal do exército, sendo designado oficialmente como o “Destacamento de Operações Especiais, Azov”. Umland (2019) ressalta que os fundadores do Azov são ultranacionalistas ucranianos que começaram o ativismo político na era pós-soviética em organizações como a Assembleia Social-Nacional (ASN), o Patriotas da Ucrânia (PU), a Divisão Misantrópica e a Bratstvo – organizações que, em maior ou menor grau, contribuíram para a criação do Batalhão/Regimento com sua militância e articulação política. A ideologia de Azov é manifestada em seus símbolos que remetem aos adotados por nazistas, como o Sol Negro e o Wolfsangel, símbolo da 2ª Divisão da SS Das Reich.

Aos poucos e paralelamente ao processo de absorção nas forças armadas da Ucrânia, o grupo se esforçou para diminuir a sua associação ao nazismo e fascismo, retirando, por exemplo, o Sol Negro de seu emblema oficial. Durante a guerra de 2022 houve uma nova atualização da insígnia, retirando também o Wolfsangel. Muitas de suas lideranças abertamente supremacistas foram substituídas e seus líderes atuais dizem que o grupo está aberto a qualquer um que deseje “defender a Ucrânia”, independentemente de qual seja a sua ideologia ou crença pessoal. De fato, é difícil mensurar a quantidade de neonazistas e supremacistas convictos nas fileiras de Azov. Mesmo com essa alegada abertura a soldados de fora do círculo da extrema-direita, as referências e simbologias se mantêm, o que pode ser percebido em imagens recentes da guerra em que soldados do Regimento apareceram utilizando o símbolo do Sol Negro em seus uniformes.

Assim, a extrema-direita na Ucrânia opera sob a vigilância negligente do Estado – e já se trata de um problema perpetuado por mais de um governo. Por essas forças terem rapidamente se organizado em estruturas paramilitares, ganharam uma força política tal que, ao mesmo tempo, foi capaz de fortalecer o débil exército ucraniano e enfraquecer o monopólio legítimo do uso da força das mãos do Estado. Adicionado a isso, os feitos “heroicos” na guerra civil desde 2014, os batalhões voluntaristas exerceram o papel de proteger a população, criando uma relação de fascínio diante da incapacidade do governo de oferecer segurança contra as forças russas e separatistas. Este fascínio, contudo, logo transbordou as fronteiras do conflito, capturando o interesse de atores externos sobre os desenvolvimentos internos da extrema-direita ucraniana, como abordo na parte 2 do texto.

 

*Álvaro Anis Amyuni é mestrando do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, onde desenvolve pesquisa sobre o terrorismo transnacional de extrema-direita. É pesquisador do Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (OC-GEDES). Também é pesquisador júnior do Observatório da Extrema Direita (OED Brasil).

Imagem em destaque: Stanislav Nepochatov/Flickr

Imagens no corpo do texto: Antigo Símbolo do Batalhão Azov, uma combinação do Sol Negro e o Wolfsangel flutuando em ondas do Mar de Azov, referência geográfica do nome do grupo. Fonte: Wikimedia Commons.

A atuação da ONU no conflito entre Rússia e Ucrânia

Kimberly Alves Digolin*

 

No dia 24 de fevereiro de 2022, um vídeo do presidente Vladimir Putin anunciou que a Rússia conduziria uma “operação militar especial” na região leste da Ucrânia, dando início a um conflito que já resultou em mais de 5,5 milhões de refugiados. Não bastasse a magnitude do ato em si, é importante também ressaltar os detalhes que envolveram esse anúncio. No momento em que a gravação de Putin era divulgada, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) – do qual a Rússia é membro permanente – reunia-se justamente com o propósito de buscar uma solução diplomática para as tensões bilaterais. Em outras palavras, o anúncio de Putin desferiu um golpe duplo: por um lado, à soberania da Ucrânia; por outro, à credibilidade da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse cenário nos leva à questão norteadora do presente texto: quais as limitações da atuação da ONU no conflito russo-ucraniano?

Criada ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o principal objetivo da ONU é garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Para isso, entre outros órgãos e departamentos subsidiários, a estrutura da organização inclui: um órgão deliberativo composto por todos os Estados membros, intitulado Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU); o Conselho de Segurança, único órgão com poder decisório formado por cinco membros permanentes com poder de veto, e dez membros não-permanentes com mandatos bianuais[1]; a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judiciário da Organização composto por quinze juízes; e o Secretariado, que presta serviço aos demais órgãos das Nações Unidas, administrando as políticas e os programas elaborados.

Trata-se, portanto, de uma organização intergovenamental de adesão voluntária que “representa o ápice do processo de institucionalização dos mecanismos de [cooperação e] estabilização do sistema internacional” (HERZ; HOFFMAN, 2004, p. 29), uma vez que possui 193 Estados membros e que está no centro dos debates internacionais sobre temas como proliferação nuclear, direitos humanos, desenvolvimento sustentável, entre outros. Porém, a despeito dessa estrutura tão consolidada e de sua legitimidade perante a sociedade internacional, o conflito entre Rússia e Ucrânia deixou à mostra diversas limitações.

Após a invasão russa da Ucrânia, a primeira ação da ONU foi convocar uma reunião emergencial do Conselho de Segurança no dia 25 de fevereiro para debater a questão. Contudo, o rascunho de resolução condenando a invasão da Ucrânia foi vetado pela Rússia, contando com abstenções de China, Emirados Árabes Unidos e Índia. Em seguida, utilizando um recurso intitulado “Uniting for Peace[2] (“Unindo-se pela Paz”, em tradução livre), o Conselho de Segurança convocou uma reunião extraordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas para debater o conflito, a qual, no dia 2 de março, aprovou uma resolução conjunta condenando a investida russa com 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções.

No âmbito da Corte Internacional de Justiça, foi divulgado no dia 16 de março o resultado da investigação sobre os possíveis crimes de guerra no conflito entre Rússia e Ucrânia. Ao apontar que não haveria provas de que a Ucrânia tivesse cometido ou planejado ataques que pudessem ser considerados crimes contra a humanidade, como argumentou a Rússia para legitimar a invasão, o parecer incluiu a decisão que o governo russo deveria suspender imediatamente suas ações militares em território ucraniano. O documento teve 13 votos favoráveis e 2 contrários, da Rússia e da China.

Uma nova resolução foi adotada pela AGNU no dia 24 de março, culpando a Rússia pela crise humanitária em curso. O documento foi elaborado pela Ucrânia e seus aliados e recebeu 140 votos a favor, 5 votos contra e 38 abstenções. Duas semanas depois, a partir de uma proposta estadunidense votada durante reunião da AGNU no dia 7 de abril, a Rússia foi expulsa do Conselho de Direitos Humanos da ONU[3] com 93 votos a favor, 24 contra e 58 abstenções. O único antecedente de um país expulso de algum Conselho da ONU ocorreu em 2011, envolvendo a Líbia. Além disso, destacam-se as viagens do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, para Kiev e para Moscou – onde debateu propostas para a evacuação segura de civis e a entrega de ajuda humanitária.

Essa breve linha do tempo com as ações adotadas demonstra duas principais limitações em torno da atuação da ONU. A primeira diz respeito aos entraves que a Organização encontra ao se deparar com conflitos que envolvem as grandes potências com assento permanente no CSNU. E a segunda limitação, que está intrinsecamente associada à primeira, diz respeito à forma como interesses individuais de alguns Estados membros acabam por dificultar a atuação da Organização, tornando-a parcial e controversa. Em outras palavras, se o século XXI foi marcado por diversos conflitos – tão ou ainda mais violentos –, por que eles não foram alvo de tamanha mobilização onusiana como o caso da Ucrânia?

Ao ser criada com o objetivo de evitar uma nova guerra de grandes escalas, a estrutura da ONU foi moldada em torno do princípio de segurança coletiva e contenção mútua. Para isso, as grandes potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial e, portanto, com capacidade para iniciar novos conflitos de escala global foram alocadas em um órgão decisório com poder de veto, de modo que fossem capazes de impedir uma eventual tentativa de desestabilização da ordem internacional. Entretanto, é essa mesma estrutura que dificulta o debate coletivo em temas que envolvem de modo mais direto os interesses desses cinco países.

Para exemplificar esse argumento, basta resgatarmos o veto da Rússia na primeira reunião extraordinária do CSNU que debateu a invasão da Ucrânia, seu não-comparecimento à audiência da CIJ ou mesmo a ameaça que Moscou realizou ao afirmar que os países que votassem a favor de sua expulsão do Conselho de Direitos Humanos da ONU sofreriam retaliações – o que, inclusive, pode nos ajudar a compreender o alto número de abstenções em torno dessa votação na AGNU. Em contraponto, situar o conflito russo-ucraniano em um quadro mais amplo de disputa hegemônica nos ajuda a compreender de modo mais contundente os interesses estadunidenses e, por consequência, dos países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Essas limitações suscitam críticas em torno da eficácia da ONU em garantir a manutenção da paz e da segurança internacional. Entre elas, podemos apontar que a própria estrutura da Organização representa uma cristalização da divisão de poder internacional, reforçando seu caráter excludente. A falta de representatividade no CSNU é alvo de contestações e envolve demandas frequentes por uma reforma que inclua membros permanentes da América Latina e da África, por exemplo. Além disso, a padronização de condutas a serem adotadas pelos países é associada a uma espécie de “ocidentalização da política internacional”, a qual mobiliza os mecanismos da ONU em casos que interessam aos Estados ocidentais – especialmente Estados Unidos e países da Europa –, mas dificulta o acionamento desses mesmos mecanismos nos casos em que a narrativa de violação aos direitos humanos vai contra os interesses dessas potências.

Nesse sentido, o aparato da ONU “pode ser interpretado tanto como uma ferramenta para a construção de uma sociedade mundial mais justa, quanto como um instrumento que legitima e justifica as assimetrias do sistema internacional” (REIS, 2006, p. 41). Como exemplo dessa instrumentalização dos mecanismos por parte das grandes potências, podemos citar as violações aos direitos humanos perpetradas pela Arábia Saudita – parceiro dos Estados Unidos –, mas que não foram objeto de tanta atenção internacional ou mesmo de resoluções mais taxativas condenando as ações do governo saudita.

No entanto, embora as críticas sejam legítimas e necessárias, é importante não perder de vista o papel fundamental que a ONU desempenha. Partindo do pressuposto de que a política internacional não é feita apenas pelas capacidades materiais, mas também de normas, ideias e simbolismos, a existência de organizações internacionais como a ONU representa uma série de importantes constrangimentos para os Estados que planejam se utilizar da violência para alcançar seus interesses. Embora muitas das resoluções e decisões adotadas no âmbito onusiano não subtraiam a soberania dos países, ou seja, não sejam obrigatórias, elas desempenham um importante papel nas relações internacionais, pois seu desrespeito pode gerar sanções dos mais diversos tipos. Lopes (2007) define essa autoridade da ONU como a capacidade que o aparato administrativo possui para inspirar confiança em indivíduos e Estados-membros por meio de suas ideias e ações, fazendo com que ocorra adesão às normas diretivas da Organização.

Lopes também argumenta que a autoridade da ONU não poderia ser refutada pela ocorrência de novos conflitos, mas que deveria, em realidade, ser reafirmada pelo fato de a Organização ter conseguido evitar até o presente momento uma Terceira Guerra Mundial. Ao resgatar o preâmbulo da Carta de São Francisco – que se inicia com a célebre expressão “Nós, os povos das Nações Unidas” – o autor argumenta que a proposta de manutenção da paz ali expressa “significava impedir a ocorrência de uma terceira guerra em que estivessem envolvidas as grandes potências mundiais – e não, como algumas análises querem fazer crer, impedir qualquer novo confronto internacional” (LOPES, 2007, p. 50). Embora seja importante pontuar que o atual cenário de invasão da Ucrânia se mostra particularmente desafiador para a ONU, uma vez que o próprio ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, afirmou que existe um sério risco de ocorrer uma Terceira Guerra Mundial caso os países membros da OTAN continuem oferecendo armamentos para a Ucrânia.

Por fim, para além da pressão política, a ONU também desempenha um papel fundamental no apoio às vítimas, na investigação de eventuais violações e mesmo em eventuais mediações de cessar-fogo ou resolução do conflito. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), por exemplo, tem como principal função prestar assistência aos refugiados e pessoas que foram obrigadas a deixar suas cidades por conta de guerras, conflitos ou perseguições. A ajuda aos civis vítimas do conflito entre Rússia e Ucrânia passa em grande parte por essa estrutura, tanto no que se refere às normas legais que orientam as ações dos Estados no acolhimento dessas pessoas, quanto na coleta de dados e na rede de apoio propriamente dita. Em suma, embora o figurino demande atenção, o papel da ONU segue necessário na complexa peça de teatro da política internacional.

* Kimberly Alves Digolin é professora de Relações Internacionais na Universidade Paulista (UNIP), mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), especialista em Docência para o Ensino Superior, e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: Volodymyr Zelensky em reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por: Manhhai/ Flickr CC.

[1] Os membros permanentes do CSNU são: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Os atuais membros não-permanentes são: Albânia, Brasil, Gabão, Gana, Emirados Árabes Unidos, Índia, Irlanda, Quênia, México e Noruega.

[2] Convocar reuniões extraordinárias da AGNU foi um recurso muito utilizado durante a Guerra Fria, por conta da “política de travamento” que caracterizou o CSNU em meio às tensões entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. Além disso, também foi utilizado em algumas ocasiões para debater o conflito entre Israel e Palestina.

[3] É importante destacar que, no dia 4 de março, foi criada uma comissão internacional independente de inquérito no âmbito do CDH da ONU para verificar violações aos direitos humanos durante o conflito entre Rússia e Ucrânia.

Onde estão as mulheres no conflito Ucrânia-Rússia? Exercendo uma curiosidade feminista na análise das Relações Internacionais

 Gabriela Aparecida de Oliveira*

Danielle Amaral Makio**

Helena Salim de Castro***

 

Desde o dia 24 de fevereiro, a Ucrânia tem sofrido com ataques russos a seu território e população. Motivações geopolíticas, econômicas, ideológicas e identitárias se entrelaçam criando um cenário complexo e incerto, cujos efeitos têm sido sentidos sobretudo pela população civil ucraniana. Até o momento de publicação deste texto, o observatório Global Conflict Tracker do Council on Foreign Relations contabilizava 2.685 vítimas civis do conflito, além de mais de 4,1 milhões de refugiados – em sua grande maioria mulheres e crianças, uma vez que homens entre 18 e 60 anos foram proibidos de deixar o país.

A maior vulnerabilidade de mulheres e crianças em cenários de guerra está longe de ser uma novidade. Ao olhar o conflito Rússia-Ucrânia a partir de uma lente feminista, é possível, entretanto, identificar os fatores políticos e econômicos que levam a uma maior exposição desse grupo a violências, além de identificar outros papéis que as mulheres ucranianas vêm desempenhando, voluntária ou involuntariamente, na guerra. Nesse sentido, nossa análise se guia por meio de uma pergunta que parece, em um primeiro momento, despretensiosa: onde estão as mulheres na guerra russo-ucraniana?

Como sugere Cynthia Enloe (2014), refletir sobre os lugares ocupados pelas mulheres na política internacional nos leva a uma análise mais precisa de vários fenômenos, tais como a guerra. Há uma literatura (ELSHTAIN, 1995; COHN, 2013; GOLDSTEIN, 2001) que se propõe a discutir os papéis desempenhados pelas mulheres nas guerras modernas e contemporâneas, em resposta às abordagens tradicionais que reduzem a guerra a uma atividade essencialmente masculina. Elshtain (2009) diz que muito do nosso imaginário sobre mulheres, homens e guerra encontra-se moldado por dois arquétipos: o das “belas almas” e a dos “guerreiros justos”. O primeiro, associado às mulheres, exalta sua suposta natureza não-beligerante e sua necessidade de ser protegida; ao passo que o segundo se refere aos homens, seres “naturalmente” propensos à guerra. Embora, em termos históricos, a maioria das mulheres tenha de fato se mantido longe dos campos de batalha, elas atuaram de outras formas, que têm sido recuperadas por meio de uma análise de suas memórias e testemunhos.

As narrativas sobre as mulheres e a guerra se desenvolveram ao ponto de incluírem mulheres soldado, pacificadoras e ativistas pelos direitos humanos, resultado dos esforços feministas[1] para preencher esses silêncios. Entretanto, na academia e em meios midiáticos, ainda predomina uma sub-representação feminina quando o assunto é a guerra. A mídia hegemônica e seus analistas de política internacional, muitos deles homens brancos privilegiados dentro da geopolítica do conhecimento[2], tendem a priorizar discussões acerca das batalhas e das negociações entre os governos envolvidos nos conflitos. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia não é diferente: as vozes femininas constituem menos de um quarto (23%) do total de especialistas, protagonistas ou fontes citadas nas notícias digitais globais. Um dos motivos para que as mulheres – principalmente aquelas que se autodeclaram feministas – sejam deixadas de lado é que elas supostamente representam interesses específicos e pouco relevantes para compreender o “quadro geral” das guerras (ENLOE, 2014).

No entanto, conforme analisa Enloe (2014, p. 6), temos muito a ganhar ao exercer uma “curiosidade de gênero” sobre a política internacional, pois é por meio dela que podemos “descobrir exatamente como este mundo opera”. E essa “descoberta” só se torna possível na medida em que investigamos o poder: quais são suas formas, quem o exerce e como alguns exercícios de poder foram camuflados ao ponto de não se parecerem com o poder” (ENLOE, 2014, pp. 8-9). Nesse sentido, uma pergunta a se fazer é: quais narrativas sobre o conflito russo-ucraniano têm ganhado legitimidade e destaque na mídia?

Em entrevista recente para o Stance Podcast em que são abordadas narrativas marginalizadas sobre o conflito Rússia-Ucrânia, Enloe (2022) diz que no início de toda guerra há uma tendência em se classificar os envolvidos nas categorias de combatente, vítima ou vilão, em uma tentativa de simplificar a realidade. Dado isso, ela identifica duas representações sobre as mulheres ucranianas que têm predominado na mídia hegemônica e ocidental: a de vítimas e a de combatentes. São categorizações simplistas que impedem uma compreensão mais ampla acerca da atuação destas mulheres e que perdem de vista o fato de muitos papéis coexistirem entre si – como no caso de mulheres combatentes que foram vítimas de abusos sexuais perpetrados por seus próprios colegas.

A imagem das mulheres como vítimas é facilmente difundida, pois elas – juntamente com as crianças – são, de fato, as mais afetadas em contextos de guerra. No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, desde o início dos ataques russos, a ONU Mulheres alerta para uma escalada de violência contra esse grupo. Segundo a Agência, mulheres e meninas têm vivenciado diversas formas de violência ao saírem ou permanecerem no país. Existem histórias de violações dirigidas a mulheres mais velhas, que encontraram dificuldade em deixar a Ucrânia ou que optaram deliberadamente por se manterem no país. Ademais, grupos ucranianos de direitos humanos têm denunciado que tropas russas estariam utilizando do estupro de mulheres como “arma de guerra”, e grupos feministas têm explicitado o caráter misógino de discursos de Vladmir Putin a respeito da Ucrânia, os quais estariam reproduzindo a “cultura do estupro”.

A discussão do estupro como arma de guerra[3] impulsiona análises sobre o emprego simbólico-étnico da violência sexual. Esse tipo de violação, dirigido majoritariamente às mulheres, serviria como uma forma, direta e indireta, de subjugar e humilhar determinados grupos sociais, culturais e/ou étnicos. A violência contra as mulheres, assim, além de afetá-las individualmente, gera impactos nas comunidades como um todo, influindo sobre sua coesão social, segurança e resiliência.

No entanto, como ressalta Meger (2016), a perpetração de práticas de violência sexual e outras violências baseadas em gênero muitas vezes está vinculada a dinâmicas e interesses político-econômicos – a uma economia política que ronda o conflito. No caso aqui analisado, nos chamam atenção as denúncias de que mulheres e crianças que cruzam as fronteiras em busca de refúgio estariam vulneráveis a abusos e a serem vítimas de tráfico. Algumas denúncias apontam para casos de mulheres abordadas por grupos criminosos envolvidos com o tráfico de pessoas. Eles tentam aliciá-las para a prostituição ou para trabalhos forçados através de um discurso em que prometem abrigo e segurança, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade de seus alvos para obterem recursos econômicos. Defensores de direitos humanos, que estão trabalhando para que ucranianas e ucranianos se desloquem dos epicentros do conflito, têm relatado a atuação desses criminosos principalmente em estações de trem.

Outro exemplo que lança luz para essa “economia da violência” é o caso, denunciado em reportagem de uma revista feminista, da existência de uma “pornificação” da guerra. Imagens de violências sexuais contra mulheres e crianças traficadas são exibidas em websites mantidos por uma indústria pornográfica que tem lucrado com as visualizações. Nesse sentido, os casos de violência sexual devem ser investigados como práticas pertencentes a uma dinâmica político-econômica que conecta indivíduos e interesses transnacionais. É importante ressaltar que essas violências, por sua vez, não necessariamente acabam com o encerramento formal da guerra.

Em tempo, a segunda imagem das mulheres ucranianas que impera na mídia é a das combatentes. Elas representam cerca de 15% do efetivo militar do país, que tem um dos maiores exércitos da Europa. Milhares delas têm se alistado para participar da guerra incentivadas por discursos do presidente Volodymyr Zelensky. Nas duas primeiras semanas do conflito, várias imagens e vídeos de mulheres treinando para o combate e se opondo a soldados russos armados foram divulgadas nas redes sociais. No dia 15 de março, a CNN reportou que, depois de deixar seus pais e filhos na fronteira com a Polônia, algumas delas voltaram ao país para lutar. São comuns os relatos que exaltam a bravura, a independência e a determinação das ucranianas, vistas como um símbolo de resistência frente a uma Rússia opressora.

A narrativa sobre mulheres ucranianas extremamente independentes foi construída historicamente. Com base em fatores geográficos, tenta-se explicar o temperamento “distinto” destas mulheres no folclore do país. Assim, cria-se um discurso no qual é comum a figura da mulher solteira, quase sempre viúva, que pode sobreviver e prosperar sem um homem. Não obstante a repercussão “positiva” da imagem da mulher ucraniana combatente, ela continua sendo secundária. Como afirmou uma ucraniana à CNN, “as duas coisas mais importantes que uma mulher ucraniana precisa saber é como fazer borscht [sopa de beterraba] e coquetéis molotov”. Ou seja, ela ainda deve lidar com expectativas de gênero que a restringem a determinados papéis na guerra, tais como cozinhar e produzir explosivos para os homens, esses sim, vistos como “heróis” da nação. Se, por um lado, há mulheres que escolhem deliberadamente participar dos combates, outras têm encontrado dificuldades em se desvencilhar do serviço militar e sair do país: é o caso de mulheres trans que ainda não são reconhecidas legalmente pelo gênero feminino por causa de uma série de entraves burocráticos do governo que atrasam esse processo.

Para além da presença das mulheres em situações de vulnerabilidade e como combatentes no conflito, elas também estão trabalhando como voluntárias, serviço no qual são maioria, e agentes de fronteira, gerenciando o fluxo de pessoas e atuando na recepção dos refugiados – como ocorre na Moldávia. Da mesma maneira, muitas estão ainda dentro da Ucrânia prestando serviços humanitários como médicas e psicólogas, e nas linhas de frente dos confrontos para proteger os civis.

Ademais, as mulheres têm desempenhado um papel crucial para a denúncia de crimes de guerra à comunidade internacional e aos órgãos do governo ucraniano. Um coletivo de mais de 120 mulheres ucranianas chamado Dattalion, juntamente com mulheres não organizadas, têm tirado fotos e gravado vídeos das áreas de tensão para capturar execuções e bombardeios, divulgando as imagens em um banco de dados para amplo acesso. Na mesma linha, grupos feministas na Ucrânia, na Rússia, em Belarus e outros países têm feito campanhas anti-guerra nas ruas . Feministas russas auto-organizadas, além de pessoas LGBTQIA+, por exemplo, têm protestado através de pôsteres, performances e grafites em locais públicos, e usado o Telegram para mobilizar apoiadores. Contudo, elas têm sofrido represálias e sido detidas pelo governo russo. Segundo a Anistia Internacional, uma delas pode ficar na prisão por até dez anos somente por ter colocado cartazes com slogans anti-guerra em supermercados.

Por fim, outro papel pouco visível é o das mulheres voluntárias que costuram uniformes militares, redes que são usadas para camuflar o equipamento militar ucraniano nas imagens de satélite russas e capas verdes para cobrir snipers. Os pacotes com as encomendas são enviados a soldados ucranianos junto de doces e pó de café como uma forma de demonstrar seu apoio à “luta pela liberdade” do país. Assim, podemos identificar posicionamentos de mulheres que vão do “direito de lutar” – caso das combatentes ucranianas – à “abominação da guerra” – feministas antibelicistas -, sendo que ambos podem ser vistos como posicionamentos feministas. Apesar de parecer contraditório, há mulheres que podem sustentar essas duas posições ao mesmo tempo, como afirma Elshtain (1995).

Existem, portanto, diversas narrativas construídas sobre as mulheres, e homens, na guerra. Quando divulgadas pela grande mídia, elas são categorizadas como menos importantes e tendem a reproduzir estereótipos de gênero. A partir disso, nos perguntamos: Quem tem (re)produzido essas narrativas? E tendo em vista quais objetivos? O aprofundamento nessas questões, bem como em outras reflexões acerca dos diversos aspectos político-econômicos em torno da violência específica sobre as mulheres, como o estupro e o tráfico para a prostituição forçada, permite exercemos uma “curiosidade de gênero” sobre o conflito russo-ucraniano – e outros cenários de guerra e conflito armado. Essa “curiosidade” não tem um fim em si mesma, mas contribui para romper com os estereótipos sobre masculinidades e feminilidades e investigar os elementos que estruturam a violência. As mulheres estão nos diversos espaços e posições, sendo impactadas de formas particulares pela guerra. Assim, elas também devem ser chamadas para pensar nas possibilidades de encerramento dessa guerra e, principalmente, de enfrentamento das violências, que muitas vezes podem se prolongar mesmo após a paz acordada.

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Ilustrações de mulheres. Por: UN Women.

Referências

COHN, Carol (Ed.). Women and wars: Contested histories, uncertain futures. John Wiley & Sons, 2013.

ELSHTAIN, Jean Bethke. On beautiful souls, just warriors and feminist consciousness. In: Women’s Studies International Forum. Pergamon, 1982. p. 341-348.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Women and war. University of Chicago Press, 1995.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases. In: Bananas, Beaches and Bases. University of California Press, 2014.

GOLDSTEIN, Joshua S. War and gender: How gender shapes the war system and vice versa. Cambridge University Press, 2003.

MEGER, Sara. Rape Loot Pillage. The Political Economy of Sexual Violence in Armed Conflict. New York: Oxford University Press, 2016. ISBN: 9780190277666

MIGNOLO, Walter D. A geopolítica do conhecimento e a diferença colonial. Revista lusófona de educação, v. 48, n. 48, 2020. 

[1] O discurso feminista sobre a emancipação das mulheres inspirou, por exemplo, as últimas resoluções da Agenda Mulheres, Paz e Segurança das Nações Unidas (como a Resolução 2122, de 2013), que discorrem sobre o potencial de agência das mulheres em conflitos. Se nas primeiras resolução elas eram vistas como tão e somente vítimas a serem protegidas, elas passam a ser gradualmente concebidas como agentes cruciais para o processo de recuperação e manutenção da paz de suas comunidades no pós-conflito. No entanto, a Agenda continua a relacionar, ainda que não explicitamente, as mulheres à paz e os homens à guerra.

[2] A “geopolítica do conhecimento” é uma expressão usada por Walter Mignolo (2020) para refletir sobre as disparidades de poder existentes entre os produtores de conhecimento do Norte e do Sul global. Serve para denunciar o caráter eurocêntrico da ciência que se pretende “neutra” e “universal”, e que promove a marginalização de outros saberes, dentre eles, aqueles de mulheres, pessoas não-brancas e LGBTQIA+s.

[3] A discussão do “estupro como uma arma de guerra”, já trabalhada por autoras feministas, ganhou destaque na política e no direito internacional nos anos 1990 – no contexto das discussões do Tribunais Penais para a antiga Iusgoslávia e Ruanda – e viria a superar as reflexões desse tipo de violência como um produto inevitável dos conflitos. Como consequência, os crimes de violência sexual, cometidos em cenários de conflito e guerra, foram incluídos, posteriormente, no Estatuto de Roma, que constitui as bases legais do Tribunal Penal Internacional (MEGER, 2016).

Geopolítica e identidade: dimensões do conflito russo-ucraniano

Danielle Amaral Makio*

     Gabriela Aparecida de Oliveira**

Helena Salim de Castro***

Em fevereiro de 2022, Vladimir Putin deu início a um conflito militar na Ucrânia. A decisão do presidente vem anos após a anexação da Crimeia em 2014, ano em que a soberania do Estado ucraniano também foi colocada em xeque pelo Kremlin. Agora, Moscou volta a marchar sobre solo ucraniano, alegando, inicialmente, a necessidade de enviar apoio tático às regiões separatistas do leste, que, segundo o presidente russo, estariam sob intenso ataque de Kyiv, assim como a necessidade de “desnazificar” o país vizinho. O conflito atual chama atenção por sua rápida escalada e pela simultânea guerra de narrativas entre os atores envolvidos. Se de início os objetivos russos pareciam ser claros e geograficamente localizados, agora, semanas após o estopim dos embates, as justificativas iniciais de Putin já não parecem suficientes para compreender os motivadores que levaram a Rússia a iniciar e expandir sua operação sobre todo o território da Ucrânia. A disputa discursiva que se estabelece sobretudo entre Rússia e Ocidente sugere que o universo de razões que explica a guerra que agora se desenrola é muito mais amplo do que afirma o Kremlin. Para proporcionar um debate mais informado acerca das muitas dimensões do conflito russo-ucraniano, buscaremos responder ao seguinte questionamento: quais são as razões que justificam a decisão de Putin pela guerra?

A posição geográfica estratégica da Ucrânia e a localização da base militar russa de Sebastopol justificam o interesse militar de Putin sobre o país, que permite o acesso russo a mares quentes e à Europa ocidental. Além disso, a Ucrânia é hoje o principal local de passagem de dutos que conectam a produção de Moscou ao seu maior consumidor, a União Europeia. Ademais, os laços históricos compartilhados por ambos os países envolvidos na guerra atual são também usados pelo Kremlin como elemento discursivo para justificar a invasão. Nesse contexto, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a manutenção dos separatismos ucranianos no leste são recorrentemente usados por Moscou para justificar suas ações militares. À luz destas e de outras questões, a opção russa pelo atual conflito pode ser compreendida por meio  de um viés geopolítico/econômico e também a partir de um ponto de vista ideológico/identitário (LAURELLE, 2019; TOAL, 2017). 

Em 2014, temendo que o novo governo ucraniano pró-Ocidente pudesse aprofundar políticas discriminatórias que prejudicassem a livre expressão étnica e cultural das populações russas, e em vista da anexação da Crimeia, movimentos separatistas se mobilizaram em Donbass. É neste contexto que surgem as repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, as quais, discursivamente apoiadas por Moscou, lutam por secessão em relação à Ucrânia desde então. A partir disso, o fracasso parcial dos acordos de Minsk e as recorrentes denúncias de quebra do cessar-fogo por parte dos separatistas e de Kyiv impuseram novos desafios ao compêndio e permitiram a manutenção dos irredentismos que viriam a justificar a invasão russa (KUBICEK, 2008).

A resposta de Lugansk e Donetsk à eleição de um governo pró-Ocidente na Ucrânia em 2014 tem, ainda, relações com outra questão central para o entendimento do atual conflito que se estende entre Moscou e Kyiv: o papel do Ocidente. A deposição de Viktor Yanukovich, político pró-Rússia, e a reorientação da política nacional a Oeste trouxeram à tona o aumento da influência ocidental sobre a Ucrânia e sobre todo o exterior próximo russo. O interesse ucraniano em integrar a União Europeia e a sinalização estadunidense acerca de uma possível integração do país à OTAN, nesse ínterim, ressoaram nos recentes discursos de Vladimir Putin acerca da expansão irrestrita da aliança ocidental. Em diversos momentos, o presidente russo reiterou receio acerca da aproximação do Ocidente, que desde o fim da URSS vem integrando cada vez mais países do leste e centro europeus à sua zona de influência, cerceando a Rússia do ponto de vista geopolítico. 

Uma possível adesão da Ucrânia aos blocos ocidentais aqui destacados representa uma ameaça ainda mais séria para a Rússia tendo em vista a quantidade de dutos russos que atravessam o território ucraniano e a posição geográfica do país, que não somente representa a “entrada” para a Europa, mas também dá acesso ao Mar Negro. Dessa maneira, a expansão das operações militares russas para além do leste ucraniano é, para Vladimir Putin, uma opção estratégica por conta da relevância do território ucraniano em sua totalidade. Além disso, uma presença russa mais ampla concede maior influência do país sobre o futuro da política ucraniana na medida em que oferece ao Kremlin maior margem para fazer uma série de exigências a Volodomyr Zelensky, tais quais: (i) a garantia de que a Ucrânia não irá aderir à OTAN; e (ii) a desmilitarização da Ucrânia (TOAL, 2017).

Outra característica que distingue o lugar da Ucrânia para a Rússia diz respeito à sua posição na formação da identidade russa atual. Ao longo das mais de duas décadas na liderança do Kremlin, Vladimir Putin alterou pontos-chave na construção da narrativa política que embasa suas decisões no comando russo. Destes, dois são especialmente importantes para que possamos compreender o conflito atual: (i) a oposição do Ocidente; e (ii) a noção de “mundo russo/eslavo”. O primeiro diz respeito à rivalização com atores como Estados Unidos e União Europeia. Ainda que nos primeiros anos na presidência Putin tenha tentado acomodar a Rússia ao mundo ocidental, sua abordagem progressivamente deu lugar a um discurso de alterização do Ocidente, que passa a ser considerado a ameaça absoluta à segurança ontológica russa. Assim, eventos como a expansão da OTAN em direção à fronteira russo-ucraniana tornam-se especialmente preocupantes e ganham novas dimensões em meio à postura anti-ocidental promovida por Moscou (SECCHES; BERNARDES; ROCHA, 2021).

Junto da rivalidade em relação ao Ocidente, a atual identidade russa promovida oficialmente conta com uma interpretação muito particular de povo e território. Nesse contexto, Putin tem um apelo muito grande aos russos étnicos que não habitam os limites territoriais de seu país e aos povos eslavos. Segundo o discurso oficial de Moscou, é dever da Rússia prestar ajuda a todas essas comunidades, as quais, segundo o comando do Kremlin, são parte da nação e do Estado  russos. Considerando a composição étnica da Ucrânia, tal abordagem ideológica/estatal reitera o local de destaque da Ucrânia na política moscovita. Este fato é ainda corroborado pela narrativa histórica de Putin, que concede grande importância ao episódio do nascimento de ambos os Estados, que partilham um mito fundador único que remonta à Rus Kievana do século VIII, primeira formação política de povos eslavos.

A complexidade do conflito russo-ucraniano em curso reside na sobreposição de fatores geopolíticos e identitários. Se por um lado a Rússia não está disposta a ceder sua influência sobre a Ucrânia por conta da localização e da relevância econômica do país; por outro, Putin também depende do vizinho para legitimar a identidade que busca performar na comunidade de Estados. A incursão sobre o território ucraniano, nesse contexto, permite ao Kremlin não somente corroborar a antagonização do Ocidente, mas, também, reiterar seu papel de grande protetor do povo russo e afirmar a posição da Rússia como um importante agente decisor na política internacional. O entrelaçamento de fatores e interesses em jogo dificulta o sucesso das diversas tentativas de negociação e, enquanto ambos os países não acordam um fim para a guerra, observamos a escalada dos conflitos e, consequentemente, da violência contra os civis. Nesse contexto, as reportagens sobre centenas de corpos pelas ruas de Bucha e do recente ataque de mísseis russos em uma estação ferroviária no leste da Ucrânia evidenciam o lado mais terrível da guerra, que acomete a vida de centenas de civis e impulsiona um cenário de violência e violações de direito que é atravessado por questões raciais e de gênero. 

 

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Bandeiras da Rússia e da Ucrânia, por iStock.

Referências 

KUBICEK, Paul. The History of Ukraine. Westport: Greenwood Publishing Group, 2008.

LAURELLE, Marlene. Russian Nationalism: Imaginaries, Doctrines, and Political Battlefields. New York: Routledge, 2019.

SECCHES, Daniela Vieira; BERNARDES, Marina Nunes; ROCHA, Pedro Diniz. A Construção do Pensamento sobre o Internacional na Rússia: identidades, projetos político-pragmáticos e o Ocidente. Carta Internacional: Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021.

TOAL, Gerard. Near Abroad: Putin, the West, and the contest over Ukraine and the Caucasus. New York: Oxford University Press, 2017.

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: redes e desinformação (Parte 3)      

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

As mídias sociais têm agido de forma a complementar, potencializar e mesmo capitanear os processos de desinformação. Nesse caso, esse expediente tem sido utilizado tanto pela Ucrânia como pela Rússia, que busca veicular suas justificativas para a guerra e perspectivas nacionalistas pelas redes – dado o bloqueio de operações de portais e canais russos como a RT e o Sputnik. As principais linhas narrativas dos meios russos e das informações circuladas nas redes sociais visam sustentar os princípios políticos da invasão, reforçando os argumentos de des-nazificação da Ucrânia, descrédito das ações da OTAN e, fundamentalmente, de minimização dos impactos desse conflito.

Memes Compartilhados pela conta oficial da Ucrânia no Twitter

Essa guerra informacional tem sido mobilizada também a partir das redes sociais e serviços de trocas de mensagens. Particularmente, a produção de memes, a alteração direta de imagens e vídeos visa não apenas desinformar ou informar, mas também, por serem expressões culturais que difundem uma sensação coletiva, tem um potencial de convencimento pela sua dimensão abstrata. Sua divulgação e circulação tem estado na base da estratégia ocidental, mas principalmente nas estratégias de Rússia e Ucrânia – este último, em específico, fazendo compartilhamentos a partir de contas oficiais, como pode ser apreciado acima. Numa delas, inclusive, a estratégia de demonização utilizada na Guerra do Golfo ao aproximar Sadam de Hitler é novamente mobilizada para enquadrar Putin enquanto uma liderança maligna. O governo ucraniano, ainda, tanto em sua conta oficial de Twitter, quanto a partir da conta de Zelentsky, faz divulgações sobre os movimentos russos – como quando os russos chegaram em Chernobyl e Zelentsky alertou sobre a possibilidade de um conflito ali gerar consequências para toda Europa.

Em geral, as ações da Rússia e da Ucrânia se caracterizam por difundirem nas redes sociais um conjunto de negações de fatos, de reações a eventos, e divulgação de informações e desinformações, fotos e memes que se articulam com os objetivos gerais da guerra. No entanto, enquanto as ações ucranianas claramente se destinam a um público maior que apenas o interno, dado seu amplo compartilhamento por pessoas de outros países europeus e dos EUA, no caso da Rússia seu raio de ação se concentra sobre o público interno e mesmo sobre o ucraniano, e não visa engajar o público internacional, objetivando exclusivamente angariar o suporte interno necessário.

As técnicas têm sido sofisticadas e contam com a geração de perfis e discursos falsos para a difusão de discursos pró-Rússia. Nesse caso específico, um personagem falso teria sido criado pela Rússia, Vladimir Bondarenko, a partir de sistemas de Inteligência Artificial, um deepfake orientado a difamar a Ucrânia e sua proximidade com o Ocidente. Em geral, esses perfis repostam e comentam em artigos muito breves, imagens e memes, formando os conhecidos enxames de informação, como aponta Byung-Chul Han. Com isso, se governa a tormenta de informações na internet que incluem informações absurdas como: “Putin está salvando a Ucrânia dos Nazistas”. Essa narrativa tem se articulado com uma campanha interna da Rússia em suporte à invasão, que inclui a promoção de vídeos e um espírito nacionalista que se manifesta na simbologia da letra “Z”, originalmente pintada nos tanques russos, significando “Za pobedy” (para a vitória), mas que tem sido apropriada pelo governo para enfatizar, em inglês, a ideia de “DemilitariZe” e “De-naZify” (desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia). Da mesma forma como nas estratégias “ocidentais”, essa campanha se dá em um misto de entretenimento e jornalismo, visando cativar o público, através de campanhas emocionadas e nacionalistas na televisão e nas redes sociais.

No Telegram – em especial nos canais de grupos pró-Rússia, como o “Donbass Insider” e o “Bellum Acta” – é notória a profusão de vídeos de sistemas de armas, disparo de mísseis, de deslocamento de tropas, numa clara tentativa de cativar o público interno em favor do conflito e demonstrar capacidade coercitiva, gerando frustração e decepção nos adversários. Em muitos desses canais, a utilização de memes e informações falsas visam conferir apoio interno à invasão e enaltecer a liderança de Putin, numa clara evidência que tais canais seriam controlados de forma centralizada por Moscou. Mais do que isso, a circulação de imagens desse porte por parte da Rússia tem buscado criar, como apontam especialistas, a ideia de que a Ucrânia não tem sido capaz de revidar e conter os ataques (o que reforça a moral dos combatentes e da população em favor da guerra), e que a atual invasão, na verdade, é um contínuo ou escalonamento da violência iniciada em 2014 – que tem como fim amenizar o choque causado pela atual invasão, principalmente em relação ao público interno.

Essa estratégia parece estar surtindo efeito, apesar dos inúmeros bloqueios que as Big Techs têm feito de perfis e informações circuladas pela Rússia nas redes sociais. De acordo com a agência de pesquisas Levada, a invasão da Ucrânia conta com uma aprovação de 81% do público russo, sendo que 35% deste público sequer prestaria atenção a esse conflito. Como mostra essa pesquisa, boa parte das razões para esse apoio estaria relacionada justamente à vinculação do sentimento de insegurança estatal com o “cercamento” da OTAN sobre a Rússia, a um sentimento de ameaça existencial junto à população. Essa sensação não é exclusiva dos russos, mas partilhada entre seus aliados, como no caso dos cidadãos chineses, que têm demonstrado apoio à invasão Russa – graças à ampla difusão de informações por influencers na rede Douiyn, o Tik Tok do país – levando ao consenso de que as movimentações da OTAN são incautas e de cunho imperialista.

Nesse sentido, vale destacar que não é inédita a utilização dos meios para a produção de consensos ou dissensos em um conflito, mas nesse atual conflito é vertente como imaginários histórico-políticos, desinformação e memes se conformam como complexos mecanismos capazes de produzir efeitos de realidade. Sua articulação auxilia na produção de simulacros, ora sustentando uma imagem de ineditismo e distanciamento da guerra do espaço europeu (e do ocidente civilizado) – recompondo as linhas narrativas colonialistas, que justificam ou deslegitimam a barbárie – ora compondo uma imagem de vitória inabalável para a mobilização interna do público russo.

Conforme a guerra de narrativas se intensifica, e jogos de imagem e vídeo passam a se tornar as únicas formas de se acessar o conflito, as linhas entre realidade e ficção se turvam e obrigam os olhares estratégicos a assumirem, também, um olhar crítico sobre tudo aquilo que se produz em termos informacionais na guerra. Isso porque a ação midiática, assim como o enxame informacional nas mídias sociais, operam de forma a fundir notícia e entretenimento a partir de imagens, memes e vinhetas, mobilizando uma dimensão emocional e afetiva na difusão de informações.

A leitura semiótica, a abordagem crítica do discurso, dos condicionantes históricos e da produção histórica das narrativas deixa de ser algo acessório, e se torna determinante para a compreensão das estratégias e disputas num conflito. Da televisão ao vivo à produção de realidades imediatas nas redes, o que se imagina é que os meios são a guerra em seu estado subliminar. No entanto, se não debatidos de forma crítica, os meios de comunicação podem ser condicionados como mecanismos que autorizam e legitimam o prolongamento do sofrimento, mais do que auxiliam o seu fim.

 

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: a grande mídia e as três linhas narrativas sobre o conflito (Parte 2)      

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

Neste atual conflito entre Rússia e Ucrânia, ainda que os EUA e OTAN não estejam diretamente engajados na violência do conflito – salvo pela disposição de armamentos –, é notável o modo como as construções midiáticas se assemelham às das coberturas do passado. As linhas mestras da narrativa ocidental se tornaram dominantes e se sobrepõem às frágeis tentativas de manipulação informacional direta do governo russo, que acabam isoladas e incapazes de produzir consensos fora do seu território. Afirmar que a guerra atual segue uma linha narrativa organizada pelo Ocidente não significa se mostrar favorável à invasão, ou acatar uma surreal legitimidade dessa violência organizada e de seus objetivos. Mas implica em observar como a economia dá atenção para este conflito ao desautorizar a ação russa a partir de pressupostos extremamente controversos, que afirmam um lugar de civilização e superioridade – que, por fim, são constructos comumente mobilizados em outros conflitos nos quais os países “ocidentais” estão embrenhados, para autorizar formas de intervenção e violência que se assemelham em barbárie (que como nos lembra Achilles Mbembe constituem o corpo noturno da democracia pós Guerra Fria).

Assim sendo, entendo que a cobertura midiática deste conflito pelas empresas de jornalismo americanas e europeias – e mesmo o controle sobre o enxame informacional nas redes – parecem figurar como linhas auxiliares da estratégia da OTAN sobre o conflito: negação de condicionantes históricos, deslegitimação do conflito, e estímulo à resistência independente ucraniana. Isso se manifesta através de estímulos à aceleração das decisões (com a profusão de imagens de destruições causadas pelos russos), bem como de agenda setting, legitimando o fornecimento de armamentos à Ucrânia, bem como colocando em evidência as mortes de civis para subsidiar pedidos de cessar fogo e de proteção humanitária. Nesse sentido, identifico, a priori, 3 linhas narrativas que parecem orientar interpretação e condenação da guerra a partir das redes de informação e desinformação: a) Excepcionalidade e sacralização do espaço europeu; b) Individualização e confusão estratégica; c) Disputas informacionais pela quantidade de mortos.

a) Excepcionalidade e sacralização do espaço europeu

É notório como a linha narrativa das reportagens, artigos e análises sobre a guerra tem como foco a sua deslegitimação com base na omissão de questões relativas à sua dimensão político-estratégica da guerra – isto é, ignorando as raízes históricas do conflito e a perene estabilidade europeia –, destacando uma suposta ruptura da paz no espaço europeu desde a Segunda Guerra Mundial. 

Na análise de Nic Robertson, da CNN, a Europa vinha a meio século experimentando uma paz duradoura, construída a partir da solidez e robustez das suas instituições políticas e monetárias, e esta seria a primeira vez desde 1939 que o espectro da guerra volta ao espaço europeu, descrito como civilizado, remontando uma ideia de invasões bárbaras, sem história ou contexto. Em primeiro lugar, os meios operam um argumento que restringe o espaço europeu ao que seria a Europa “ocidental”, pacífica, e que convenientemente, agora, se estende até a Ucrânia para produzir o argumento de violação da paz. Com isso, são descartadas todas as tensões militares, genocídios e bombardeios ao longo dos anos 1990 resultantes do esfacelamento da Iugoslávia, e se constrói uma imagem de ineditismo de conflito no continente. Em um segundo momento, tal argumento ignora que desde meados da década de 70, ainda que a Europa “ocidental” não tenha sido assolada por operações convencionais de guerra, ela foi berço de uma série de atentados terroristas contra a população, infraestruturas e autoridades produzidas pelos próprios Europeus do grupo Baader Meinhoff, do IRA e do ETA – que em geral questionavam fronteiras, formas de controle político, etc. 

Em sua capa do mês de março, a Time Magazine argumentou criticamente sobre o “retorno da história”, em uma alusão à expressão “fim da História” de Fukuyama, com a ascensão do capitalismo liberal e o fim da URSS. Ainda que de forma crítica, é fundamental destacar que a história nunca saiu da mesa para aqueles que vivem às margens da ordem neoliberal: ela se faz presente nos bombardeios em Belgrado, na Líbia e em Gaza, nos golpes na América Latina, e nas incursões policialescas nos morros e favelas, assim como na disposição de sistemas de vigilância e controle nas periferias e fronteiras estadunidenses, europeias, chinesas e russas. Essa história não é registrada ao vivo, mas como nota de rodapé da política internacional.

Essa narrativa acerca da excepcionalidade acaba tendo uma função aceleracionista, que legitima manobras militares, gastos e transferências de armas sob a justificativa de ameaça à estabilidade europeia. Tal narrativa é determinante para compor os discursos de parlamentares europeus e estadunidenses para a autorização de sanções contra a Rússia. De acordo com Simon Tisdal, essa narrativa presta suporte a uma ação militar mais engajada das forças da OTAN, a partir da percepção de uma inédita e brutal ameaça à civilização ocidental. Por um lado, apesar dessa narrativa favorecer a aceleração de mecanismos de contenção da ação russa, ela acaba por o fazer ignorando os determinantes históricos, militares e estratégicos que levaram ao conflito, e coloca a Europa num lugar de estabilidade civilizacional, perturbada por constantes barbarismos – uma narrativa característica de períodos anteriores que reforçava medidas duras contra imigrantes, evocando os casos de atentados terroristas (numa dualidade barbárie x civilização). 

b) Individualizacão e confusão estratégica

Um outro caminho adotado pelos conglomerados midiáticos tem sido o de contornar as importantes discussões relativas às dimensões político-estratégicas da guerra, atribuindo os dilemas e decisões aos indivíduos envolvidos no conflito, particularmente Vladmir Putin e Volodmyr Zelentsky. Essa individualização novamente ignora as razões históricas e militares do conflito, reduzindo as decisões de guerra, de comando e estratégia aos desígnios individuais dos presidentes.

Isso ocorre de modo mais sutil. A todo momento reportagens como a de Lucy Burton atribuem a guerra a uma decisão individual, quase discricionária de Putin: “Putin ordenou a invasão”;  “Putin mobilizou o exército”, e assim por diante. Um destaque foi dado à declaração do presidente estadunidense, Joe Biden, que classificara Putin como criminoso de guerra, e não a Rússia – ignorando que as decisões de guerra, militares e estratégicas pertencem a um corpo burocrático e não a governantes. Reduzir essa “razão de Estado” a decisões individuais é operar um argumento que corrobora com a ideia de barbárie e arbitrariedade (ainda que Putin, de fato, seja um líder autoritário), remetendo as decisões político-estratégicas a uma situação de instabilidade e desequilíbrio emocional das lideranças: o que novamente ignora as questões relativas aos avanços da OTAN, e que dificulta o debate sobre efetivos processos de negociação.

Em uma reportagem da CNN estadunidense, às vésperas do discurso State of the Union, inúmeros comentaristas buscaram descrever Putin como instável, nervoso e titubeante em seus primeiros discursos de guerra, algo que supostamente refletiria sobre as decisões tático-estratégicas supostamente equivocadas. Segundo diversas reportagens como as da Vox Magazine e do El País, os avanços russos estariam sendo comprometidos devido a características de contratação e formação dos soldados, por falta de combustível nos tanques, e tudo isso estaria alinhado a uma decisão individual de Putin ao ingressar no conflito.

Essa imagem de confusão e arbitrariedade forma uma linha auxiliar à estratégia dos EUA e OTAN, de modo a acelerar decisões políticas e estimular a opinião pública na direção de um êxito possível em caso de uma resistência militar ucraniana, legitimando a transferência de armamentos e medidas excepcionais para auxiliar o país no conflito. Nesse sentido, de acordo com uma pesquisa promovida pela Gallup, em torno de 73% dos cidadãos estadunidenses simpatizam com a Ucrânia, e dois terços dos americanos acreditam que os EUA devem manter seu compromisso com a OTAN.

Um outro lado dessa linha narrativa é a construção da ideia de resistência heroica de Zelentsky. O presidente ucraniano já tem sua trajetória política resultante de uma confusão entre ficção e realidade, ao protagonizar uma série – “Servo do Povo”, a qual, inclusive, o Netflix voltou a exibir – às vésperas da eleição, na qual ele se tornava presidente do país (livrando-o da corrupção e buscando integrá-lo à União Europeia). Não há um só dia em que seus discursos não sejam reproduzidos e analisados pela grande mídia, destacando sua perspicácia e enquadramento da OTAN para seu engajamento no conflito – como quando ele se direcionou ao parlamento dos países europeus, da União Europeia, e dos EUA, em cada um utilizando um artifício discursivo; ou quando o presidente apareceu de surpresa na transmissão do Grammy. Com frequência, no entanto, os meios passaram a enaltecer a decisão do presidente em comandar uma resistência popular em Kiev, conclamando civis a se engajarem no conflito – algo que para muitos analistas seria extremamente arriscado. 

Essas construções forçam uma dialética entre um herói esquemático e um autocrata ensandecido, um movimento que, novamente, descarta o debate histórico estratégico, e força um envolvimento emocional com a disputa. Nessa dinâmica, mesmo em uma situação de profunda desvantagem militar entre Ucrânia e Rússia, constrói-se uma hipótese de resistência possível – pela contraditória via de engajamento civil no conflito – ante uma confusão estratégica russa. Com isso, o apoio popular ao armamentismo da Ucrânia e ao estabelecimento de uma zona de exclusão aérea vem crescendo entre os países da OTAN. 

c) Corpos e Imagens

Uma vertente comum em todas as guerras, e que geralmente produz um efeito não apenas sobre a população em geral, mas sobre a moral dos combatentes também, é a disputa pela quantidade de mortos (civis e combatentes). Potencialmente, um número elevado de mortes de combatentes de um lado tende a afetar a moral desta tropa, a qual se questiona sobre a eficácia da estratégia e o sentido do conflito – portanto aumentando a fricção de guerra, como debate Clausewitz. Esse efeito também é sentido pela população, que paulatinamente retira seu apoio sobre a empreitada militar, algo que foi verificado nos EUA durante a Guerra do Vietnã, principalmente a partir da ação de jornalistas independentes, que revelavam a quantidade de mortes de combatentes e as condições precárias no campo de batalha[1]. Quando a questão de mortes civis é trazida à tona, isso tem um efeito ainda mais intenso sobre a população, que passa a pressionar por um cessar fogo e medidas humanitárias.

Nesse caso, a ação midiática tem a função de pressionar o estabelecimento de uma agenda humanitária e de desmobilizar o apoio popular aos conflitos – algo extremamente positivo. No entanto, em diversas ocasiões, o não registro adequado de mortes de civis e combatentes tem como função a produção de um conflito Tragedy-Free, ou seja, sanitarizado, supostamente cirúrgico e, portanto, legítimo, como aponta Der Derian em sua teoria da Virtuous War. O autor entende que os conflitos nos quais EUA e OTAN se inseriram nos últimos anos contaram com uma ação midiática que buscava inicialmente engajar a sociedade e, ao mesmo tempo, tolerar os abusos estadunidenses contra civis, além das práticas de tortura em prisões militares – ora escondendo as mortes de civis provocadas por sua incursão, ora assumindo discurso oficialista de “efeito colateral”.

No caso do atual conflito, verifica-se uma crescente disputa informacional a respeito da quantidade de mortos que envolve três diferentes atores, a Ucrânia, a Rússia e o grupo formado por EUA/OTAN/ONU, em três categorias diferentes “Mortes Civis”, “Mortes de Combatentes Russos” e Mortes de Combatentes Ucranianos”. Enquanto o governo da Ucrânia estima em torno de 7 mil mortos civis, dados das Nações Unidas confirmam a morte de pouco mais de 2 mil civis, enquanto o governo russo não confirma nenhuma dessas mortes. No que tange à morte de combatentes ucranianos, os EUA estimam em torno de 4 mil mortos, algo confirmado pelo governo ucraniano. Por fim, no que tange a morte de combatentes russos, os dados são muito discrepantes: as estimativas da OTAN são de mais de 15 mil mortos, enquanto as do governo russo são de menos de 1400 mortos[2]. Tamanha discrepância em relação às mortes civis e de combatentes russos revela as estratégias das partes envolvidas em minimizar seus erros estratégicos e maximizar seus êxitos. 

No entanto, a linha dominante da narrativa midiática tem sido a de evitar a relativização dos números (ou seja, essa disputa discrepante que se constrói), ora se apoiando nas estimativas mais conservadoras, ora se apoiando nas estimativas mais amplas. No entanto, com o anúncio de um elevado número de mortes civis na cidade de Bucha – e a proliferação de inúmeras imagens e fotos da catástrofe humanitária – o argumento principal do governo Zelentsky tem sido de um genocídio por parte dos russos, algo que já é tomado como certo em algumas análises e publicações.  Ainda que quaisquer mortes civis devam ser condenadas em um conflito, e suas condições investigadas para a identificação de culpados, há um salto significativo para uma situação de genocídio, e a urgente associação das imagens e narrativas nesse sentido tem um enorme impacto não apenas sobre o conflito, mas reforça ainda mais as tensões entre os países.

Ainda, a produção de imagens de guerra e destruição veiculadas nas mídias sociais e, consequentemente, nos veículos televisivos e portais de notícia tem sido um importante mecanismo de produção de efeitos de impedimento e desmobilização na Guerra. Boa parte da cobertura televisiva e das mídias sociais tem buscado circular imagens de destruição e sofrimento humano, as quais produzem efeitos de constrangimento e impedimento das ações militares – principalmente russas. No entanto, a urgência dessa prática tem levado a situações vexatórias de desinformação, como a das imagens veiculadas pela mídia ocidental a partir das redes sociais, de um tanque russo que teria atropelado um carro civil em Kiev – quando na verdade se tratava de um tanque ucraniano. Um caso semelhante é o de um vídeo de um drone que teria registrado a destruição de um comboio russo, compartilhado por uma conta oficial da Ucrânia, mas que ao fim se tratava de um vídeo da guerra da Síria em 2020

Isso reforça que a desinformação não é apenas uma ação exclusiva das forças russas, mas uma estratégia mobilizada por ambas as partes no conflito. Em uma reportagem conduzida pela BBC, fica evidente como inúmeros casos de vídeos, imagens falsas ou antigas têm sido utilizados pelos enxames favoráveis e contrários à invasão da Ucrânia, construindo um amplo leque desinformacional.

Reitero que é fundamental a condenação desta e de quaisquer guerras, seja na sua dimensão de bombardeios estratégicos, como no caso do bombardeio da coalisão europeia sobre a Líbia, sob a forma de guerras de contra insurgência – como nas fases finais da invasão estadunidense do Iraque pelos EUA –, de assassinatos extrajudiciais com drones como as promovidas pelos EUA e Israel, e fundamentalmente como esta guerra convencional mobilizada pela Rússia. No entanto, tal condenação deve se dar sobre bases e princípios sólidos da Carta das Nações Unidas, do Direito Humanitário Internacional, e das múltiplas convenções sobre armamentos, e não se sustentando sobre frágeis dualidades e constructos históricos que reforçam auto-imagens duvidosas – as quais ao mesmo tempo que condenam a guerra, eximem as potencias europeias os EUA, e mesmo a Rússia, de sua responsabilidade nas intervenções e conflitos provocados nos últimos 40 anos. Mais do que isso, a condenação deve considerar as razões políticas do conflito, compreendendo e discutindo de forma ampla as condições históricas e mesmo os argumentos da potência agressora, o que teria o potencial de produzir discussões e respostas mais adequadas e ao conflito, contribuindo de forma mais eficaz para seu encerramento.

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.

[1] O jornalista Jonh Pilger foi um dos correspondentes de guerra que furaram os bloqueios estadunidenses, e produziu a extensa reportagem “The Quiet Minority”, revelando as condições precárias de guerra e as mortes de soldados não mostradas na mídia: https://www.youtube.com/watch?v=krcNTkAgRrA. Ela contribuiu para reforçar a chamada “Síndrome do Vietnã”, um temor generalizado da sociedade em ingressar em conflitos de grande proporção.

[2] Vide o compilado de informações feito pelo Wikipedia a partir de dados oficiais que podem ser acessados na própria página. O autor verificou cada uma das fontes indicadas no site, averiguando sua atualização até o dia da escrita deste artigo.

Guerra Informacional no conflito Rússia e Ucrânia: uma aproximação ao controle informacional nos conflitos (Parte 1) 

Alcides Eduardo dos Reis Peron*

 

Mira, ângulo de visão, ângulo morto, ponto cego, tempo de exposição: a linha de mira prenuncia a linha do horizonte da perspectiva utilizada nos quadros pelo pintor de cavalete, que também é engenheiro militar ou estrategista como Dürer ou Da Vinci.”

Paul Virilio, Guerra e Cinema

“Está ao vivo, veja, as Imagens não mentem”, disse a âncora do telejornal enquanto apontava para a imagem de uma criança no telão do estúdio. Ao lado dessa filmagem, uma decoração especial, com fumaça cinza, e o que parecia ser um míssil sendo lançado de uma plataforma de armas, sobreposto por um enorme título, “Guerra na Ucrânia”. Como na guerra do Golfo em 1991, a âncora buscava associar a imagem (ao vivo), a uma proposta de cristalinidade do meio, de transparência e, fundamentalmente, de verdade em seu estado puro, com isso, colocando fim às especulações de diversas ordens, de que os meios teriam alguma agência sobre a política e a guerra. Ainda, a atual cobertura movimenta elementos muito similares aos da Guerra do Golfo, como a ampla produção de imagens, múltiplos narradores, em uma linha argumentativa coesa: a condenação (ou ilegitimidade) da agressão de uma das partes, associada ao apagamento das razões históricas e geopolíticas do conflito, e a uma exagerada heroicização de uma das partes do conflito. Um sofisticado enredo orientado a (des)informar – ao mesmo tempo que entretém –, embora, contemporaneamente, também esteja associado à ampla difusão de materiais, análises e imagens nas redes sociais.

Ao contrário do que a apresentadora sustenta, as imagens, se inseridas em contextos e narrativas específicas, podem potencializar, desqualificar ou redirecionar os sentidos da mensagem. O conhecidíssimo debate proferido ao longo do século XX por Walter Benjamin, Marshall Mcluhan, Guy Debord, Jacques Ranciére e por tantos outros, buscou centrar a imagem como objeto do discurso. Com o seu poder de alcance muito superior ao das palavras, a imagem carrega simbolismos, sentidos, valores políticos, potencializando a mensagem, ou sendo por si mesma a mensagem. Pierre Bourdieu ao descrever o campo jornalístico descreve a técnica de “ocultar mostrando”, que consiste em estruturas “invisíveis” que organizam aquilo que se percebe pela televisão, a partir de dramatizações e do intercâmbio entre imagens e narrativas, produzindo um “efeito de real” – algo que não seria diferente nas guerras, ou sua cobertura.

Esse efeito de real está na base das guerras informacionais que compõem os conflitos bélicos desde seus primórdios e, fundamentalmente, na deste atual conflito. Ambas as partes agora têm buscado tornar hegemônica sua linha argumentativa, a partir de múltiplos expedientes, como narrativas midiáticas, controle dos enxames nas redes sociais, etc. Esse breve ensaio, dividido em três partes, visa debater como essa produção de efeito de realidade é uma prática estratégica dos conflitos, e não envolve apenas movimentos midiáticos, mas também de desinformação nas redes, turvando a linha entre jornalismo e entretenimento, real e ficção.

A Guerra e seus meios

Clausewitz já havia entendido o modo como o ambiente de guerra era também um ambiente da administração dos sentidos, não apenas dos combatentes, que deveriam se lançar em aventura de morte, mas também da população, cujo papel seria o engajamento irrestrito à campanha. Nesse sentido, a fricção seria, antes de mais nada, um elemento que atenta contra o cognitivo dos combatentes e da população, imprimindo o desejo de cessar o conflito, tornando a mente um dos domínios a serem conquistados num conflito – como coloca Der Derian, o “Human Terrain”.  No entanto, foi Paul Virilio um dos primeiros a discutir o status das imagens e das narrativas nas guerras contemporâneas, descrevendo-o como um espaço de disputas perceptivas. Para Virilio, o termo “teatro de operações” assume múltiplos sentidos, ao mesmo tempo um ambiente de disputas entre atores com funções bem delimitadas, mas também como um espetáculo de produção de sentidos, imagens e informações – utilizados para cativar, engajar ou desengajar os espectadores da guerra.

Mais recentemente, autores como Jean Baudrillard, Douglas Kellner, e James Der Derian se debruçaram sobre o modo como Estados modernos – particularmente os EUA – conseguem mobilizar uma ampla rede informacional e comunicacional de modo a produzir consensos a respeito dos conflitos a partir de um movimento-chave: a conversão da guerra em entretenimento, quando informação quebra a barreira sensorial da razão, e passa a ser assimilada como algo lúdico, viciante e animador. Isso se daria a partir não de uma cobertura enfadonha das guerras, mas com o alinhamento entre vinhetas, narrativas estratégicas (sobre o contexto do conflito), táticas (que alinham o conflito em uma sequência lógica de eventos), polarizações e, fundamentalmente, cobertura 24 horas – uma caixa de ressonância que, como o documentarista John Pilger aponta, não abre espaço para o embate, o raciocínio ou ao contraditório, nos fazendo consumir construções parciais como integrais e absolutas. A cobertura ao vivo se diluía em um misto de imagens gravadas, de movimentos abstratos (crianças, soldados, refugiados, lideranças) impedindo a diferenciação entre tempo real e gravações. 

Com o foco na Guerra do Golfo em 1991, esses autores exploram como a produção de imagens e narrativas sobre a guerra engajou de maneira profunda a população estadunidense em um conflito desnecessário e vago. Nesse sentido, Douglas Kellner se ocupou em identificar e desmontar as linhas mestras da narrativa midiática, que envolviam a desinformação (a respeito de uma iminente invasão iraquiana na Arábia Saudita, e sobre falhas tratativas de “paz”), afirmações sobre o caráter e intenções de Sadam Hussein (sem que houvesse entrevistas ou declarações), desumanização dos líderes (o frequente enquadramento de Sadam Husseim em uma linha sucessória de Hitler), manipulação de dados (sobre o deslocamento de tropas iraquianas em suas fronteiras), e omissão arbitrária de dados (de satélites russos, que colocavam em xeque as afirmações de deslocamentos de tropas).

Como concluem, os tambores da Guerra da mídia televisiva e impressa foram fundamentais para a mobilização de tropas estadunidenses, administrando o apoio popular e redimindo previamente as lideranças por eventuais fracassos. Der Derian, no entanto, vai além e identifica nesse processo um dispositivo inerente à máquina de guerra estadunidense, o MIME – NET, sigla em inglês para a rede militar industrial de entretenimento. Essa rede não possuiria hierarquias, sendo composta por empresas privadas de jornalismo, setores de entretenimento, agências de governo e de Estado, sendo ativada em períodos de guerra justamente para o engajamento ou desengajamento da população à guerra. De acordo com o autor, isso não implica em dizer que existem conluios ou manipulações pelos Estados ou pelas empresas de jornalismo, mas sim um extenso processo de alinhamentos de ideias e interesses, de administração e de controle sutil, com a seleção de especialistas que condizem com a perspectiva da emissora (e dos burocratas da guerra), o que garantem a concessão de entrevistas exclusivas, acessos, materiais, documentos, dentre outros elementos que vão intensificando um relacionamento que, no limite, se traduz como benéfico para ambos os lados. Enquanto a máquina de guerra dissemina uma perspectiva interessada da guerra, o outro lado tem acesso a elementos que vão incrementar seu material informacional e, consequentemente, sua audiência.

Outros autores, como Steven Livingston, ainda que não se apoiem na ideia desta rede, reconhece a importância do papel das grandes empresas de jornalismo e entretenimento na construção dos imaginários dos conflitos, ao qual denomina como “efeito CNN”. Esses efeitos são diversos, e não implicam necessariamente em um alinhamento ideológico do conflito, mas demonstram o potencial dos meios em influenciar os conflitos. De acordo com ele, três seriam os modos pelos quais os efeitos midiáticos agem: 

  • Acelerante: na qual a cobertura do conflito tem um efeito multiplicador, exigindo a redução do tempo de resposta das autoridades, divulgando informações, fazendo coberturas frequentes sobre mortos e destruição, entre outras ações; 
  • Impedidor: primeiramente, emocional, deprimindo a moral populacional, sanitarizando a guerra (reduzindo a dimensão de coberturas sobre mortos e destruição) e, segundamente, frustrando as operações militares a partir da divulgação ampla de notícias operacionais; 
  • Definidora de agendas: agindo emocionalmente de forma a definir as agendas humanitárias como prioritárias. 

Na verdade, a atuação midiática como uma fusão entre jornalismo e entretenimento já é uma prática que data, pelo menos, desde a Segunda Guerra Mundial, com o envolvimento da empresa Walt Disney em conteúdos sobre a guerra; a produção de eventos e shows em campos de batalhas (para animar a moral dos combatentes); e o emprego de cineastas famosos para capturar imagens do conflito – vide o documentário da Netflix “Five Came Back”, que narra o modo como o Pentágono remunerou John Ford, Frank Capra, dentre outros. De acordo com Der Derian e John Pilger,  após a Guerra do Golfo se inicia um modelo de cobertura 24 horas de guerras e conflitos, os quais demandam: a manutenção exaustiva de especialistas, imagens, reportagens em loop, o que paulatinamente funde noticiário e entretenimento de guerra – no caso do Golfo, com a intenção de propagar um novo modelo de guerra inteligente, comandada a distância por alta tecnologia, como aponta Rune Ottosen. De acordo com ambos, essa prática foi adotada em todos os conflitos desde os anos 90 em que os EUA ou países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) estiveram inseridos: na Bósnia, na Sérvia, Afeganistão, Iraque, e mesmo na Líbia e Síria. A cobertura midiática tornava-se, assim, uma linha acessória do conflito, algo descrito inclusive nas doutrinas de guerra estadunidenses.

 Como um exemplo, a Joint Low Intensity Conflict Project (JILC) de 1986 deixa claro que, nenhuma informação entrará ou sairá do conflito sem que seja previamente arquitetada. A JLIC abertamente afirma a importância de um alinhamento entre Estado e empresas de jornalismo, em uma tradução livre: “Conflitos prolongados também aumentam as ambiguidades da situação, e a mídia moderna irá trazer essas ambiguidades para casa para o debate público, exacerbando as incertezas e compondo as dificuldades de envolvimento […] A mídia exerce uma poderosa, senão indeterminada, influência na opinião pública, e isso pode ter um impacto sobre as operações, para bem ou para mal […] Líderes políticos e militares devem considerar o papel da mídia e desenvolver programas apropriados e relacionamentos que irão sustentar as operações”.

O controle informacional em um conflito se torna uma tática central para os modelos de guerra contemporâneos, principalmente por sua capacidade de estímulo da opinião pública, dos combatentes e aliados, mas também para agir sobre a moral inimiga e produzir descrédito, o que coloca em xeque a capacidade dos países em produzir mobilização interna para o conflito. No caso estadunidense, e de países da OTAN, essa estratégia não se dá através de uma centralização, censura e manipulação direta das informações pelos aparelhos de Estado – como no caso do controle informacional russo nos últimos conflitos –, mas a partir de uma intrincada rede de relacionamentos e articulações entre empresas de jornalismo, e que agora contam com uma nova linha acessória, as redes sociais.

De acordo com pesquisas recentes, mais da metade dos americanos se informam regularmente através de mídias sociais, que incluem Facebook, Instagram, Snapchat e Tik Tok. Assim, principalmente a partir dos anos 2000, essas articulações, bem como a difusão de informações e conteúdos, ocorrem não apenas a partir da mídia televisiva, mas também pelas redes sociais e aplicativos de mensagens – um ambiente em grande medida desregulado, em que informações manipuladas, desinformações, deepfakes, análises enviesadas de especialistas são veiculadas e ganham proeminência a partir de compartilhamentos, que podem ou não ser estimulados por contas falsas (robôs). Esse fenômeno acaba governando a percepção geral dos usuários dessas redes sobre diversos temas – conformando verdadeiros ecossistemas de desinformação que se articulam com as redes televisivas e de entretenimento. Aqui, a divisão entre notícia e entretenimento se torna cada vez mais turva, dado o amplo compartilhamento de imagens, músicas, sessões ao vivo de discussões sobre a guerra em múltiplas redes sociais.

Desde Gilles Lipovetsky à Byung-Chul Han, diversos autores esclarecem que, diferente de uma estética de desaparecimento e de omissão de informações que caracterizou a era televisiva (inclusive nas coberturas de guerras), as redes sociais e o hiper-compartilhamento de dados produzem um fenômeno de desinformação a partir do excesso de informações não verificadas, produzidas por uma miríade de sujeitos. Como aponta Lee Mcintyre, o caráter dinâmico da internet e das redes sociais leva a uma confusão entre notícia e opinião, elevando uma posição pouco fundamentada ao status de “verdade”. A problemática relativa a isso é a de que não são geradas apenas opiniões, mas aquilo que Claire Wardle e Hossein Derakhshan tipologizam como desordem informacional: informações incorretas (com falsas conexões e conteúdo ilusório), más-informações (vazamentos, assédios, discursos de ódio), e fundamentalmente desinformação (conteúdo deliberadamente produzido, falso, manipulado e fabricado). Assim, notícias falsas, imagens e informações manipuladas, vídeos, discursos parcializados são compartilhados na rede em uma dinâmica de enxame, ora complementando as abordagens midiáticas “ocidentais”, ora as contradizendo. Assim, há na guerra um complexo ecossistema de desinformações que envolvem a mídia tradicional e as redes na composição de verdadeiros simulacros da realidade, a partir do controle e mobilização de informações, análises de especialistas, produção de notícias falsas, deepfakes, memes, entre outros. 

 

*Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor (2016) em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), autor do livro “American way of war: ‘guerra cirúrgica’ e o emprego de drones armados em conflitos internacionais” e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe.

Imagem em destaque: vila de Novoselivka, Ucrânia. Por: UNDP Ukraine.