Getúlio Alves de Almeida Neto*
Trinta e dois anos após a dissolução da União Soviética, observamos o reposicionamento dos 15 países que compunham o bloco, em diferentes contextos e níveis de aproximação ou distanciamento, em relação ao chamado mundo ocidental liderado pelos Estados Unidos. Em específico, a Rússia, oficialmente o Estado sucessor da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), possui um delicado e complexo relacionamento com o assim chamado Ocidente. Nesse sentido, o objetivo do presente texto é apresentar um breve panorama sobre o desenvolvimento das relações entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em específico no que se refere aos temas de Segurança Internacional.
Em 1º de julho de 1991, antes mesmo da dissolução oficial da URSS, teve fim o Pacto de Varsóvia (PV), aliança militar criada em 14 de maio de 1955, durante o governo do líder soviético Nikita Kruschev. A aliança, composta por URSS, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia, Romênia e Albânia (até 1968), fora, sobretudo, uma reação à adesão da antiga Alemanha Ocidental, naquele mesmo ano, à aliança militar ocidental criada em 1949. É nesse contexto que se encontra um dos germes do que viria a ser uma das principais críticas de Moscou aos líderes ocidentais.
Em 1990, durante o processo de reunificação da Alemanha, um encontro entre o Secretário de Estado dos EUA, James Baker, e o líder soviético, Mikhail Gorbachev, gerou discussão, que perdura até os dias atuais. Conforme a perspectiva dos soviéticos – alegada pelos russos, como visto por Putin em sua mais recente entrevista com o jornalista estadunidense Tucker Carlson – Baker teria dito à Gorbachev que a OTAN não expandiria “nem um centímetro a mais para o leste”, após o governo soviético ter concordado em retirar suas tropas do território da Alemanha Oriental. A frase foi tema de disputas de narrativas desde então, mas uma série de documentos desclassificados comprovam reiteradas garantias de Baker na conversa com Gorbachev e outros memorandos e comunicações entre líderes europeus que indicariam aos soviéticos que a OTAN não iria incorporar mais Estados à leste. Ademais, a própria continuidade da existência da OTAN sempre foi vista pela Rússia como incongruente no contexto pós-Guerra Fria, uma vez que a aliança havia sido criada justamente para fazer frente à ameaça da União Soviética. Assim, não teriam motivos que justificassem a manutenção do bloco.
Não obstante, as possibilidades de cooperação entre Rússia e os países da OTAN se abriram, sobretudo durante o primeiro mandato de Boris Yeltsin. Assim, algumas iniciativas surgiram nessa direção, tais como: o Conselho de Cooperação Norte-Atlântico (NAAC, na sigla em inglês), criado em 1991 e mais tarde substituído pelo Conselho de Parceria Euro-Atlântico (EAPC, na sigla m inglês), em 1997, e a Parceria para a Paz (PfP, na sigla em inglês), em 1994. Estas iniciativas, ainda existentes, buscavam, como objetivo último, estabelecer uma base de diálogo para promover a confiança e a cooperação bilateral em assuntos militares entre os países da OTAN e os países não-membros da aliança na Europa e Ásia Central, muitos deles ex-repúblicas soviéticas. Além destas iniciativas, a participação de tropas russas em missões de peace enforcement (IFOR, 1995-1996) e peacekeeping (SFOR, 1996-2004) na Bósnia e no Kosovo (KFOR, desde 1999), sob liderança de tropas da OTAN, foram amostras da tentativa de aproximação e cooperação entre o novo Estado russo com o Ocidente. Por último, a assinatura do Ato Fundador em 27 de maio de 1997, no qual havia o reconhecimento mútuo do status de não-adversário entre as partes e a definição de princípios como o interesse comum, reciprocidade, transparência e o conceito de segurança indivisível, materializado na instituição do Conselho Permanente OTAN-Rússia, parecia ser mais um elemento que colocaria fim na lógica de dois inimigos da Guerra Fria.
Entretanto, dois eventos do ano de 1999 podem ser entendidos pontos de virada na relação entre as partes: o bombardeio da OTAN contra as tropas sérvias durante a Guerra do Kosovo e a segunda expansão da aliança após a Guerra Fria, com a adesão da Tchéquia, Polônia e Hungria, todas ex-repúblicas soviéticas. Críticas foram feitas pelo governo russo à forma como tropas ocidentais intervieram no conflito contra o governo de Belgrado, histórico aliado da Rússia, ainda mais sem a aprovação ou anuência do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Soma-se a isso, o novo conceito estratégico publicado pela OTAN, em 24 de abril de 1999, o qual estabelecia a possibilidade de intervenção da aliança mesmo que não em defesa de um membro que sofrera um ataque, conforme estabelecido no Artigo 5º de seu documento fundador. Além disso, o documento deixava em aberto a possibilidade de futuro alargamento a qualquer país interessado. Como resultado, o governo russo passou a ver menor possibilidade de cooperação com o Ocidente, e a entender que seus interesses não seriam levados em consideração devido à desproporcionalidade das relações de forças militar e econômica entre Moscou e o bloco liderado por Washington.
Na virada do século, a rápida aproximação de Putin com George W. Bush na esteira dos ataques de 11 de setembro parecem ter sido, novamente, uma tentativa de mostrar a potência russa como possível parceiro estratégico dos EUA na condução das políticas de segurança internacional. Pouco tempo depois, no entanto, novos episódios trouxeram ao Kremlin a dúvida sobre a disposição estadunidense de levar em consideração os interesses russos. A Guerra do Iraque (2003), cuja invasão da coalizão liderada pelos EUA não fora aprovada pelo CSNU; a retirada dos EUA dos Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), em vigor desde de 1972; e uma nova rodada de expansão da OTAN, em 2004 – com a adesão de Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia, Lituânia, novamente todas ex-repúblicas soviéticas ou países membros do Pacto de Varsóvia – demonstraram a Putin que o contexto internacional pós-Guerra Fria era, sem dúvida alguma, marcado pela unipolaridade estadunidense e falta de capacidade russa de defender seus interesses ou participar de um concerto global da segurança internacional. Por fim, as chamadas Revoluções Coloridas que depuseram governos mais próximos a Moscou na Geórgia (2003), na Ucrânia (2004) e no Quirguistão (2005), contribuíram para o entendimento do governo russo de que o objetivo final do Ocidente era minar qualquer capacidade de influência russa no seu entorno geográfico. Todas essas críticas foram expostas e principalmente marcadas pelo célebre discurso de Putin na Conferência de Munique, em 2007.
Depois de 2007, uma série de eventos se avolumaram para contribuir com a piora das relações entre Rússia e os países da OTAN. Através de suas incursões militares na Guerra da Geórgia (2008) e na Guerra da Síria (2011 – atualmente) em defesa do governo de Bashar al-Assad e em lado oposto ao apoio dado pelos EUA aos rebeldes sírios, bem como a anexação da Crimeia pela Rússia (2014), Moscou demonstrou que não mais hesitaria em empregar suas forças armadas para fazer valer seus interesses em oposição aos interesses de norte-americanos e europeus. Em paralelo a este cenário, a divulgação de novos documentos oficiais de defesa e política externa da Rússia evidenciaram o aumento da insatisfação de Moscou com a contínua expansão do bloco ocidental e a definição da OTAN como principal ameaça ao país.
De 2009 a 2020, outras três rodadas de expansão da OTAN incluíram a adesão de Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. Da perspectiva russa, a promessa feita pelos líderes ocidentais a Gorbachev estava claramente sacrificada. Não somente houve uma expansão à leste, como também uma incorporação considerável de novos Estados que anteriormente estavam sob influência de Moscou. Por fim, a invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 e a continuidade da guerra parecem ter colocado um fim, ao menos no presente momento, de qualquer possibilidade de cooperação entre Moscou e o bloco com sede em Bruxelas. Evidência principal dessa afirmação são as adesões de Finlândia e Suécia, tradicionais países neutros, à OTAN.
De tal forma, a indefinição sobre as possibilidades de cooperação entre Rússia e OTAN caracterizadas pelo otimismo e institucionalização de iniciativas nos anos 1990 foi, ao longo do tempo, dando espaço a uma crescente certeza do status de adversários geopolíticos com interesses divergentes até chegar em seu momento mais crítico com a Guerra da Ucrânia. Nesse sentido, o questionamento sobre a validade da manutenção da OTAN enquanto aliança militar que fora criada na lógica da Guerra Fria é, ao mesmo tempo, a origem dos confrontos indiretos entre as duas partes e a justificativa para sua continuidade em meio a um cenário politicamente conturbado e marcado por guerras.
*Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-Sp). Bolsista FAPESP. Pesquisa na área de Defesa e Segurança, com enfoque na reestruturação militar russa pós-soviética como instrumento de projeção de poder e a política russa para o Ártico. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, campus de Franca – SP). Pesquisador e membro-fundador do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético).
Imagem: History of Nato enlargement. Por: Creative Commons
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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