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Guerra Civil no Leste da Ucrânia

Getúlio Alves de Almeida Neto: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.

E-mail: g.alvesneto3@gmail.com

Danielle Amaral Makio: Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).

E-mail: daniellemakio@gmail.com

 

 

Desde março de 2014, o Leste Ucraniano é palco de um conflito armado entre movimentos separatistas pró-Rússia que reivindicam a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, e o governo de Kiev. Também conhecido como Guerra em Donbass, região da bacia do rio Donets, o conflito deu-se na esteira das manifestações do Euromaidan em fins de 2013 e concomitante à anexação da Crimeia pela Federação Russa. Em razão de evidências que apontam para o apoio indireto russo aos separatistas, através de suporte logístico e armamentista e do envio de tropas paramilitares à região (SCIUTTO, 2019), Kiev receia que haja uma nova anexação de parte do território ucraniano à Federação Russa, como ocorrera na Crimeia. Fruto desse contexto, o conflito reverbera na imagem russa perante a União Europeia, os Estados Unidos e a outros países do chamado espaço pós-soviético. Sobretudo, a Guerra em Donbass reflete a tensão gerada pela oposição russa ao alargamento do bloco europeu em direção às regiões reivindicas por Moscou como sua zona de influência.

O conflito na Ucrânia é fortemente marcado por questões de cunho étnico, linguístico e cultural que dividem a Ucrânia em dois grandes grupos identitários: enquanto o centro-oeste do país defende a aproximação com Europa, as populações do sul e do leste ucraniano defendem maior influência de Moscou na região, ou até mesmo a futura incorporação à Federação Russa.  O caráter identitário e cultural do conflito tem suas raízes no processo de formação das identidades de russos e ucranianos, que remontam ao século IX. A origem comum dos atuais Estados Russo e Ucraniano é tema de controvérsia entre ambos os povos sobre o real nascimento de suas nações. A lacuna criada por esta ausência de consenso, por sua vez, reflete tanto na forma como a Ucrânia é vista pela Rússia quanto na percepção dos nacionais ucranianos sobre a Rússia (ADAM, 2018).

Somente após a dissolução da União Soviética em 1991 houve o surgimento do Estado Ucraniano soberano e independente (a despeito de um breve período após a Revolução de 1917). Como consequência do grande número de russos que permaneceram fora da Rússia após a extinção do bloco soviético, a Ucrânia conta com significativa parcela de russos étnicos na composição de sua população: 17,3% segundo o censo de 2001 (UCRÂNIA, 2001). No entanto, as características demográficas da Ucrânia sofrem de alto grau de regionalização. Nas regiões de Donetsk e Lugansk, a porcentagem de russos étnicos se eleva para 38,2% e 39%, respectivamente. Quanto ao número de russófonos, cerca de 75% da população da região do Donbass são falantes de russo o que contribui para a percepção de pertencimento cultural à Rússia (GIELOW, 2019). À medida em que se observa a demografia ucraniana do Leste em direção a Oeste, menor é a porcentagem da população étnica russa e/ou falante da língua russa (UCRÂNIA, 2001).

Dentro desse contexto de divisão identitária no país, ocorrem as primeiras manifestações políticas em 2004, na chamada Revolução Laranja. Os protestos tiveram início após as alegações de fraude nas eleições a favor de Viktor Yanukovytch, de tendência pró-Rússia. Com o êxito das manifestações, realizaram-se novas eleições sob observação de órgãos nacionais e internacionais, culminando na eleição do governo pró-Ocidente liderado por Viktor Yushchenko (MIELNICZUK, 2014). Yushchenko, no entanto, não conseguiu se reeleger nas eleições de 2010, cujo vencedor foi Yanukovytch.

Apesar de não ser contrário à aproximação com a União Europeia, Yanukovytch era marcadamente mais favorável ao estreitamento das relações com Moscou do que seu antecessor. Nesse contexto, o presidente ucraniano suspendeu, em novembro de 2013, as negociações econômicas com a União Europeia, as quais possibilitariam a possível adesão do país ao bloco europeu no futuro Em resposta à decisão do governo, tiveram início protestos da Praça Maidan, em Kiev, exigindo a renúncia do Presidente Yanukovytch. Os protestos receberam o nome de Euromaidan, em alusão à reivindicação da população local da volta das negociações com Bruxelas, e duraram até fevereiro de 2014, marcados pela repressão policial e escalada da violência, culminando na fuga de Yanukovytch para a Rússia (HENDLER, 2014; SCIUTTO, 2019).

Após a fuga do então governante, instaurou-se um parlamento interino em Kiev. Dentro das medidas apresentadas pelo governo de transição, havia uma proposta de rebaixar o status oficial da língua russa no país. Em resposta a esta perspectiva, uma série de protestos pró-Rússia começaram em cidades do Leste e do Sul da Ucrânia e também na península da Crimeia. No caso da Crimeia, em um referendo realizado em 16 de março de 2014, 90% dos votos expressaram a vontade da população de incorporarem-se à Rússia, processo concluído pelo tratado de adesão da Crimeia à Federação Russa assinado em 18 de março de 2014. Da mesma forma, os protestos nas regiões de Donetsk e Lugansk passaram a ter um caráter separatista e a buscar por maior aproximação e integração com a Rússia.

Ao contrário da Crimeia, no entanto, esses movimentos separatistas evoluíram para um conflito armado com a tomada de prédios públicos em Donetsk e Lugansk e o envio do exército ucraniano e da Guarda Nacional – organização paramilitar que havia sido criada durante os protestos de Maidan para controlar as revoltas no leste do país. A República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk autodeclararam-se independentes de Kiev em 7 e 14 de abril de 2014, respectivamente. Em 22 de maio do mesmo ano, foi anunciada a criação de uma confederação envolvendo as duas repúblicas, chamada de Nova Rússia (Novorossyia). Um ano depois, os líderes regionais anunciaram o congelamento deste projeto (KOLESNIKOV, 2015).

Apesar de o governo russo negar, constantemente, o envolvimento no conflito, e de não apoiar oficialmente um processo de adesão das repúblicas separatistas à Federação Russa, como foi o caso da Crimeia, há evidência de envolvimento de forças russas na região. Chamados informalmente de “pequenos homens de verde”, soldados que não carregam a insígnia do exército russo, mas que são russófonos e estão armados com arsenal russo ocupam a região do leste da Ucrânia, assim como na Crimeia. Ainda, de acordo com dados da OTAN, do Pentágono e do governo ucraniano à época, estimava-se a presença entre 20 mil e 45 mil soldados russos posicionados na fronteira entre Rússia e Ucrânia. Ademais, a derrubada do voo MH17 da Malaysia Airlines, com origem de Amsterdam e destino a Kuala Lampur, em 17 de julho de 2014, enquanto sobrevoava o território controlado pelos separatistas, é motivo de forte desconfiança quanto à origem do míssil lançado. Segundo relatos, as 283 mortes de passageiros e tripulantes ocasionadas pelo ataque foram causadas pela utilização do sistema de míssil russo BUK-TELAR, corroborando as suspeitas de envolvimento da Rússia na região (SCIUTTO, 2019).

Para além da ingerência militar, um novo decreto assinado por Putin em abril de 2019, que facilita a concessão de cidadania russa a cidadãos das regiões separatistas (GIELOW, 2019), contribui para o receio das autoridades ucranianas de que haja uma nova anexação promovida por Moscou. Tal medida se relaciona, sobretudo, com a nova abordagem de Putin sobre a questão étnico-nacional a partir de seu terceiro mandato em 2012, que inaugura um período conhecido por dar maior ênfase ao estreitamento de laços linguísticos e culturais entre a Rússia e demais países da região. Ao liderar este processo, a Rússia passa, então, a facilitar que populações que vivem fora de seu território possam também ser consideradas russas (BLAKKISRUD, 2016). A medida também pode ser entendida como uma forma de frear os avanços do exército ucraniano contra os separatistas, que poderiam ser reconhecidos pela Rússia como uma agressão aos seus nacionais.

A primeira tentativa de acordo entre as partes foi realizada através do Protocolo de Minsk, concebido na capital da Bielorrússia em setembro de 2014. O acordo, assinado por Ucrânia, Rússia e representantes das repúblicas separatistas da Ucrânia, consistia em doze pontos e previa: 1) um cessar-fogo imediato; 2) a anistia aos rebeldes que se desarmassem; e 3) um corredor para ajuda humanitária e refugiados. No entanto, o acordo fracassou e as hostilidades entre as partes combatentes continuam. Após inúmeras tentativas frustradas de cessar-fogo e de uma série de negociações, em outubro de 2019 estabeleceu-se, sob o âmbito do Fórmula Steinmeier, em alusão ao Presidente Alemão Frank-Walter Steinmeier, uma negociação entre os governos da Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk, República Popular de Lugansk e da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). O acordo prevê as eleições livres nos territórios separatistas, observadas pela OSCE, e reincorporação destes ao território ucraniano com status especial. Após o acordo, tropas separatistas começaram a se retirar de algumas cidades ocupadas. Em dezembro do mesmo ano, se reuniram na Normandia, França, o atual presidente ucraniano Volodymyr Zelensk, Vladimir Putin, Emmanuel Macron e Angela Merkel, para que fosse negociada a troca de prisioneiros entre as partes e para que fosse reiterada a necessidade da realização de eleições e negociações futuras.

O conflito no Leste Ucraniano afeta cerca de 5,2 milhões de pessoas. Desse total, estima-se que 3,5 milhões necessitarão de algum tipo de ajuda humanitária para sobreviver (OCHA, 2020a). Em 2015, apenas um ano após o início do conflito em Donbass, 925.500 pessoas haviam fugido para países vizinhos (OCHA, 2015). Já em relação ao número dos deslocados internos, os registros oficiais em 2020 indicam ao menos 1,4 milhão de pessoas. Segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), divulgado em 12 de março de 2020, o conflito já causou a morte de 13 mil a 13,2 mil pessoas. Estima-se que este total seja composto pela morte de ao menos 3,350 mil civis, 4,1 mil soldados ucranianos, e 5,650 mil de outros grupos armados. No entanto, o mesmo relatório aponta para uma forte tendência de queda no número de vítimas. Em 2019, registrou-se a morte de 27 civis, 40,6% a menos que no ano de 2018, sendo então o ano com menor número de baixas desde o início das hostilidades (ACNUDH, 2020b).

Apesar do arrefecimento recente das hostilidades entre separatistas e forças governamentais, o conflito estende-se há seis anos. Como desdobramento dos protestos iniciados em 2013, na Praça Maidan, em Kiev, e da anexação da Crimeia pela Federação Russa, a Guerra em Donbass evidencia a disputa interna entre narrativas pró-União Europeia e pró-Rússia. Nesse sentido, o entendimento das razões que desencadearam o movimento separatista passa pela necessidade de um olhar histórico da construção da identidade ucraniana após a dissolução da União Soviética, bem como do posicionamento russo em relação aos países do chamado espaço pós-soviético. Como demonstrado pelo cessar-fogo negociado em 2019, na Normandia, um acordo de paz entre as partes necessitará da participação em conjunta entre o Kremlin e líderes europeus.

 

 

REFERÊNCIAS

 ACNUDH. Report on the human rights situation in Ukraine 16 November 2019 to 15 February 2020. 12 mar. 2020. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Countries/UA/29thReportUkraine_EN.pdf. Acesso em: 12 maio 2020.

ADAM, Gabriel Pessin. As relações entre Rússia, Ucrânia e Belarus e o papel que nelas exercem os recursos energéticos. 2008. 273 f. Dissertação (Pós-Graduação em Relações Internacionais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2008.

BABIAK, Mat. Welcome to New Russia. Ukrainian Policy. 23. Maio. 2014. Disponível em: http://ukrainianpolicy.com/welcome-to-new-russia/. Acesso em: 11 maio 2020.

BLAKKISRUD, Helge. Blurring the boundary between civic and ethnic: the Kremlin’s new approach to national identity under Putin’s third term. In: KOLSTO, Pal; BLAKKISRUD, Helge. The new Russian nationalism: imperialism, ethnicity and authoritarianism 2000-2015. Edimburgo: Edinburgh University Press. 2016. pp. 249-274

GIELOW, Igor. Decreto de Putin facilita cidadania russa a separatista da Ucrânia. Folha de S. Paulo. São Paulo. 24 abr. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/04/decreto-de-putin-facilita-cidadania-russa-a-separatista-da-ucrania.shtml. Acesso em: 06 maio 2020.

HENDLER, Bruno. A crise na Ucrânia e os níveis de análise em Segurança Internacional: um exercício analítico a partir da Escola de Copenhagen. Conjuntura Austral. [Porto Alegre]. vol. 5, nº 26, out./nov.2014. pp. 4-14.

KOLESNIKOV, Andrei. Why the Kremlin is Shutting Down the Novorossyia Project. Carnegie Endowment for International Peace. 29 maio 2015. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2015/05/29/why-kremlin-is-shutting-down-novorossiya-project/i96u. Acesso em: 06 maio 2020.

MIELNICZUK, Fabiano. A crise ucraniana e suas implicações para as relações internacionais. Revista Conjuntura Austral. [Porto Alegre], vol. 5, nº 23, abr./maio, 2014.

OCHA. Humanitarian Needs Overview. Ukraine. January. Disponível em: https://www.humanitarianresponse.info/sites/www.humanitarianresponse.info/files/documents/files/ukraine_2020_humanitarian_needs_overview_en.pdf. Acesso em 12 maio 2020.

 OCHA. Ukraine. Disponível em: www.unocha.org/ukraine. Acesso em: 12 maio 2020.

OCHA. Ukraine Situation update No. 7 as of 14 August 2015. Disponível em: <https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/ocha_ukraine_situation_update_number_7_14_august_2015.pdf>. Acesso em: 12 maio 2020.

PUTIN assina acordo para anexar Crimeia à Rússia. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/putin-assina-acordo-para-anexar-crimeia-russia-11908094. Acesso em: 06 maio 2020.

RÚSSIA enviou 45 mil soldados à fronteira, diz ucraniano. Exame. 05 abril. 2014. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/russia-enviou-45-mil-soldados-a-fronteira-diz-ucraniano/. Acesso em: 06 maio 2020.

 SCIUTTO, Jim. The Shadow War: Inside Russia’s and China’s Secret Operations to Defeat America. HarperCollins Publisher. 2019.

UCRÂNIA. Censo de 2001. Disponível em: http://2001.ukrcensus.gov.ua/results/general/nationality/. Acesso em 6 maio 2020.

UKRAINE drops EU plans and looks to Russia. Al Jazeera. 21 nov. 2013. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/europe/2013/11/ukraine-drops-eu-plans-looks-russia-20131121145417227621.html. Acesso em: 06 maio 2020.

UKRAINE conflict: Can peace plan in east finally bring peace? BBC NEWS. 10 dez. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-49986007. Acesso em: 06 maio 2020.

UKRAINE and Russia agree to implement ceasefire. BBC NEWS. 10 dez. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-50713647. Acesso em: 06 maio 2020.

 

Imagem: Guerra no leste da Ucrânia: Getty images

Partido militar controla o Brasil, mas não controla o Bolsonaro

Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional vê risco de quebra da hierarquia, se presidente radicalizar

As Forças Armadas tornaram-se onipresentes e um ator político no Brasil de Jair Bolsonaro, e não só por lotearem o governo. Toda confusão criada pelo presidente costuma ser comentada na mídia, em geral de forma anônima, por algum militar, do governo ou não. Quando a confusão beira a guerra com outros poderes, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Brasília prende a respiração: “E os militares?”

Pode-se dizer que o País está “tutelado” pelas Forças Armadas, um processo que começou no governo Michel Temer, segundo um longo ensaio publicado recentemente por três pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), um núcleo da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O texto intitula-se “As Forças Armadas no governo Bolsonaro” .

“Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas Forças Armadas. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos”, escrevem os autores.

O curioso é que os militares tinham o objetivo declarado de tutelar o atual presidente, que é um deles, mas nesse caso não têm tido sucesso. “O partido militar controla o Brasil, mas não controla o Bolsonaro”, afirma uma das autoras do ensaio, Ana Penido, cientista social de formação, mestre em Estudos Estratégicos de Defesa e doutora em Relações Internacionais.

Para Ana, é pouco crível que, com todo seu aparato de inteligência, as Forças Armadas não soubessem das ligações do clã Bolsonaro com milicianos, um dos rolos a machucar a imagem do presidente. Se, ainda assim, aceitaram se vincular a ele desde a campanha, é por nutrirem mais interesses comuns do que divergências.

Na entrevista a seguir, a pesquisadora aborda esse e outros aspectos sobre o papel dos quartéis no Brasil de hoje e a relação deles com Bolsonaro.

 

CartaCapital: O que é o “partido militar” que vocês mencionam no artigo?

Ana Penido: Não fomos os primeiros a empregar esse conceito, ele já foi usado por outros autores da sociologia militar, inclusive conservadores. É uma expressão bem didática, porque as pessoas sabem o que é um partido. Um partido tem algum grau de unidade, ainda que com disputas internas, externamente vota junto, gostaria que suas opiniões fossem majoritárias na população, disputa isso com outros segmentos… Hoje tudo que acontece as pessoas querem saber a opinião dos militares, a imprensa quer saber, eles passaram a dar opinião sobre tudo. Esse “partido militar” passou a tutelar o País, agora faz parte do jogo político. Essa tutela pressupõe uma certa superioridade intelectual, estratégica. Tem sido assim desde o Temer.

 

CC: A ideia de tutela do Bolsonaro existe desde o início do governo, os militares a alimentaram. Funcionou? Ou o Bolsonaro é “intutelável”?

 AP: A expressão “tutela” também é muito didática, as pessoas sabem o que é conselho tutelar, escutam essa expressão nos bairros, sabem os poderes que o conselho tutelar tem no processo de criação das crianças. Acho que, de fato, em algum momento os militares acreditaram que tutelariam o Bolsonaro, segurariam os arroubos dele, por serem mais qualificados, terem mais habilidades. Eles se venderam como os moderados do governo, mas desde o início vimos que não é bem assim. As declarações da ala olavista (discípulos do guru bolsonarista Olavo de Carvalho, que vocalizou a insurgência contra a tutela) chamavam a atenção, a gente se acostumou a ouvir falar em terra plana, coisas desse tipo. Além disso, o Bolsonaro é que tem os votos, ele é que ganhou a Presidência, não foram os militares. As Forças Armadas emprestaram o prestígio ao Bolsonaro, podem até planejar o governo, mas, no fim das contas, o Bolsonaro continua tendo o poder da caneta.

 

CC: Talvez isso explique por que ele testa os limites com críticas, por exemplo, ao Supremo, e as Forças Armadas reajam sempre de forma acanhada, talvez até com benevolência.

 AP: Um militar da ativa não deveria reagir de maneira nenhuma, nem dar entrevista em off  (sem ter no nome revelado pelo órgão de comunicação), não é pra isso que militar da ativa serve, nem que o Bolsonaro falasse qualquer barbaridade. É um absurdo essas entrevistas, é ilegal pelas normas de comportamento que os próprios militares elaboraram para eles e que deveriam seguir (o decreto presidencial 4.346, de 2002, lista como “transgressão” militar a manifestação pública do pessoal da ativa sobre assuntos político-partidários). Os militares da reserva, não, aí é facultado ter opiniões políticas.

 

 CC: Os militares dizem, nessas conversas em off com jornalistas, que não fazem parte do governo, que institucionalmente as Forças Armadas não estão no governo. É verdade essa posição?

 AP: Vejo muitas matérias sobre “os militares estão insatisfeitos”, “os militares gostaram”, “os militares não gostaram”, mas o que a gente pode tomar como opinião institucional são as notas do Ministério da Defesa, o resto são fontes não identificadas que não representam a totalidades da categoria. Sobre a sua pergunta, mais interessante é acompanhar o Diário Oficial da União, ali a gente vê o que de fato os militares estão fazendo.

 

CC: E o que o Diário Oficial mostra?

AP: Já saíram quatro ou cinco portarias, normativos do Ministério da Defesa ou para conter a ida massiva de militares para o governo ou para regulamentá-la segundo os princípios de hierarquia e disciplina que regem o mundo militar (há um decreto específico sobre a ida de militares para o governo, o 10.171, de 11 de dezembro de 2019, assinado pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e pelo presidente). Quem pode indicar quem vai para o governo? As Forças Armadas querem manter isso pra elas. No início do governo não tinha portaria sobre isso. Saiu mais uma (a portaria 34 do GSI, de 29 de abril de 2020, assinada pelo ministro-general Augusto Heleno) dizendo que só as Forças Armadas são responsáveis por vigiar como outro militar está trabalhando, ainda que subordinado a um civil de outro ministério. No mundo civil não há mesma preocupação com siglas, símbolos, o nome exato de cada coisa, e no último mês saiu da Casa Civil um glossário de nomes de cada uma das repartições (da pasta) e suas siglas correspondentes (a portaria 182, de 14 de abril de 2020, assinada pelo ministro-general Walter Souza Braga Netto). Isso é a cultura militarizada. Então, é difícil falar que as Forças Armadas não estão no governo, porque o olhar militar se coloca em todos os espaços.

 

CC: E por que você diria então que existe o esforço retórico de desvinculação?

 AP: Não é retórico, eles tentam preservar a instituição e a própria família militar. O (vice-presidente e general aposentado Hamilton) Mourão assumiu no ano passado que ia ser inevitável que as pessoas associassem as Forças Armadas ao governo, ao presidente, mas, por outro lado, os militares fazem esse esforço contínuo de tentar separar quem manda onde, quem é subordinado a quem.

 

CC: Que interesses aproximam as Forças Armadas e o Bolsonaro?

 AP: O mais nítido, sem dúvida, é a questão do nacionalismo, do patriotismo. É um nacionalismo muito forte do ponto de vista simbólico, de usar a bandeira do Brasil, de cantar o hino nacional, o próprio lema do Bolsonaro vem das Forças Armadas (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos). Mas essa noção de pátria é mais territorial, não é de projeto nacional. É um nacionalismo sem um projeto nacional de país que as próprias Forças Armadas já tiveram na década de 1950. Na esquerda, há uma ideia muito forte, até por causa do (penúltimo general-ditador, no poder de 1974 a 1979, Ernesto) Geisel, de que os militares são desenvolvimentistas economicamente, mas eles passaram a sustentar políticas liberais há muito tempo. O patrimônio nacional tem sido vendido desde a época do (ex-presidente tucano no poder de 1995 a 2002) FHC, e as Forças Armadas não reagem. Não se opuseram à venda da Embraer para a Boeing (iniciada no governo Temer e concluída no atual). A ideia de defesa da família e das tradições também aproxima as Forças Armadas e o Bolsonaro.

 

CC: A reabilitação do golpe de 1964 e da ditadura que se seguiu até 1985 também, não?

 AP: Sim, essa ideia de revisão histórica… Tenho a impressão de que existe um sentimento muito sincero nos militares, não quer dizer que eu concorde, de que eles saíram injustiçados da ditadura. Injustiçados no sentido de “a gente fez o que combinou com um monte de gente, mas no final das contas o que deu errado caiu foi só na nossa conta”. Mas essa questão do que foi o regime, seus prós e contras, é um tema bem controverso para eles (militares).

 

CC: E o que afasta Bolsonaro e os quartéis, se é que tem algo?

 AP: De forma geral, os militares são discretos, educados no trato, principalmente no trato com os civis, com a imprensa, com o público, são sempre preocupados em passar uma boa imagem da corporação. E  gostam da ordem. O Bolsonaro é o menos discreto possível, faz declarações polêmicas, sempre atua numa lógica de alimentar uma base muito militante que ele tem, que até caminha para o fascismo, se ainda não chegou lá… Ele infla uma coisa com a qual os militares, na história inteira, sempre disseram que não concordavam, essa ideia de que existem polos em disputa. A ideia de unidade nacional é muito forte para eles, e o Bolsonaro investe contra ela todo o tempo. Há também diferença de forma. O militar planeja, ele não improvisa, e o Bolsonaro improvisa muito.

 

CC: Ele estimula de alguma forma a quebra da hierarquia, ao se dirigir às vezes diretamente às baixas patentes militares. Vê risco de quebra da hierarquia, se ele radicalizar? Quem controla as bases, o alto comando ou o presidente?

 AP: Essa é uma pergunta muito difícil, ninguém tem 100% de certeza da resposta. Isso explica um pouco o comportamento das Forças Armadas. Eu levantei essa hipótese pela primeira vez na época da soltura do Lula. Eu pensava: e se, de repente, um major qualquer lá do Paraná se levantar e disser que “não, daqui o Lula não sai, a Justiça pode falar o que quiser, mas daqui o Lula não sai?”. Hoje um jovem que procura essa carreira não necessariamente tem a mesma mentalidade dos generais quatro estrelas. Virou uma carreira pública muito interessante, igual o Judiciário, existe todo um segmento concurseiro que olhou com carinho para essa carreira. Vai mudando um pouco inclusive a forma de exercer a hierarquia. Mas o tempo todo o alto comando vem trabalhado no sentido de reforçar a sua hierarquia.

 

CC: A perda do monopólio da força para PMs e de quebra da hierarquia nelas também é uma preocupação das Forças Armadas? O Bolsonaro é popular entre PMs.

AP: Em todos os planejamentos das Forças Armadas, elas contam com a Polícia Militar como reserva, como capacidade de mobilização, de fato tem policial em cada cidade desse País. Repare que o Ministério da Defesa chamou de greve, o que pelas normativas é um motim, aquilo que aconteceu com PMs no Ceará. O que acontece agora, acho, é que mudou a autoridade moral que as Forças Armadas tiveram em outros momentos da história na área de segurança. Muitas pesquisas da sociologia e da antropologia mostram falas de policiais dizendo assim: “Quem vai pra guerra somos nós, eles (os militares das Forças Armadas) ficam só no escritório”.

 

 

Reproduzido de: https://www.cartacapital.com.br/politica/partido-militar-controla-o-brasil-mas-nao-controla-o-bolsonaro

Crédito imagem: “BOLSONARO E MILITARES DURANTE A CERIMÔNIA COMEMORATIVA DO DIA DO EXÉRCITO” Foto de Marcos Corrêa/PR

O Conflito no Sudão: o caso de Darfur

Ligia Maria Caldeira Leite de Campos

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e bolsista CAPES.

E-mail: ligia.campos4@hotmail.com

 

Atualmente, há distintos focos de violência armada e instabilidade política no Sudão. Um desses casos é a fronteira com o Sudão do Sul, nos estados de Blue Nile e South Kordofan. Esta região lidou com muitos embates nas guerras civis que levaram à Independência do Sudão do Sul e, em 2011, sua população foi alvo de ações do governo por ser considerada apoiadora do grupo Sudan People Liberation Movement/Army North (SPLM/A-N), dissidência do Sudan’s People Liberation Movement/Army (SPLM/A), antigo grupo rebelde que governa o Sudão do Sul hoje em dia (BRAGA, 2012).

Hostilidades também ocorrem em outra região fronteiriça entre o Sudão e o Sudão do Sul, conhecida como Abyei. Esta é uma área rica em recursos, disputada por ambos países e que lida com conflitos étnicos.  No local, há uma missão de paz da ONU nomeada United Nations Interim Security Force for Abyei (UNISFA) desde 2011. A região ainda vive um impasse, mas a situação pode se alterar positivamente devido às aproximações mais recentes entre esses Estados (OCHA, 2019; UNISFA, 2019; RELIEFWEB, 2019).

Outra importante área a ser apresentada mais detalhadamente a seguir é a de Darfur. Na história do país, foram várias as dificuldades enfrentadas, o que se evidenciou principalmente em constante instabilidade política, com uma série de regimes militares que impulsionavam governos pró-Islâmicos. Em 1989, o presidente Omar Hassan Ahmad Al-Bashir assumiu este posto via golpe e era membro da Frente Nacional Islâmica. Em seu governo, criou-se a Força de Defesa Popular (People’s Defense Force, PDF, em inglês), iniciando o processo de militarização da população sudanesa. Esta força funciona como um exército paralelo às Forças Armadas, servindo também como instrumento para a islamização do país (PERES, 2016).

No que diz respeito a Darfur, esta é uma região situada no oeste do território sudanês, composta majoritariamente por muçulmanos das tribos Fur, Zaghawa e Massalit. Da mesma maneira que a PDF, um grupo chamado Baqqara se militarizou e sua parcela que se localizava a oeste utilizou armamentos para investir contra essas tribos, com quem disputava território e água em Darfur. São esses baqqara, armados pelo próprio governo sudanês, os quais compõem as janjaweed, milícia utilizada para conter a revolta darfuri (residentes de Darfur) no começo de 2003 (PERES, 2016).

Essa revolta eclodiu após a assinatura do acordo de paz do governo com a região Sul, ainda não independente, o qual ignorou os interesses de outras partes do país. Portanto, buscava-se chamar a atenção internacional para demonstrar que o acordo estabelecido não bastava para solucionar as demais crises. A ação visava alcançar um Sudão mais igualitário e democrático, em que a região deixasse de ser marginalizada. Vários postos policiais na região de Darfur foram alvos do grupo Darfur Liberation Front (DLF), que passaria a ser o Sudan Liberation Movement/Army (SLM/A), comandado por Abdel Al-Wahid. Para realizar essas ações, esteve também presente o grupo Justice and Equality Movement (JEM), apesar de algumas diferenças entre eles (BADMUS, 2008; PERES, 2016).

O governo sudanês oficialmente negava a rebelião, mas organizava as janjaweed. As janjaweed são consideradas milícias criadas pelo governo central para atuar em Darfur como parte da PDF, no sentido de operar como o Estado em momentos em que as Forças Armadas não podem fazê-lo. Consequentemente, houve uma série de atos violentos como retaliação às vitórias iniciais do JEM e do SLM/A. Outros grupos surgiram nesse contexto, com os mesmos objetivos do SLM/A e do JEM (PERES, 2016).

Nos anos decorrentes, o governo sudanês realizou a política da terra arrasada contra os darfuri não árabes, a qual consiste em ataques recorrentes a aldeias de negros africanos, com a justificativa de que estes estariam acolhendo rebeldes. Casas foram queimadas, assim como aldeias por completo. Houve massacres, estupros, mutilações, saqueamentos e ações por via terrestre e aérea. Logo, essas atitudes passaram a ser entendidas como configuradoras de genocídio. O governo refuta a afirmação de que tenha envolvimento nessas ações, mas evidências apontam o contrário (PERES, 2016; BRAGA, 2012).

As razões mais profundas do conflito são variadas. Dentre elas, está a dinâmica social de Darfur que constantemente foi constituída por conflitos étnicos entre pastores árabes nômades e seminômades e agricultores não árabes sedentários. A situação se agravou com a seca durante os anos 1980, em que houve uma intensificação da desertificação resultando em fome e disputa por terreno fértil. Outra motivação é a negligência do governo em relação a Darfur, região que permaneceu subdesenvolvida, sem acesso a serviços, sendo que os principais investimentos foram direcionados à área de Cartum, capital do país. A isso se soma o autoritarismo de Al-Bashir, que buscava controlar todos os fatores da vida dos sudaneses, resultando numa supremacia árabe, com a tentativa de impor a ideologia islamista, compreendendo os demais cidadãos como inferiores. Desde a Independência do Sudão, em 1956, o poder político pende ao monopólio por parte dos árabes. O Islã chegou a ser estabelecido como religião do Estado, assim como a Sharia (lei islâmica). Como consequência, passou-se a justificar as mortes, escravização e estupro conforme o pertencimento a determinados grupos. A utilização do conflito como tática de contrainsurgência é também uma questão, uma vez que o país lida com outras áreas instáveis e a violenta retaliação à rebelião serve como exemplo, não abrindo espaço a novos levantes. Outro importante aspecto é o influxo de armas e a belicosidade na África Oriental para a solução de disputas, especialmente após a modificação dos mecanismos de solução de controvérsias tradicionais. Todo esse cenário se agrava com o histórico do país composto por autoritarismo, políticas públicas desiguais, corrupção, infraestrutura insuficiente, entre outros problemas de governança, e violações de direitos humanos e de liberdades fundamentais (PERES, 2016; BADMUS, 2008; BRAGA, 2012).

Em maio de 2006, estabeleceu-se o Acordo de Paz de Darfur (Darfur Peace Agreement, DPA, em inglês) entre o governo e uma das facções do SLA, comandada por Minni Minawi (SLA-MM). A outra facção do SLA liderada por Abdel Wahid (SLM-AW) e o JEM não o assinaram. Por conseguinte, os embates prosseguiram, havendo vários empreendimentos contra os locais ocupados pelos rebeldes não signatários, e o governo agiu de forma a diminuir o acesso da assistência humanitária. Nesse contexto, houve a fragmentação dos movimentos rebeldes, gerando violência entre eles. Os grupos também se juntaram a outros advindos do Chade que, assim como a Eritreia, forneceu apoio a organizações armadas. A insegurança se manteve, o acordo foi visto com desconfiança e houve aumento do banditismo local (PERES, 2016; BRAGA, 2012).

Em 2008, o governo de al-Bashir criou a Iniciativa do Povo do Sudão, visando uma solução política para o conflito, o que não funcionou. Em março de 2009, o Tribunal Penal Internacional (TPI) lançou uma ordem de prisão contra al-Bashir, sendo este o primeiro caso contra um presidente em exercício. A decisão foi rejeitada pelo governo e este declarou a intenção de expulsar organizações humanitárias e encerrar as atividades de duas Organizações Não-Governamentais (ONGs) sudanesas em Darfur. Em 2011, com as novas hostilidades em South Kordofan e em Blue Nile, o SPLM-N tornou-se aliado aos movimentos de Darfur, resultando na Frente Revolucionária do Sudão (Sudan Revolutionary Front, SRF, em inglês), a qual buscava a derrocada do governo de al-Bashir (BRAGA, 2016).

Também em 2011, foi realizado um novo acordo conhecido como Doha Document for Peace in Darfur (DDPD). Todavia, os resultados não foram muito além do acordo anterior. Mais ainda, o governo criou as Forças Rápidas de Apoio (FRA), conhecidas como “novas janjaweed”, mais treinadas e armadas (PERES, 2016).

Entre 2013 e 2014, a violência nas regiões de South Kordofan, Blue Nile e Darfur alcançou um alto nível, aproximando-se daquele verificado em 2007. Em 2014, al-Bashir lançou um “Diálogo Nacional”, porém não estava disposto a fazer as concessões necessárias ao diálogo. Seus opositores (grupos armados, partidos políticos e sociedade civil) assinaram, então, a Declaração Política sobre o Estabelecimento de um Estado Cidadão e Democrático, conhecida como “Chamada ao Sudão”, objetivando a retirada do modelo de um partido único e a transição democrática do governo. Em 2016, as conversações foram suspensas (BRAGA, 2016).

Atualmente, o país vive um momento de transição após protestos iniciados em dezembro de 2018, os quais levaram à retirada de al-Bashir do poder em abril de 2019. O Sudão está sendo governado por uma administração civil-militar conjunta até a realização de eleições democráticas, previstas daqui a três anos. Al-Bashir permanece preso em Cartum, da mesma maneira que outros oficiais de seu governo (THOUSANDS…, 2019; SUDAN…, 2019; PSC REPORT, 2019).

O acordo feito para colocar o governo de transição no poder previu que este teria seis meses para realizar acordos de paz com todos os grupos armados do Sudão. Em setembro, negociações de paz foram retomadas entre o governo e rebeldes atuantes em Darfur, Blue Nile e South Kordofan, incluindo o SPLM/A-N, JEM, SLM-MM, entre outros. Como resultado, foi feita a Declaração de Juba, visando construir confiança entre as partes. Foi anunciado um cessar-fogo permanente, trocas de prisioneiros e um “corredor humanitário” para a entrega de ajuda humanitária. Os pontos abertos para discussão incluem a falha em gerenciar a diversidade étnica e religiosa, falta de liberdade e justiça, marginalização socioeconômica e hegemonia do centro em relação à periferia do país, além de um possível compartilhamento de poder no governo e o desarmamento, desmobilização e reintegração das forças paramilitares, incluindo as janjaweed e as FRA, junto à reforma do setor de segurança. A divisão equitativa de receitas advindas de recursos naturais também está em pauta. Contudo, muitos são ainda os desafios que o processo de paz tem que lidar, como a falta de confiança entre as partes e da própria população em relação a alguns grupos armados. A oposição armada nesses estados continua. Ainda são relatados embates e hostilidades entre as comunidades em Darfur (THOUSANDS…, 2019; SUDAN…, 2019; PSC REPORT, 2019; OCHA, 2020a).

Até o momento, o número de deslocados internos da região de Darfur é de 1,86 milhão (do total 2,1 milhões do país) (OCHA, 2020a; THE HUMANITARIAN DATA EXCHANGE, 2020). A respeito do fluxo de refugiados e requerentes de asilo sudaneses no Sudão do Sul, Chade, Etiópia, Egito, Quênia e Jordânia, estes somam cerca de 745 mil (OCHA, 2020b). A situação do país se configura como uma das maiores crises humanitárias do mundo, em que cerca de 3,9 milhões de pessoas precisam de assistência somente em Darfur (do total 9,3 milhões no Sudão) (OCHA, 2020a). Segundo o Uppsala Conflict Data Program (2020), foram mortas por volta de 37 mil pessoas no país entre 2003 e 2018. Ao se considerar a violência junto à fome e doenças em decorrência das hostilidades, Braga (2012) aponta 350 mil mortos apenas no período até 2006. Tratam-se de estimativas, pois a quantidade exata é difícil de calcular, devido ao complicado acesso a locais mais remotos e à atualidade do conflito.

No que tange à participação internacional durante o conflito de Darfur, as potências ocidentais foram chamadas a intervir para encerrá-lo. Todavia, antes de 2004, um dos períodos mais violentos, sua ação foi restrita quase que exclusivamente à assistência humanitária. Nesse sentido, destaca-se a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Africana (UA) que estiveram presentes nesse contexto, mas de forma limitada. A partir de acordos realizados, a UA originou a African Mission in Sudan (AMIS) para monitorá-los, criar confiança entre as partes e ampliar a segurança na região. Em 2007, com o aumento da insegurança regional, a African Union/United Nations Hybrid operation in Darfur (UNAMID) foi estabelecida para substituir a AMIS e está vigente até hoje. Sendo uma missão de paz conjunta entre a UA e a ONU, seu mandato tem como base proteger civis, facilitar a entrega de ajuda humanitária, verificar a implementação dos acordos, promover os direitos humanos e o Estado de Direito e propiciar um ambiente adequado para o estabelecimento da paz. Há também a participação de Estados africanos individualmente para tentarem solucionar o conflito. Muitos países definiram sanções contra o Sudão, como os europeus e os Estados Unidos. É importante considerar a presença da China, país ao qual o Sudão exporta mais de 50% de seu petróleo, resultando numa relação que envolve também as questões políticas locais. Ademais, a China aumentou o fornecimento de armas ao governo sudanês e teve participação na revitalização da indústria bélica no país, ao mesmo tempo em que o pressionou para que se moderassem as ações contra os rebeldes (BRAGA, 2012; BADMUS, 2008; UNAMID, 2019; UNITED NATIONS, 2019).

Por conseguinte, são diversas as fontes e áreas de instabilidade no país, no que se destaca a região de Darfur. Ao pensar um futuro cenário para o Sudão, é necessário analisar como todos os atores envolvidos se comportarão em face às mudanças políticas que vêm se desenvolvendo. Também é preciso lembrar que, mesmo com o cessar-fogo estabelecido, os embates não foram completamente interrompidos. Portanto, embora um acordo de paz esteja sendo arquitetado, para que haja uma resolução real, definitiva e sustentável para as hostilidades, é preciso que as raízes mais profundas dos conflitos sejam abordadas e solucionadas.

 

REFERÊNCIAS

BADMUS, Isiaka Alani. “Nosso Darfur, Darfur Deles”: A Política Desviante do Sudão e a Nascente “Limpeza Étnica” em uma Emergente Anarquia Africana. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, p.309-360, maio 2008.

BRAGA, Camila de Macedo. As Estratégias Internacionais de Prevenção à Violência em Massa e a “Nova Guerra” no Darfur. 2012. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais, Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-sp), São Paulo, 2012.

BRAGA, Camila. O Conflito Armado em Darfur- Sudão. Série Conflitos Internacionais, Marília, v. 3, n. 5, p.1-8, out. 2016.

OCHA. Humanitarian Needs Overview 2020: Sudan. 2020a. Disponível em: https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Sudan_2020_HNO.pdf . Acesso em: 22 abr. 2020.

OCHA. Humanitarian Response Plan January-December 2019: Sudan. 2019. Disponível em: <https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Sudan_2019_Humanitarian_Response_Plan.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2019.

OCHA. Key Figures. Disponível em: www.unocha.org/sudan. Acesso em: 23 abr. 2020b.

PERES, Leonardo Augusto. O Genocídio como Problema Internacional Contemporâneo: Um Estudo do Caso Sudanês. 2016. 127 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

PSC REPORT. Negotiations to end all wars in Sudan: The African Union has a key role to play in the ongoing negotiations to end the civil war in Sudan. 2019. Disponível em: <https://issafrica.org/pscreport/psc-insights/negotiations-to-end-all-wars-in-sudan>. Acesso em: 20 nov. 2019.

RELIEFWEB. The situation in Abyei – Report of the Secretary-General (S/2019/817) [EN/AR]. 2019. Disponível em: <https://reliefweb.int/report/sudan/situation-abyei-report-secretary-general-s2019817-enar>. Acesso em: 20 nov. 2019.

SUDAN peace talks resume after deadlock: Officials say Khartoum and rebels have managed to pin down a partial agenda for discussions. Al Jazeera. Doha, p. 1-1. 18 out. 2019. Disponível em: <www.aljazeera.com/news/2019/10/sudan-peace-talks-resume-deadlock-191018192037100.html>. Acesso em: 20 nov. 2019.

THE HUMANITARIAN DATA EXCHANGE. Sudan Displacement Data: Registration [IOM DTM]. Disponível em: https://data.humdata.org/dataset/sudan-registration-data-iom-dtm. Acesso em: 22 abr. 2020.

THOUSANDS rally in Sudan, call for Bashir party to be disbanded: Rallies held in several cities with demonstrators calling for the former leader’s party to be dissolved. Al Jazeera. Doha, p. 1-1. 21 out. 2019. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2019/10/thousands-rally-sudan-call-bashir-party-disbanded-191021170631583.html>. Acesso em: 20 nov. 2019.

UNAMID. About UNAMID. Disponível em: <https://unamid.unmissions.org/about-unamid-0>. Acesso em: 20 nov. 2019.

UNISFA. Background. Disponível em: <https://unisfa.unmissions.org/background>. Acesso em: 20 nov. 2019.

UNITED NATIONS. UNAMID Fact Sheet. Disponível em: <https://peacekeeping.un.org/en/mission/unamid>. Acesso em: 20 nov. 2019.

UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM. Sudan. Disponível em: https://ucdp.uu.se/country/625. Acesso em: 23 abr. 2020.

 

Créditos da imagem: Amin Ismail, UNAMID. Disponível em: <www.flickr.com/photos/unamid-photo/42509873780/in/photostream/>

Forças Armadas no governo Bolsonaro – Parte II

Ana Penido, Jorge M. Oliveira Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias

 

Este texto é uma atualização do artigo publicado – Forças Armadas no Governo Bolsonaro – pelos autores no Portal do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele será referenciado algumas vezes ao longo do texto.

 

No dia 19 de abril, dia do Exército brasileiro, o Brasil viveu mais um ato de sua tragédia. Em cidades por todo o país, manifestantes apoiadores do governo Bolsonaro saíram às ruas contra as medidas de isolamento social diante da pandemia adotadas pelo Ministério da Saúde e por prefeitos e governadores. Alegavam se sentir lesados em seu direito de ir e vir. Contraditórios, exigiam em sua luta pela liberdade uma intervenção militar com Bolsonaro a frente e a edição de um novo Ato Institucional no 5, nos moldes da norma adotada durante o regime burocrático-autoritário no Brasil. A cereja do bolo foi a presença do próprio presidente  na manifestação ocorrida em frente ao Quartel Geral do Exército; e a promoção, via Twitter, de vídeo em que aparece discursando tendo como fundo de tela faixas clamando pela intervenção.

Gerson Camarotti aponta que, entre integrantes da chamada “ala militar” do governo, o sentimento era de mal-estar com a participação do presidente no ato, seja pela emergência sanitária que sugere evitar aglomerações, seja em virtude do local escolhido, uma vez que, como uma zona de segurança nacional, o trânsito nesse local deveria ser restrito. Não houve comentários quanto ao conteúdo antidemocrático da ação. Os maus humores também estariam associados ao local escolhido para a manifestação. Um dos oficiais ouvidos pela reportagem do Estadão dizia: “se a manifestação tivesse sido na Esplanada, na Praça dos Três Poderes ou em qualquer outro lugar seria mais do mesmo […]. Mas em frente ao QG, no dia do Exército, tem uma simbologia dupla muito forte. Não foi bom porque as Forças Armadas estão cuidando apenas das suas missões constitucionais, sem interferir em questões políticas”. O agravante da participação presidencial não passou despercebido. Melindrosos quanto às críticas ao comandante constitucional das Forças Armadas, as palavras utilizadas foram: “provocação”, “desnecessária” e “fora de hora”.

Mas foi o general da reserva e ex-ministro do governo Bolsonaro, Carlos Alberto Santos Cruz, quem deu um rosto a esse discurso. Em comentários sobre os atos, primeiro via Twitter e posteriormente em entrevista ao UOL, Santos Cruz reforçou a ideia de que, enquanto instituição, as Forças Armadas não representam governo algum. Referindo-se à participação de Bolsonaro no ato, Santos Cruz reforçou que os clamores por intervenção militar não tinham representação institucional [das Forças]. Perguntado se a participação das Forças Armadas no governo Bolsonaro não poderia manchar a credibilidade da instituição, Santos Cruz rebateu: “O que eu vejo é que não existe essa, vamos dizer assim, essa marcha junto com o governo. […] Não é um alinhamento de governo. O Exército não é partidário. Não é de governo”.

O esforço em desconectar a imagem dos militares à do governo não é novo. Mesmo antes do início efetivo do governo Bolsonaro, a preocupação com o alto número de militares nos quadros governamentais e as consequências disso para a imagem das forças já era latente entre membros do alto escalão castrense. É o caso, por exemplo, da insistência de Villas Bôas, ainda em novembro de 2018, em ressaltar que, mesmo com elevado número de fardados no governo, não se tratava de um governo de militares.

A cada dia que passa, essa narrativa cai por terra. Ainda em abril de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão reconhecia: “se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas”. Desde então, cresceu muitíssimo em relevância a participação do partido militar[1] no governo, que passou a ser seu principal pilar de sustentação política quantitativa e qualitativamente. Com isso, os apontamentos de Rodrigues feitos em artigo também veiculado pelo Eris se confirmaram, trata-se de um governo militarizado. Isso fez com que o tom de parte da imprensa também se modificasse, como no histórico editorial do Estadão de 21 de abril. “Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele”.

As FFAA parecem entender parcialmente a encalacrada a que foram arrastadas pelo partido militar, e começam algumas discretas manobras de distanciamento no intuito de estabelecer um cordão sanitário entre governo e as Forças. Se de início os fardados pretendiam-se como poder moderador, hoje é certo que se vêm assoberbados com preocupações sobre a própria fiabilidade da instituição. O Exército mantém sua preponderância, embora a participação da Marinha venha crescendo. Enfim, Mourão estava correto.

Em estudo recente publicado pelo instituto Tricontinental discutíamos a névoa que pairou sobre aspirações, ressentimentos e incursões políticas das forças castrenses no Brasil durante os últimos anos. Dizíamos então que o período de relativa equidistância vigente durante os dois mandatos de Lula da Silva ajudou a construir uma falsa imagem de distanciamento dos militares da política.

Em coluna recente na Folha de São Paulo, Janio de Freitas pontuava “historicamente, nenhum outro segmento feriu tanto a disciplina, e com tamanha gravidade, quanto os militares”. Com efeito, não faltam em nossa história exemplos em que o peso da “mão amiga” se fez sentir. Para nos atermos aos mais recentes: a saída de José Viegas do ministério da Defesa após confronto com comandante do Exército; o antagonismo à presidenta Dilma Rousseff no marco da criação da Comissão Nacional da Verdade; a restauração e retorno ao controle militar do Gabinete de Segurança Institucional sob Michel Temer; e com especial menção, a pressão do então comandante do Exército, general Villas Boas, ao Supremo Tribunal Federal no marco do julgamento do habeas corpus de Lula.

Podemos dizer que ao subir no palanque, as Forças Armadas assumiram posição de vidraça, sujeitando-se às pedras. Temos então um cenário em que não é a atuação política dos militares a novidade desta quadratura histórica, mas sim a preocupação que o governo da vez traga à Instituição revezes de credibilidade.

Por outro lado, é incorreta (ao menos quanto a forma) a pergunta que um conjunto de analistas tem se colocado: “até quando as FFAA irão com Bolsonaro? Até quando segurarão a mão dele?” Dizemos incorreta pois é irreal pensar que o principal partido do governo, detentor dos principais cargos, vá sair do governo, nos moldes do visto com Luiz Henrique Mandetta, Osmar Terra ou outros. Em outras palavras, não acreditamos que as FFAA deixarão o governo, muito menos em plena pandemia. Da mesma maneira, pode-se afirmar que o partido militar não deu um golpe, ele entrou como parte do jogo, e se orgulham disso, terem voltado ao centro da política através da democracia. Nesse sentido, se seguirão com Bolsonaro, é uma questão que diz menos respeito as FFAA e sim às ferramentas democráticas de afastamento do presidente, baseadas no legislativo, no judiciário e na pressão popular.

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, Kalil Mathias provoca: “as brigas palacianas são apenas pela forma, não pelo conteúdo”. Assim, mesmo que a preocupação com as manchas à imagem da instituição seja latente, mantêm-se as conveniências de permanecer no poder contando com uma figura “messiânica” e utilizando-se de seu apoio popular. São muitos os pontos de comunhão na agenda política: 1) uma nítida agenda moralizante, calcada numa vocação salvacionista auto-outorgada; 2) congruência na visão econômica e gerencialista, não mais pautada pelo nacional-desenvolvimentismo modernizante de Geisel[2]; 3) uma dimensão de crenças, baseada na negação à esquerda, as pautas consideradas identitárias, e a um patriotismo baseado no culto aos símbolos nacionais.

Vale mencionar um quarto aspecto intrigante da relação entre o partido militar e governo: a condução atabalhoada da política externa brasileira. Por sua função precípua, qual seja, a defesa do país contra ameaças externas, espera-se dos militares uma atenção especial às relações internacionais. Entretanto, apesar de algumas ações para amortecer impulsos olavistas do governo – como a fala conciliatória de Mourão no episódio “Dudu Bananinha”, em que Eduardo Bolsonaro acusou a China de ter sido criminosa quanto ao tratamento do Covid-19 – não temos por parte dos militares um posicionamento explícito em assuntos de política externa. Visto estarem se manifestando tanto, e sobre tantos assuntos, o silêncio da ala militar é ensurdecedor nesse tema.

Temos, portanto, um cenário dúbio, mas complementar. Por um lado, o partido fardado circunda a Presidência, vendendo-se como polo racional e como alternativa aceitável num eventual impeachment de Bolsonaro. Por outro, permanecem no governo pelo cálculo de que Bolsonaro possui os votos que eles não tem para a condução de um projeto com o qual mais concordam que discordam. As cicatrizes e o ônus adquirido com o golpe de 64 fez com agissem sorrateiramente. Hoje, a atuação partidarizada é levada a cabo em paralelo o um esforço discursivo de separação institucional entre governo e FFAA. Nesse processo, revezam-se em carcereiros e prisioneiros.

Por fim, é absurdo que em meio a uma pandemia, com milhares de mortos no mundo inteiro e o crescimento rápido dos índices de óbitos no Brasil, superando o número de brasileiros mortos na Segunda Guerra, essa seja a nossa preocupação. Esperamos, com a esperança dos pessimistas, que o governo Bolsonaro seja findado e que a democracia se imponha antes de chegarmos no fundo do abismo.

 

Créditos da imagem: Marcos Corrêa/PR. Solenidade de transmissão do cargo de Comandante Militar do Sul. Porto Alegre- RS, 30/04/2020.

A reinvenção do crime organizado transnacional em tempos de pandemia

Tales de Paula Roberto de Campos

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em

Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP)

Email: talesdepaula0@gmail.com

 

A capilaridade das operações criminais está aquém da limitação geográfica. Como um exemplo fidedigno desta afirmação, a seguinte reportagem ilustra como o Primeiro Comando da Capital (PCC) – representado por um de seus membros mais importantes – continua tecendo relações com outros grupos criminosos a milhares de quilômetros de distância mesmo em uma situação ímpar para o globo neste momento: em plena pandemia do Coronavírus. Na segunda-feira, 13 de abril de 2020, uma operação conjunta envolvendo a Polícia Federal do Brasil (PF), autoridades locais moçambicanas e auxílio informacional do Drug Enforcement Administration (DEA) prendeu Gilberto Aparecido dos Santos, mais conhecido como “Fuminho” em Maputo, capital do país. Ligado ao Primeiro Comando da Capital, Fuminho era procurado por autoridades brasileiras e internacionais desde 1998, e acusado de diversos crimes, dentre os quais inclui-se a participação indireta nos assassinatos de notórios “irmãos” da facção paulista “Gegê do Mangue” e “Paca” (STARGARDTER; MUCARI, 2020, MACEDO; VASSALLO, 2020).

O crime organizado é uma atividade que pode mudar rapidamente: toda sua estrutura, hierarquia e recursos necessários para a sua subsistência podem ser alterados em curto prazo. O crime cria as próprias condições para que as oportunidades de articulação ilegal sejam possíveis (ALBANESE, 2000). Em oposição aos empreendimentos ilegais, o Estado como autoridade central não só sofre com os efeitos negativos de uma economia paralela e predatória, mas também não se dá conta que facilita o crescimento e difusão de grupos criminosos. É por tal motivo que seus recursos se tornam, mais cedo ou mais tarde, subutilizados. Desta forma, quando a alternativa é agir, o Estado já perdeu as forças necessárias para responder a altura da ameaça. Seu sistema político acaba minado pela corrupção interna causada pelos grupos à margem da lei em um cenário avançado de parasitismo criminal (KARSTEDT, 2014).

Por exemplo, entre os anos de 1920 a 1933, em razão da adoção da Lei Seca nos Estados Unidos, as máfias capitalizaram a proibição de bebidas alcoólicas a fim de construir uma economia ilegal envolta na produção de álcool e derivados (HILL, 2006). Da mesma forma, durante o processo de entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), setores de inteligência da marinha teceram relações com o submundo do crime que controlava as docas e a pesca na cidade de Nova Iorque. Grupos liderados pelos mafiosos Joe Adonis, Willie Moretti e “Lucky” Luciano concordaram em vigiar e impedir qualquer ato de espionagem do Eixo na costa marítima de Nova Iorque durante o decorrer do conflito (BROOKS, 2017). Em suma, o crime organizado é volátil e altera facilmente as condições conforme lhe convier.

Em uma situação onde a estrutura que compõe o Estado é forçada a utilizar o máximo de sua envergadura, a pandemia do COVID-19 leva toda a economia e os serviços públicos a serem centralizados em prol da saúde geral da população. Esta estratégia vai se tornando cada vez inferior conforme menor a renda ou a infraestrutura disponível. Uma vez que mesmo Estados com alta distribuição de capital como a Itália sofrem os efeitos nefastos da rápida expansão do Coronavírus, o resultado em nações em desenvolvimento e subdesenvolvidas seria severo (MAXMEN, 2020). É por tal motivo que, nos Estados onde os efeitos do crime organizado são mais acentuados, provavelmente esta será uma janela para os grupos criminosos explorarem outras oportunidades de enriquecimento a fim de brevemente reorientarem sua estrutura.

O resultado desta estratégia no mundo criminal é único – a fórmula para manter as atividades ilegais rentáveis está sendo novamente aprofundada durante este momento de pandemia. Por exemplo, de acordo com o ex-capo da Família Colombo, Michael Franzese, “este é um cenário perfeito para golpes, e alguns dos meus antigos associados estão na rua neste momento”. Claramente, a maneira como cada organização deve se reformular para se tornar novamente sustentável varia e por vezes certos negócios e atitudes transnacionais precisam ser alteradas ou abandonadas temporariamente. Os fluxos transnacionais eram aliados dos criminosos. Em tempos de COVID-19, atividades que necessitam de movimento e contato humano precisam ser repensadas. Na Bósnia, roubos de carros têm sido cada vez mais difíceis com menos movimentos nas ruas uma vez que as pessoas se encontram em isolamento social (BEHAR, 2020).

O crime organizado deverá encontrar sua própria forma de buscar demandas e providenciar ofertas para mercados nacionais e internacionais. Se, por um lado, em El Salvador, o distanciamento social tem impactado na diminuição radical nos homicídios e na eliminação de rivais por gangues (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020), no Brasil, o Comando Vermelho (CV) estabelecido na Cidade de Deus e na favela do Jacarézinho aplica toques de recolher e ameaças de agressão em caso de descumprimento das normas em razão da pandemia (BLOIS, 2020). Em outro extremo,  milícias no Rio de Janeiro estão forçando comerciantes locais a abrirem o comércio por meio de extorsão e de taxas (POLÍCIA INVESTIGA…, 2020). A forma como se exerce domínio criminal pode sofrer variações.

Em termos transnacionais, a carência de oferta de determinados produtos estão afetando a rotina de criminosos. Os traficantes mexicanos não estão conseguindo encontrar os ingredientes necessários para a produção de metanfetamina dado que diversos produtos originários da China estão sendo barrados em grande quantidade em entrepostos comerciais. Da mesma forma, coiotes na Líbia não têm condições de traficar pessoas do Mediterrâneo para as fronteiras da Europa (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020). Como um efeito dominó, menos imigrantes ilegais afetam a renda de atravessadores que ajudavam a transportar parte das 60 mil pessoas que chegavam em meio a crise migratória através  da rota dos Balcãs anualmente (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020a).

Entretanto, há atividades à distância que seguem sem alteração e se tornaram o novo foco de evidência do crime organizado. Por exemplo, a Interpol regularmente realiza a chamada “Operação Pangéia” com o objetivo de impedir a venda online de produtos farmacêuticos no mercado negro. Durante todo o período de existência do projeto foram feitas mais de 3 mil apreensões e 105 milhões de medicamentos retirados de circulação. De acordo com a Interpol, 11 por cento dos remédios revendidos por meio da Internet são contrabandeados (INTERPOL, 2019). Durante a pandemia do COVID-19, uma operação conjunta envolvendo a Europol, a Interpol e autoridades de 90 países na Operação Pangéia de 2020 encontraram, entre os dias 3 a 10 de março, receitas falsas de supostas curas para o Coronavírus e contrabando de material hospitalar. Em 121 apreensões, foram recuperados 37.000 itens médicos (em sua maioria, máscaras cirúrgicas), e 13 milhões de euros em material farmacêutico desviado (EUROPEAN UNION, 2020).

A comercialização ilegal de produtos farmacêuticos tem nos crimes cibernéticos uma das formas de propagação. Hackers lançaram um ransomware¹ no sistema computadorizado do Hospital Universitário de Brno, na República Tcheca, atingindo a estrutura médica responsável pela testagem e tratamento da COVID-19. Com a fragilidade dos sistemas de saúde, grupos criminosos realizaram cyber-ataques ao longo dos três meses por todo globo contra departamentos nacionais, roubaram dados, cometeram fraudes e invadiram contas pessoais a fim de venderem informações obtidas ilegalmente sobre a pandemia na internet (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020b).

Em suma, aos poucos o crime organizado vai encontrando a sua forma que melhor privilegia seus membros em meio ao fechamento dos meios físicos. A quarentena e as medidas de distanciamento são um desafio aos estudos transnacionais. A interação que envolve instituições ilegais a partir do momento em que tudo é obrigado a ser interrompido impõe desafios a cooperações no exterior. O transnacionalismo envolvendo dois países ou mais por meio de organizações variadas sofrem diversas implicações. O mesmo questionamento deve ser feito em relação a como as fronteiras nacionais vem a impactar as ações de atores multinacionais, assim como qualquer que seja a manifestação de soberania nacional (HUNTINGTON, 1979).

Entretanto, é importante ressaltar que toda atividade global pôde ser freada uma vez que se tratava de organizações legais pautadas em um pensamento previsto em constituições e normas aceitas por Estados e indivíduos. No caso dos grupos criminosos, a atuação é marginal às normas e ainda mais à ordem criada por governos. Por mais que o transnacionalismo esteja em um período crítico (WILLETS, 2001), o debate sobre a reformulação do crime organizado transnacional amplia-se conforme certas atividades ilegais são amplamente afetadas pela falta de recursos (desde ingredientes para produção de drogas a pessoas dispostas a atravessar fronteiras nacionais), assim como a forma que outras destas irão prevalecer – principalmente uma vez que os Estados estão operando em sua capacidade máxima e envoltos em uma crise de saúde pública.

 

¹ Um ransomware se trata de um ataque ao sistema operacional de um determinado usuário de computador. Normalmente, ele não poderá ter acesso aos seus próprios dados ou o controle de sua conta pessoal. Consequentemente, o hacker exige que a pessoa afetada tenha acesso novamente mediante resgate ou pagamento ao infrator (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL ORGANIZED CRIME, 2020b).

 

REFERÊNCIAS:

ALBANESE, Jay S. The causes of organized crime: do criminals organize around opportunities for crime or do criminal opportunities create new offenders?. Journal of Contemporary Criminal Justice, vol. 16, n. 4, p. 409-423. Nov. 2000.

BEHAR, Richard. Organized Crime In The Time Of Corona. Forbes. 27 de março de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/richardbehar/2020/03/27/organized-crime-in-the-time-of-corona/#2a571b0e150d. Acesso em: 18/04/2020.

BLOIS, Caio. Tráfico impõe toque de recolher em favelas do Rio em meio a crise do corona. Uol. 24 de março de 2020. Coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/24/coronavirus-faccoes-do-trafico-impoem-toque-de-recolher-em-favelas-do-rj.htm. Acesso em: 18/04/2020.

BROOKS, Tom. Naval intelligence and the mafia in World War II. NSISA History Project. Aug. 2017. Disponível em: http://ncisahistory.org/wp-content/uploads/2017/08/Naval-Intelligence-and-the-Mafia-in-World-War-II.pdf. Acesso em: 16/04/2020.

EUROPEAN UNION. Europol. Rise of fake ‘corona cures’ revealed in global counterfeit medicine operation. 21 de março de 2020. Disponível em: https://www.europol.europa.eu/newsroom/news/rise-of-fake-%E2%80%98corona-cures%E2%80%99-revealed-in-global-counterfeit-medicine-operation. Acesso em: 18/04/2020.

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HILL, Peter B. E. The Japanese mafia: Yakuza, Law, and the State. New York: Oxford University Press, 2006. p. 6-65.

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STARGARDTER, Gabriel. MUCARI, Manuel. Líder do PCC, “Fuminho” é preso em Moçambique e indica expansão do grupo pelo mundo. Uol. 14 de abril de 2020. Economia. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/14/lider-do-pcc-fuminho-e-preso-em-mocambique-e-indica-expansao-do-grupo-pelo-mundo.htm. Acesso em: 16/04/2020.

WILLETS, Peter. Transnational Actors and International Organizations in Global Politics. In: BAYLIS, John B. SMITH, S (eds.). The Globalization of World Politics. 2. Ed. New York: Oxford University Press, 2001. p. 356-383.

 

Créditos da imagem: Murph CC.

As Forças Armadas no governo Bolsonaro

Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Observatório da Defesa e Soberania – 14 de abril de 2020

Por Ana Penido*, Jorge M. Rodrigues** e Suzeley Kalil Mathias***

 

“Quem chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que o que se torna príncipe com a ajuda do povo, porque o primeiro se vê cercado de muitos que parecem ser seus iguais, não podendo, por isso, comandá-los nem manejá-los a seu modo.” Maquiavel

 

Antes de mais nada é preciso dizer que este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos. Se essa característica, por um lado, dificulta a leitura de fundo sobre alguns fenômenos que ainda se desvelam, por outro, permite o exercício mais detalhado do acompanhamento de movimentações das forças militares. Se há dias que valem por anos, as ações políticas de militares que ocorrem desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff ajudam a compreender melhor aspirações e ressentimentos da corporação, que talvez tenham ficado mais de uma década sob névoa, assim como a fragilidade do controle político sobre as Forças Armadas (FFAA).

 

Comportamento militar nos governos petistas

Após um período de relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração. Cabe salientar que a estabilidade ocorreu em virtude das ações das FFAA e dos civis na condução política, que mantinham certa equidistância. Em outras palavras, especialmente durante o governo Lula, as FFAA mantiveram-se mais restritas a participar politicamente apenas nas questões que, no entendimento delas, traziam dilemas para a segurança nacional. Apesar das Forças Armadas terem uma doutrina bastante ampla sobre as questões que consideram de segurança nacional, essa amplitude é escalonada ao adotarem comportamentos ativos, reativos ou neutros a depender da situação. Os debates em torno da segurança pública, demarcação de terras indígenas e nas políticas da área de Defesa são alguns exemplos de momentos que contaram com a participação das FFAA. Por outro lado, o petista não adotou medidas que confrontassem a corporação. Em momentos de tensão, a autonomia prevaleceu, como na demissão de José Viegas, primeiro ministro da Defesa de Lula, que não teve apoio do presidente no exercício de sua autoridade frente ao então comandante do Exército, que permaneceu no cargo. O episódio deixa entrever que, diante das inúmeras necessidades de mudanças que exigiam o capital político do presidente, a área de defesa não seria a prioridade, como também não testaria a subordinação das FFAA ao poder civil, talvez por considerar que a própria posse de um operário eleito pelo voto popular já fosse prova suficiente da consolidação da Democracia.

Durante esse período, embora com pouca participação da sociedade civil ou mesmo da comunidade intelectual da área, houve pontos positivos, como a elaboração da Política Nacional de Defesa, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa nacional, três documentos capazes de definir e elucidar um pouco melhor o tema no Brasil e as pretensões do país para os seus vizinhos. Nesses documentos, um saldo doutrinário importante foi o conceito de dissuasão, ao esclarecer a tarefa externa a que os militares devem se dedicar e o consequente fortalecimento do poder civil. Como ponto negativo, destaca-se, em conflito com a doutrina, o crescimento expressivo do emprego das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), retomando a ideia de inimigo interno e estabelecendo um conceito de dissuasão ‘para dentro’, o que implica na existência, no caso anterior, de dissuasão ‘para fora’.

A deterioração das relações com as FFAA se aprofundou paulatinamente no governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Segundo o General Etchegoyen, durante palestra em 2019 no Instituto FHC, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas e subjetivas. Como questões objetivas, ele cita a Comissão Nacional da Verdade, a troca do ministro Nelson Jobim por Jacques Wagner e o decreto 8515/15, que subordinava a promoção dos generais ao Ministério da Defesa, assinado por Wagner. O rebaixamento do Gabinete de Segurança Institucional (2015) também pode ser destacado enquanto fonte de tensão, uma vez que se trata de um órgão de notório prestígio historicamente ocupado pelas FFAA. Quanto às questões subjetivas, o general foi pouco claro ao dizer que a presidenta afrontava valores da classe média da qual os militares fazem parte. Pode-se inferir que ele se refere a uma visão de mundo expressa na Doutrina de Segurança Nacional, em que políticos de esquerda são considerados populistas, carentes de iniciativa e entusiastas de medidas que provocam polarização ideológica, consideradas por eles disfuncionais ao país. Soma-se a isso o forte machismo, marca indelével dos quartéis brasileiros. Assim, ter uma comandante-em-chefe mulher e ex-guerrilheira, provavelmente foi entendido como uma afronta aos valores castrenses.

Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se ‘majoritariamente’ e não totalmente, pois a anuência é uma forma de ação perceptível como, por exemplo, a não reação do general Villas Boas aos diversos pronunciamentos críticos à comandante em chefe da nação feitos por militares ainda na ativa, como o atual vice-presidente Hamilton Mourão. Entretanto, o desenrolar das ações dos militares a posteriori, em particular sua postura de fiadores do governo de Michel Temer, deixam dúvida se havia apenas um desejo individual com movimentações golpistas no seio da tropa, ou ainda se ocorreu algum envolvimento extra oficial mais coletivo. Comparado ao processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, destituído em 1992, a inação dos comandos militares frente ao processo de Dilma parece mais explicitamente favorável à sua saída do governo.

O governo Temer e o protagonismo sorrateiro

Desde o início do governo Temer (2016-2019), as FFAA colocaram-se como fiadoras da sua legitimidade especialmente em duas dimensões. A primeira, sob demanda delas, Temer recriou o Gabinete de Segurança Institucional e entregou o órgão ao influente Sérgio Etchegoyen, que passou a coordenar o Sistema de Inteligência Nacional, reestruturado por decreto (8793/2016) do presidente. A segunda questão relevante foi o emprego massivo da GLO, seja diante dos protestos sociais que ocorreram fortemente durante todo o período do governo, com pautas e ações variadas, seja utilizando a violência urbana como justificativa, como na intervenção federal no Rio de Janeiro e na crise desencadeada pela greve dos caminhoneiros. Cabe pontuar que Temer aprovou a Lei nº13.491/17, que estabelece que os crimes de morte cometidos por militares contra civis nas operações GLO sejam julgados pelos tribunais militares e não civis.

Não é de se espantar no governo Temer uma postura tutelar das FFAA diante do Estado brasileiro. Uma vez extinto o regime militar, basicamente a tutela política constitui a forma de controle indireto do poder de Estado pelas FFAA. Substitui o exercício direto do poder político pelo controle indireto daqueles que legalmente o exercem, quase numa atitude paternal diante do sujeito tutelado, considerado incapaz de ser responsável pelos seus atos. Há duas interpretações clássicas que derivam desse comportamento. A primeira pressupõe que as FFAA intervenham de maneira cirúrgica e esporádica, porém contundente, diante de situações de crise ampla. Após sanear a situação, as FFAA devolveriam o poder aos civis. A segunda interpretação parte da ideia de que quando as FFAA têm força suficiente para intervir, elas não devolvem o poder que conquistaram, o que culmina na instalação de um governo ditatorial ou autoritário militarizado.

O termo tutela também apresenta outra conotação: os militares se consideram melhores preparados para pensar estrategicamente que os demais grupos, e por isso capazes de tutelar as decisões. Nesse sentido, as Forças Armadas não são um poder moderador, muito menos neutro, para casos de crise. Os militares têm consciência da postura civil de tentar utilizá-los a serviço da facção no poder ou de suas oposições. Ao mesmo tempo, o estrato castrense tem seus interesses corporativos, como formular uma doutrina compatível com a importância que atribuem a si mesmos. Eventualmente os dois interesses convergem, como no fim do governo Dilma.

O governo Temer foi marcado por uma postura intermediária entre as duas posições. O Exército brasileiro, comandado pelo general Villas Boas, não deu um golpe, mas manteve as instituições sob pressão contínua, inclusive inovando ao se utilizar de tuíteres – em especial na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do Habeas Corpus de Lula. O próprio Alto Comando reconhece esse comportamento tutelar e tenta desconstruí-lo continuamente em declarações públicas. Nesse sentido, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, legalidade e legitimidade, foram elas próprias que definiram os limites desses três conceitos. E o fizeram, isto é, definiram tais limites, ao longo de todo o processo de transição (1979-1990) e dos governos democráticos (1990-atual). Pode-se inclusive dizer que definiram o próprio entendimento de democracia, pois em nenhum momento se intimidaram quando autoridades reagiram ao esgarçamento das regras, como no próprio caso do tuíter mencionado anteriormente.

Devido a esse protagonismo imediato, há de se acreditar que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe, ainda que as três Forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, isso não significa que o golpe tenha sido fruto de uma conspiração militar, mas um trabalho de, no mínimo, três grupos com objetivos diferentes que se articularam paralelamente, mas em um determinado momento se unificam e derrubam Dilma Rousseff. A primeira e a mais óbvia é a conspiração dos políticos, capitaneada por Aécio Neves, que desde sua derrota eleitoral adotou um comportamento golpista, e a quem se somaram Temer, Romero Jucá, Eduardo Cunha e outros, cujo objetivo era trocar o grupo político que dominava o poder Executivo. A segunda conspiração, que passa a ficar mais clara com o governo Bolsonaro e com a venda massiva de empresas brasileiras aos Estados Unidos, em evidente disputa geopolítica com a China, foi protagonizada pela Lava Jato e setores do Poder Judiciário, sob os auspícios dos EUA. A terceira conspiração, a mais antiga entre elas, foi a de setores militares, com ressentimentos que datam da criação da Nova República, mas que foram ampliados e se tornaram força golpista com a Comissão da Verdade. Esse desejo de protagonismo das FFAA não foi explícito, por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro26.

O principal sentimento militar transformado em discurso e utilizado para encobrir o desejo de protagonismo foi a suposta formação de bons quadros técnicos pelas FFAA, continuamente mal aproveitado pelos governos, em virtude da permanência de uma mágoa na liderança civil sobre o que ocorreu durante a ditadura militar. Esse é um sentimento real que muitas vezes coloca os militares até mesmo como vítimas de uma revanche civil.

As últimas eleições que elegeram Jair Bolsonaro à presidência da República não foram marcadas pela técnica ou pelo debate entre programas, mas profundamente por diferenças ideológicas, com forte recorte religioso e uso massivo de notícias falsas, e que contaram com um protagonismo ativo das FFAA. O episódio que talvez tenha maior relevo por ser público e institucional foi a sabatina feita por Villas Bôas aos candidatos à presidência. Não há notícias de outros grupos de servidores públicos do Estado que tenham o mesmo comportamento, típico de corporações e organizações privadas.

O governo Bolsonaro e o partido militar

Se é verdade que as FFAA se utilizam da tutela para se posicionar politicamente, ao mesmo tempo essa postura exige certo distanciamento das decisões rotineiras, de maneira a influenciar o jogo, mas apresentando-se moral e intelectualmente superior diante dos demais jogadores. Portanto, são evitadas ações cotidianas que geram desgaste político existentes em todos os governos, e o jogador em função tutelar aparece apenas em momentos decisivos. Pelo seu desejo de protagonismo, pelo grande número de militares no governo, assim como pela convicção da “necessidade conjuntural” desse tipo de intervenção para estabilizar e reorganizar uma hegemonia da qual fazem parte, as FFAA continuam a exercer as ações sorrateiras, mas de maneira cada vez mais protagonista, formando um dos grupos que desde o início sustenta o presidente Bolsonaro. O maior exemplo dessa nova postura é o general Augusto Heleno. Militares em geral são discretos, mas quando Heleno sobe em um palanque de uma manifestação, ainda que lá embaixo estejam misturados vários recrutas com as mesmas opiniões dos manifestantes, e mesmo que ele não esteja mais na ativa, a instituição Exército fica exposta.

Desde o período da transição do governo Temer para o governo Bolsonaro, as FFAA ocuparam 8 ministérios e cargos chave em diversas secretarias, com um número significativo de militares ainda na ativa. Os generais levaram consigo um enorme contingente de coronéis e majores, nomeando mais de 100 pessoas e adotando o princípio de ocupação em massa do Palácio do Planalto. Além do discurso da técnica, também se mostravam como uma força moralizante e capaz de combater a corrupção no Executivo. Nas palavras de Etchegoyen, Bolsonaro decidiu usar o know how militar. Em outros termos, viraram o ‘Posto Ipiranga’ em várias frentes. Porém, diversos generais rapidamente foram percebendo que as coisas não eram bem assim, como o caso de Jesus Correa, afastado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Tal afastamento não ocorre em virtude de divergências sobre a política de regularização fundiária ou do modelo produtivo do agronegócio, mas pela constatação prática de que a corrupção tem relação com o sistema político. ‘Combatê-la’ não é uma mera questão de vontade – muito menos tendo à frente Jair Bolsonaro.

Um ponto importante para pensar os militares no governo é a hierarquia. Dentro das FFAA, por exemplo, um general quatro estrelas manda nos demais, bem como nas demais forças de segurança, como policiais e bombeiros. Da mesma forma, dentro de cada patente ou posto, o mais antigo (aquele que chegou no posto a mais tempo) e mais graduado (aquele que, sendo da mesma turma, atingiu as melhores notas), é considerado superior diante dos semelhantes. Sob esta lógica, seria ‘antinatural’ que militares de patentes mais altas ficassem sob a coordenação de patentes mais baixas, como algumas vezes acaba ocorrendo ao assumirem cargos políticos ou burocráticos fora das FFAA. Essa relação é conduzida com contrariedades, da mesma forma em que há um desconforto com o fato da base bolsonarista tradicional estar predominantemente nas polícias, sendo que o primeiro escalão governamental é composto pelas FFAA.

Da vidraça às pedras

As FFAA não foram para o governo enquanto instituição. Porém, os militares no governo se mostraram um grupo bastante coeso e representativo dos interesses das Forças. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, que se tornou alvo de diversos acontecimentos, como a apreensão de cocaína no avião presidencial e os 80 tiros disparados pelo Exército em um carro de família durante uma ronda na cidade do Rio de Janeiro. Tornaram-se, assim, vidraça, e, dessa maneira, se expuseram às pedras. Em contrapartida, a Aeronáutica e a Marinha, ainda que também estejam no governo, mantiveram um perfil mais discreto do que o Exército. Um dos efeitos dessa atuação foi o esvaziamento político do Ministério da Defesa, com cada Força levando adiante a sua própria política, mesmo considerando que o Ministério nunca tenha sido civilizanido36.

Vale ressaltar que os desdobramentos do último período provavelmente não eram o que as FFAA almejavam. Pelo seu comportamento no início do governo Bolsonaro, é possível pensar que elas desejavam exercer uma tutela direta sobre o presidente, tomando decisões concretas por meio do general Heleno, chefe do GSI, e do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República. É difícil afirmar em que termos ocorreu esse acordo entre o partido militar e Bolsonaro, mas alguns questionamentos podem ser levantados: eles teriam o poder de veto em algum tema? Levariam adiante o que desejassem implementar nas suas pastas e quem deteria o poder de veto seria Bolsonaro? Há uma combinação entre os dois grupos, com ações coordenadas de “morde e assopra” a depender do tema? Apesar das dúvidas, o que é possível apontar é que esse acordo já sofreu reformulações ao longo do primeiro ano de governo.

Também é possível aventar que as FFAA tivessem o desejo de se afastarem das pautas negativas. Porém, considerando os grupos de apoio ao presidente eleito, e a personalidade de Bolsonaro, é algo praticamente impossível. Os militares tentaram se apresentar como os moderados no governo, em contraponto a uma “facção” radical com o núcleo Olavista, como Damares, Weinjtraub e Ernesto Araújo, responsáveis por executar um conjunto de manobras diversionistas enquanto o projeto de destruição nacional é levado adiante. De fato, no início do governo, aparentavam a voz da razão em alguns temas. Continuam buscando esse papel. Mas não foi possível sustentá-lo por muito tempo, e manifestações irritadas do general Heleno soaram com muito mais radicalidade para a população do que os conselhos sexuais da ministra Damares, com forte apoio popular. Nesse sentido, o “Foda-se” de Heleno para o Congresso Nacional, uma manifestação de golpismo aberto, ocorre apenas num segundo momento, depois da linha do poder tutelar já ter sido cruzada há muito tempo, e a atuação do partido militar ter se tornado mais nítida.

Entretanto, o desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo durante o primeiro ano, embora o tenham ocupado massivamente. O que sustentou o governo são suas medidas econômicas e argumentos extremistas que mantêm viva uma base reacionária, incluindo militares, em especial das baixas patentes, mas certamente não expressa as posições da instituição, algo facilmente verificável na postura das Forças Armadas sobre a Venezuela. Por outro lado, os militares emprestam a credibilidade da instituição ao governo, pois existe a ideia, pelo menos para parte da elite política (até mesmo à esquerda) de que eles têm a possibilidade de colocar limites às “loucuras” do Bolsonaro, tornando-se uma alternativa, caso o presidente seja afastado.

Pontos de comunhão

Para além das contradições entre FFAA e governo Bolsonaro, há diversos pontos de comunhão entre ambos. Um deles é o revisionismo histórico. As FFAA sempre priorizaram a batalha das ideias, e viviam um sentimento de injustiça por terem ficado com a responsabilidade pelo regime autoritário (1964-1984). Em outros termos, consideram errada a forma como passaram para a História após terem ‘salvado a nação do comunismo e levado ordem e progresso ao país”. Essa luta pelas narrativas se expressa em cada vírgula e representa as FFAA em geral. Chega-se ao ponto de inventar tradições históricas, como a Batalha de Guararapes, apenas para se justificar como a instituição mais antiga do país.

Outra confluência entre as FFAA e Bolsonaro é a forte crítica ao identitarismo e outras pautas contemporâneas. Villas Bôas já expressou isso em algumas falas, mas como um todo, entendem que brancos e negros, homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, são divisões que atacam a identidade de povo brasileiro, formulação clássica da Doutrina de Segurança Nacional. Nesse sentido, há uma convergência com formulações dos neopentecostais no conservadorismo de costumes, base do governo Bolsonaro. Isso se expressa num sentimento difuso, de uma nostalgia de tempos passados e na ideia de “guardiões das tradições”. Para alguns, uma das maiores ameaças atuais às Forças Armadas é um hipotético crescimento do homossexualismo nas suas fileiras. Nessa mesma lógica, questões complexas como drogas e violência entre adolescentes recebem respostas maquiadas nas escolas cívico-militares, por exemplo, por meio da qual as FFAA pretendem regular a socialização civil.

Outro elemento comum é o discurso de defesa da pátria. A corporação acredita que tem como ‘destino manifesto’ salvar a nação. Esse ethos salvacionista é muito forte culturalmente, assim como a ideia de que eles representam o que há de mais puro na nação brasileira. Com isso, parte dos militares que vão para o governo não são necessariamente bolsonaristas, mas acreditam fazer uma “revolução” moralizante e modernizadora do país, corrigindo o rumo e ajustando coisas que julgam pertinentes pelos seus próprios parâmetros. Para outros, a intervenção militar de 1964 proporcionou a preservação e reorganização da democracia, na lógica do “golpe preventivo” ao comunismo.

Neste sentido, as FFAA também se encontram com outra base bolsonarista: o partido da Lava Jato e com a classe média alta. A aliança entre as FFAA e essa parcela do Judiciário parece ser mais firme do que com o próprio presidente. Se não existem guerras reais, inventamos as nossas para combater o que são consideras disfuncionalidades do sistema; nesse caso, como em outros momentos da história, o ‘combate à corrupção’ atua como entrave para o avanço de tentativas progressistas no processo político nacional.

Ainda sobre o patriotismo, é preciso pontuar que, no Brasil, essa ideia sempre esteve associada ao um tipo de nacionalismo, próprio do campo simbólico, e é esse que se apresenta no Bolsonaro e nas FFAA. Sob esse entendimento, a cessão do Centro Espacial de Alcântara não é uma medida antinacional. Assim, a noção de território assume contornos cartográficos, e não de espaço onde habita um povo.

Essa compreensão particular sobre patriotismo também é presente no pensamento sobre a região Amazônica. Há pelo menos 30 anos, a Amazônia passou a ser considerada o principal território para se defender no Brasil. Todavia, mais de 70% do efetivo militar segue no Comando Sul e Sudeste. Isso tem relação com uma cultura institucional muito forte, assim como o baixo interesse pela defesa [do país] e com a pouca noção de “missão”, quando se pensa o próprio bem estar (servir no Sul, Sudeste, ser adido militar, missão de paz ou fazer cursos no exterior é melhor do ir para a Amazônia). Esse fato leva a outro questionamento: teria a corporação capturado as FFAA? O deslocamento para a Amazônia não deveria ser mais intenso? Claro que não se trata de uma decisão pautada apenas na estratégia de defesa, mas deve-se levar em conta custos políticos e econômicos, e mesmo conflitos com as identidades das Armas (das FFAA), como a Cavalaria, bastante atrelada ao Sul. Em última instância, a discussão recai sobre a pergunta: para que servem as FFAA brasileiras?

A pauta econômica é outro ponto de confluência entre FFAA e Bolsonaro. Foi-se o tempo dos nacionais-desenvolvimentistas, herdeiros do projeto tenentista. Atualmente, os generais têm a visão econômica da Fundação Getúlio Vargas, que atua como verdadeiro intelectual orgânico [dos entreguistas] defendendo a privatização inclusive de setores estratégicos. Neste sentido, não surpreende que o ministro de Infraestrutura e engenheiro do Exército, Tarcísio Gomes de Freitas, que leva adiante a agenda de privatização, é considerado um dos melhores ministros pelo empresariado, como comprova o prêmio da LIDE. Eventualmente, há alguma dissidência, como as declarações do general Juarez Cunha, contrário à privatização dos Correios. Mas a venda da Embraer foi a medida mais significativa que corrobora essa tese.

As FFAA também sofreram cortes orçamentários, já que algumas unidades não tinham recursos nem para o rancho (refeição dos soldados) no final de 2019. Mas esse cenário foi modificado em 2020. Mesmo com a crise econômica, a pasta da Defesa teve aumento orçamentário, foram inaugurados um novo campus da Escola Superior de Guerra (ESG), em Brasília, e a nova base na Antártica. Na mesma toada, a Engeprom teve um considerável crescimento e foi fechado um importante acordo de fomento industrial com o BNDES. Importa lembrar que a indústria de defesa tem o Estado como maior comprador. No caso de Brumadinho, por exemplo, helicópteros foram reparados 24 horas pelas empresas para continuar voando nas buscas pelos desaparecidos. Uma aparente contradição nesse tema é a postura de Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, que critica o que chama de “monopólio da Taurus” e deseja maior abertura do mercado brasileiro para as empresas estadunidenses de armamentos.

Um ponto que deveria ter gerado contradições entre os dois atores é a política externa, o que não ocorreu. O Brasil vinha se construindo na lógica de uma inserção autônoma no mundo. Do ponto de vista objetivo, as relações atuais entre EUA e Brasil são absolutamente diferentes de 1964. Apesar da China ter se transformado no maior exportador de capitais para a América Latina, o Brasil seguiu dependente em termos de equipamentos e doutrina dos EUA na área militar, mesmo com a diversificação de parceiros. Há também grupos militares que acreditam que a cooperação com os EUA e a OTAN renderá ao país compras vantajosas de equipamentos, mesmo se estes forem obsoletos. Nesse sentido, é importante destacar o novo status do Brasil diante da OTAN e o recente acordo militar assinado entre Brasil e EUA.

Para além das questões objetivas, há vínculos simbólicos, como a reedição de alguns raciocínios da Guerra Fria, quando se aponta a necessidade de se aliar aos EUA diante da guerra comercial com a China. Ou mesmo pensamentos como “nossa bandeira jamais será vermelha”. A partir disso, Bolsonaro tem redefinido o papel do Brasil na guerra de quarta geração: controle interno da ordem por meio da segurança integral (todo o país) e preventiva (inteligência e espionagem). Já que não existe um projeto para desenvolver o Brasil enquanto uma “potência”, as FFAA serviriam para acomodar as forças sociais aos interesses internacionais (repressão interna). De fato, existe um grupo que acredita no marxismo cultural62, que estamos em guerra permanente e o inimigo interno deve ser combatido. Essa ideia do emprego interno das FFAA foi consolidada pelas operações GLO, citadas no início do texto. Cabe pontuar que esse é um inimigo interno de ocasião, podendo ser caracterizado como petista, comunista, crime organizado, corruptos ou terrorista, a depender dos interesses. Algumas medidas legislativas estão sendo tomadas nesse sentido, politicamente alinhado ao Bolsonaro e ao general Heleno, como o PL 1595, do Major Vitor Hugo, que pretende dar poderes excepcionais ao Estado brasileiro para reprimir manifestações populares.

Relações estremecidas

A demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo é muito significativa. Existem muitas explicações para a demissão. A maioria aponta para uma resistência do Santos Cruz a cumprir ordens que contrariavam princípios éticos e morais que ele alimenta. Outros argumentam que o general não se subordinou ao capitão, ou que havia uma disputa por status político dentro do partido militar, derivada dos diferentes reconhecimentos recebidos pela ONU em virtude da participação na Minustah. Quem saiu em defesa do general demitido não foi nenhum dos militares do governo, mas o fiador do governo Temer, o general Etchegoyen. Outro episódio digno de menção foram as ofensas de Olavo de Carvalho a Villas Boas. Por fim, também existiram farpas que partiram dos filhos do presidente em diversos episódios, como a desconfiança em torno da segurança do GSI estimulada por Carlos Bolsonaro, mas ‘amortecida’ pelo próprio general Heleno. Nunca ocorreu na Nova República uma escalada de ofensas às FFAA e aos militares nessa proporção.

O fato é que a demissão de Santos Cruz fragilizou a ideia de bloco e do projeto militar, e ganhou peso os interesses individuais. Isso não significa que eles tenham começado a concorrer entre si, pois em primeiro lugar, vale a corporação militar. Mas fica clara a busca por status, pois mesmo figuras populares na caserna como o general Heleno e Mourão, eram pouco conhecidas da sociedade civil. O mesmo vale para generais com destaque no exterior, como Santos Cruz e Floriano. Para um militar profissional, a maior vaidade da carreira é conseguir a quarta estrela. Entretanto, generais com 4 estrelas, ainda que desempenhem impecavelmente sua tarefa, são esquecidos. A ocupação de cargos políticos e a projeção pública alimentam a vaidade e passaram a ser almejadas. Contrariando qualquer discussão coerente com a profissionalização, seria possível encontrar generais de 2 ou 3 estrelas fazendo cálculos sobre o que vale mais a pena: as estrelas que lhes faltam ou um Ministério. Outro exemplo possível de buscar se projetar publicamente é a utilização massiva das redes sociais, que permite que generais mantenham contato direto com a população. Com isso, pronunciamentos que deveriam ser orientados profissionalmente passam a ser feitos em busca de popularidade. Se isso tem relação com algum sentimento de falta de reconhecimento proveniente das missões no Haiti, é algo que merece aprofundamento, mas não é objeto desse texto.

No entanto, aparentemente ocorreu um afastamento da Instituição Exército em relação ao governo no final do ano de 2019, seja pelos baixos índices de avaliação ou pela dificuldade de conseguir resultados no campo econômico. Como ficaram com o ônus do golpe de 64 nos anais da história, o partido militar tem se precavido e tenta um duplo movimento, aparentando afastamento institucional do governo, coordenado pelo general Pujol, e a manutenção de uma postura tutelar, por exemplo, diante do Supremo Tribunal Federal.

São muitos os sinais para essa hipótese:
1. A ordem do dia do soldado citando o general Leônidas é um recado claro do alto comando: “Bolsonaro, te expulsamos uma vez, podemos expulsar de novo”;
2. Etchegoyen está com diversas movimentações para ‘conter’ o bolsonarismo nas fileiras, e vem fazendo palestras em todo país sobre liderança militar (hierarquia e disciplina) diretamente para baixa oficialidade, enquanto se articula com o setor industrial nacional, que vem tendo perdas com medidas do governo;
3. Desconfortos sobre a distribuição de medalhas militares a congressistas, numa nítida compra de votos para o projeto de reestruturação da carreira;
4. Os militares queriam Etchegoyen para a embaixada de Washington, mas o presidente desejava alguém de sua famiglia;
5. A negativa da quarta estrela para Rego Barros.
6. A indicação do general Amaro para o Comando Sudeste, mesmo ele tendo trabalhado tantos anos com Dilma;
7. Novas baixas entre militares que ocupavam cargos estratégicos no governo.

O projeto de reestruturação da carreira militar, PL1645, foi um momento bastante tenso. Há quem acredite que essa seria uma oportunidade de diálogo à esquerda com a base das FFAA. De fato, o projeto contém benesses aos altos escalões que não se estendem ao conjunto das FFAA, o que poderia gerar contradições hierárquicas. As Forças Armadas contam com um conjunto de direitos que as demais polícias não possuem, e o projeto reforça ganhos na carreira para as patentes mais altas, o que tem gerado insatisfação entre os praças, que deixaram claro que vão seguir o exemplo de insubordinação de Villas Bôas. Existem segmentos dessas baixas patentes que entendem a não manifestação de Bolsonaro a respeito como uma traição, forçando o presidente a adotar medidas paliativas.

Bolsonaro, entretanto, respeitou a hierarquia e aprovou o projeto, favorecendo os altos escalões e prejudicando sua base eleitoral mais antiga. Para mitigar a situação, outras fontes alternativas de renda vêm sendo construídas para esses setores, como o aumento em diárias e ocupações extras, como nas escolas cívico-militares e no INSS. Embora absurdas, seja do ponto de vista das regras da administração pública ou da defesa, essas medidas são coerentes com o objetivo de atender sua base.

A conivência das FFAA no governo com essas e outras medidas que prejudicam a defesa nacional deixa claro algo já argumentado anteriormente. Não adianta os acenos à direita ou à esquerda. Quando a instituição se compromete nesse nível, ela passa a fazer parte do problema, e não da solução. Enfatize-se: não existe um divórcio das baixas patentes militares com o governo, e as dissidências não são contrárias à política econômica adotada nem favoráveis às forças democráticas e progressistas.

Esse conjunto de medidas não ocorreu por divergências ideológicas do Alto Comando com Bolsonaro, mas porque querem mostrar independência e deixar claro aos que almejam entrar na institucionalidade que não falam em nome das FFAA. A finalidade disso é afirmar a autonomia do Estado-Maior no interior da aliança e reforçar quem comanda o partido militar.

A ida de militares para diversos postos no governo foi tão grande que o Ministério da Defesa tomou medidas institucionais, como rotatividade, passagem à disposição, impactos na carreira, etc. Isso reforça o desejo de se autopreservarem. Por exemplo, à exceção dos ministros, eles se reservam o direito de indicar qual militar ocupará determinado cargo quando for requisitado. Por outro lado, o mesmo decreto 10171/2019 escancara o desejo dos militares de participarem da política de Brasília, se distanciando de suas funções e dos trabalhos considerados penosos, como as fronteiras. Essas atitudes apenas reforçam o que analistas de defesa vinham afirmando desde o período eleitoral: quando a política entra nos quartéis por uma porta, a profissionalização sai pela janela. A portaria também reforça o corporativismo, já que define que mesmo em cargos civis, os crimes cometidos por militares serão julgados pela Justiça Militar.

Levando em consideração a história das outras intervenções militares no Brasil, existe mais um ponto digno de nota. Militar importante está em comando de tropa, no serviço de informações ou nas escolas de formação. Com Ramos promovido a secretário de governo, Bolsonaro tirou o único comandante alinhado com ele dos comandos de tropa, pois este agora passou a ser mais um palaciano.

Ao chegar ao governo, Ramos fez uma promessa, a de “colocar ordem na casa”. Tal promessa aparentemente expressa o ethos militar, que é ter os meios e o desejo de ordem. No entanto, sua função no governo é a de atuar como articulador, fazendo reuniões com os líderes de governo no legislativo, com bancadas de estados, além de desenhar agendas estratégicas com líderes empresariais e com a imprensa. Assim, Ramos desnuda a ação castrense no poder: é atuação partidária, representando o partido militar, e este é fiel ao presidente da República.

A geopolítica interferiu para fortalecer e para enfraquecer a consonância entre o partido militar e o presidente. A conjuntura na América Latina, que terminou o ano de 2019 com explosões sociais em vários países, entre os quais se destacam Chile e Colômbia, fortaleceu a parceria. Havia uma preocupação nas FFAA de que o mesmo se repetisse no Brasil, o que justificaria medidas de repressão às iniciativas de sublevação dos povos. Por outro lado, em virtude do conflito Irã e EUA, essa proximidade se fragilizou. Se não bastasse o alinhamento incondicional brasileiro aos EUA nas suas formulações sobre terrorismo, o governo ofereceu o Brasil para testar uma aliança contra o Irã. Medidas como essa mostram o Brasil como celeiro de Trump, esvaziam os organismos internacionais e expõem o país a ataques estrangeiros. As declarações atrapalhadas do presidente do ponto de vista de defesa nacional mereceram comentários do gen. Etchegoyen , que junto com Santos Cruz, vem formando um polo de crítica ao governo. Tais atitudes apontariam fraqueza do Ministro Fernando, da Defesa, junto ao presidente.

Mas é bom observar com cautela essas diferenças. A mídia hegemônica tenta aumentar a distância entre os dois grupos, seguindo o desejo das FFAA de se apresentarem apenas como moderadores do governo, embora estejam enfronhados nele até os cabelos. Porém, esquecem que o partido militar, enquanto partido político, tem suas tendências internas, importantes inclusive para representar os diversos interesses existentes nos quartéis na construção do consenso. Todavia, não se pode esquecer do elemento básico na construção do partido, que é a espinha dorsal da profissão, a obediência disciplinada à hierarquia. Por isso, ao fim e ao cabo, tomada a decisão, o partido militar agirá como corporação, valendo o princípio dos “3 Ds”: não duvidar, não divergir, não discutir.

2020 e a consolidação do Partido Militar

As FFAA entram no ano de 2020 com um projeto mais elaborado quanto à sua participação no governo, atuando como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, com quase 2.500 pessoas em cargos de assessoria ou chefia, em ministérios ou repartições. Também reivindicaram para sua coordenação assuntos que consideram mais relevantes para defesa e segurança nacional, como a questão da Amazônia, que passou a ser coordenada pelo vice-presidente Mourão, depois das trapalhadas que envolveram as intensas queimadas no ano de 2019. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.

O mais importante acontecimento que mostra a mudança de qualidade na atuação do partido militar foi a nomeação do general Braga Netto, ex-interventor federal no Rio de Janeiro, para a Casa Civil. A partir dessa movimentação, o Palácio do Planalto se torna exclusivamente militar. Essa nomeação revela a unidade de ação da reserva e da ativa, ou seja, a unidade do partido, mesmo não sendo homogêneo como qualquer outro partido.

Embora poucos defendessem uma divisão entre militares e Bolsonaro, muitos analistas percebiam um distanciamento ao final do primeiro ano de governo. A nomeação de Braga Netto vem no sentido contrário. Ele está na ativa (antecipou sua ida para a reserva), assim como Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia. Até o fim do ano passado, Rego Barros (Comunicação) também estava na ativa. A nomeação também parece apontar uma ação mais ordenada do Alto Comando, contradizendo argumentos surgidos na nomeação do Ramos, que apontavam para a antiga amizade com o presidente ou na coincidência religiosa. Praticamente todos os generais de todas as estrelas da geração do capitão estão empregados no governo (1975-79), e foram formados sob a mesma estrutura de pensamento e atuam sob o princípio de ocupação em massa e em “ordem unida”. Estão organicamente vinculados ao restante, especialmente ao ministro Sergio Moro.

A questão não é apenas pragmática. Óbvio que muitos militares estão no governo motivados por ganhos pessoais ou para a corporação, ainda que travestidos de projetos políticos. Mas importa destacar que esses são bônus advindos da entrada no governo, não seu objetivo principal. Existe um projeto de poder e um objetivo, como passar a limpo acordos feitos na Constituinte, situações em que os militares se consideram prejudicados. As diferenças internas não são significativas no espectro político–ideológico, mas corporativas. São, como aconteceu durante a ditadura, pequenas disputas por vaidades, hegemonia nas armas, regionais, especializações, referências internacionais. Os principais generais são garantidores das privatizações e desnacionalizações (na linha do que é defendido pelos doutores em economia da Fundação Getúlio Vargas), alinhamento automático aos EUA na Política Externa (linha OTAN, embora aqui caibam contradições e não aceitem o chanceler de bom grado), esvaziamento das estruturas de Ciência, Tecnologia e Educação, em especial das Universidades Públicas, e controle de Artes e Cultura. Enfim, da soberania nacional. Fundamentalmente, veem-se a si mesmos como representantes da ‘verdadeira’ nacionalidade, aquela que afirma que o brasileiro é essencialmente cumpridor dos seus deveres, ciente de seu lugar e, portanto, ordeiro, cordial e pró-EUA.

Essa atualização conjuntural acontece em pleno estouro da crise do Coronavírus. Enquanto as forças progressistas pensam em salvar o povo brasileiro, sem dúvida há um conjunto de militares pensando nos efeitos colaterais que a crise traz, assim como na janela de oportunidades que se apresenta. Certamente cálculos sobre a utilidade de manter Bolsonaro na presidência estão sendo feitos pelas FFAA e pelos diversos grupos político-econômicos. Em meio a crise, o presidente convocou uma manifestação, usando imagens dos militares para passar credibilidade e foi criticado por isso. Também conclamou manifestações na porta dos quartéis pedindo intervenção militar no aniversário do golpe de 64, entrando em conflito direto com o STF e Congresso Nacional, além de conflitar com os governos estaduais e seu próprio Ministério da Saúde sobre as medidas sanitárias adequadas. Em um momento que todos os governos devem buscar a unidade nacional, Bolsonaro continua com seu discurso polarizador e de enfrentamento.

Embora este texto não tenha focado em questões de defesa, obviamente estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos: os militares. Num cenário de crise, é difícil explicar que apenas essa área seja beneficiada com aumento orçamentário. Há denúncias de benefícios individuais a militares, que tiveram o acesso ampliado para si e para a sua família a cursos e viagens internacionais. Essas denúncias são sérias e expressariam a cooptação individual de militares em ascensão, a fim de manter apoio político ao governo, mesmo que em detrimento da defesa nacional. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra do RJ, que chega a mencionar a hipótese de conflito com a França. Segundo eles, foram feitas 11 reuniões regionais e ouvidas 500 pessoas. Em outros termos, o conteúdo não é um delírio localizado. É um plano de governo, reflexo da subordinação automática e auto-imposta aos EUA, estes preocupados com a geopolítica energética.

Hipóteses de cenários

Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das FFAA. O segundo, relacionado ao primeiro, é sobre a quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.

A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações, ao seu envolvimento em várias GLOs no Rio de Janeiro, e mesmo na intervenção federal em que se destacou o chefe da Casa Civil, gen. Braga Netto. Ao que se sabe, as milícias se profissionalizaram, passando não somente a controlar territórios, populações e economias locais, mas também a ter arranjos com organizações criminosas internacionais. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, mas que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?

Esse medo faz sentido não apenas diante de forças informais, mas também das formais, como as polícias militares. Por muito tempo, as polícias (ou guarda nacional) tiveram efetivos maiores e até equipamentos melhores que as FFAA. A missão militar francesa, por exemplo, veio antes profissionalizar a força pública de São Paulo, hoje polícia militar, e só depois o Exército brasileiro. Foi uma conquista das FFAA, portanto, a subordinação das polícias, com a criação da Inspetoria Geral de Polícias Militares dentro do Exército. Todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. Mas o que vemos hoje são disputas das FFAA até mesmo com a Polícia Federal, pelo controle do Palácio do Planalto, por exemplo. Nesse processo, a autoridade moral sobre as demais vai sendo contestada.

A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA devido ao seu emprego em GLO. Do ponto de vista de um cidadão comum isso é correto, mas do ponto de vista das FFAA, o verdadeiro medo é o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que elas. O mesmo vale para as milícias, sobre as quais, cabe lembrar, não houve nenhuma medida por parte do combatente ministro Sérgio Moro. Perder esse monopólio seria o fim das FFAA brasileiras, que diferente de outros países da América Latina, não conviviam com forças paramilitares, mas têm na memória institucional momentos em que essas disputas ocorreram.

Essa preocupação foi recentemente confirmada com o motim da polícia militar do Ceará. As FFAA foram empregadas, a pedido do governo estadual petista e por pressão das mesmas, conformando uma GLO. Bolsonaro resistiu até onde pode, pois se a situação naquele estado saísse do controle, teria como bônus a demonstração da sua força de mobilização nas polícias, criando caldo para a nacionalização das milícias cariocas, além de desestabilizar um governo opositor. O ministro da justiça Moro atuou muito fracamente. Outro militar que também passou panos quentes na indisciplina foi o coronel comandante da Força Nacional de Segurança, Aginaldo de Oliveira, que elogiou a atuação dos PM. Se já havia dúvidas no Alto Comando sobre as relações carnais entre a família do presidente e as forças de segurança, estatais ou não, o episódio ligou a luz vermelha.

Passemos ao segundo cenário: a hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA junto à disciplina. Quando entraram no governo, as FFAA tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Ele fala diretamente com a baixa oficialidade e com os praças. Não perde nenhuma formatura, assim como fazia quando era deputado. A baixa oficialidade pode argumentar que a desobediência à hierarquia é exemplo do próprio comando, e Villas Bôas já deu diversas demonstrações de proteger insubordinações militares contra o poder civil, cometidas pelo próprio Mourão.

Sabendo dessa fragilidade, Bolsonaro disputa os estratos inferiores e força os generais a posicionamentos públicos mais radicais, sob pena de perderam uma base mais ideologicamente bolsonarista nas próprias FFAA. As diferenças também surgirão entre os oficiais. Por exemplo, um coronel no Banco Central receberá um salário condizente ao de outros gestores do mesmo nível, maior que o de generais em final de carreira. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salário e benefícios. A profissionalização é desestabilizada pela nova divisão de trabalho e suas recompensas.

Num país que não vive em guerra, os oficiais se diferenciavam dos sargentos pela sua formação. Agora a maioria dos soldados tem curso superior, alguns até pós-graduação em Universidades civis. Os comandantes precisam encontrar outras formas para demonstrar sua autoridade, para além das simbólicas, como medalhas e demais identificações. Quando se trata do poder civil, esse fosso é ainda maior. Exemplo recente foi visto na formatura da Polícia Militar de São Paulo. Na ocasião, o chefe da Polícia, o governador João Doria, foi vaiado, enquanto o presidente Bolsonaro foi aclamado.

A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionais, como as FFAA e o Judiciário. Nesse sentido, o governo vem distribuindo cargos para militares por toda a administração federal. A justificativa é que militares e policiais são técnicos e, por isso, bem preparados para gerir a burocracia sem se corromper.

Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso. Por um lado, agrada sua base, inclusive com ganhos financeiros – quebrando a hierarquia militar. Por outro lado, ao colocar pessoas despreparadas e, ao mesmo tempo, que tem por missão uma determinada ação que contraria sua própria função – por exemplo, um produtor de agrotóxico cuidar do financiamento para agricultura orgânica – em cargos chave, desestrutura o processo de corrente de transmissão de decisões, levando ao colapso da burocracia.

Sem resultados na economia, o governo se sustenta a partir de uma forte retórica ideológica, elegendo pautas que alimentam uma base social militante em torno de 15% a 30% da população, segundo as pesquisas. Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Porém, um elemento altamente preocupante é que parte desse exército é armado, como é caso do apoio miliciano e das polícias militares. Essa foi uma das características básicas de sustentação de governos fascistas.

Independentemente da confirmação dos cenários anteriores, com a perda ou não do monopólio da força e a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte exército pretoriano, jamais visto por algum outro governante da Nova República.

Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente é algo abstrato, como instituições coletivas ou até imaginadas, como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder, frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.

Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito. Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a militarização que ocorre no seio da sociedade, bem como as alterações que ocorrem na percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.

Terminamos este texto diante da explosão dos casos de Coronavírus no Brasil. Até agora, as respostas do presidente mantiveram a subordinação ao raciocínio dos EUA no combate a crise, até mesmo negando a gravidade da pandemia. Essa não é uma guerra, mas é sem dúvida o maior teste que as FFAA terão, como reconhecido em recente pronunciamento do comandante do Exército, gen. Edson Pujol. Suas capacidades de comando, mobilização, logística, articulação política, cooperação com outras instituições, apoio humanitário, pronta resposta e muitas outras serão colocadas à prova. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como em todo o mundo, os próximos meses determinarão o que esse século será para o Brasil. Todavia, uma certeza deve guiar a todos nós: O povo brasileiro não pode entregar seu destino aos generais.

 

*Ana Penido é pesquisadora em estágio de pós doutoral (bolsista Capes) do Instituto de Políticas Públicas em Relações Internacionais (IPPRI – UNESP), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

** Jorge M. Rodrigues é mestre em Relações Internacionais pelo Programa ‘San Tiago Dantas’, investigador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

***Suzeley Kalil Mathias é professora Associada em Relações Internacionais (FCHS-Unesp; Programa ‘San Tiago Dantas’), investigadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq-PQ2).

 

Disponível em: https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/as-forcas-armadas-no-governo-bolsonaro/?fbclid=IwAR01Ke6q6qM4ssjvYJhjJ0GY27fq97G4UIjfmCu7BUYl3v0gwSLs0mdqRIE

Os possíveis desdobramentos sobre a presença dos militares no poder

Quebra de hierarquia, instituições fragilizadas e disputa do monopólio da força com milícias estão no cenário do governo

Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias
Brasil de Fato | São Paulo (SP) |  

Uma advertência: este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferentemente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos.

Antecedentes

Depois de uma noite que durou 21 anos, um civil eleito chegou, em 1985, à Presidência da República brasileira. A saída das Forças Armadas do centro do poder político foi altamente controlada pelos militares, em um processo de transição transada, com todas as garantias de que eles não seriam julgados pelo regime imposto a partir do golpe de 1964.

Fernando Collor de Mello, civil eleito com um projeto de reformas, durou pouco: dois anos depois de chegar ao Planalto, foi afastado em um processo de impeachment no qual ficou comprovado crime de responsabilidade resultante de alta corrupção, e na qual os comandantes militares mantiveram calculada equidistância.

As questões políticas e especialmente econômicas mais imediatas empurraram a necessária reforma militar para um futuro cada vez mais distante. Exemplo disso foi a criação do Ministério da Defesa com a supressão dos ministérios militares, que aconteceu apenas em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Além de medidas administrativas como esta, pouco se fez para subordinar os militares ao controle civil.

Após relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula de Silva (PT), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração.

A calmaria ocorreu em virtude das ações das Forças Armadas Brasileiras (FFAA) e dos civis na condução política, que mantinham certo distanciamento. Por outro lado, viu-se crescer as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que retoma a ideia de inimigo interno, com o emprego das FFAA em questões de segurança pública.

A deterioração aprofundou-se paulatinamente no governo Dilma  Rousseff (PT). Para além do machismo – afinal, os generais teriam que bater continência para uma mulher, sua comandante em chefe –,    segundo o General Etchegoyen, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas, como, por exemplo, o funcionamento da Comissão da Verdade, e subjetivas (algo como “políticos de esquerda são populistas e apostam na polarização ideológica”). Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se “majoritariamente” pois a anuência é uma forma de ação perceptível.

As Forças Armadas se colocaram como fiadoras da legitimidade do governo de Michel Temer (MDB), que foi marcado por um comportamento tutelar por parte dessas mesmas FFAA, cujo comportamento, exemplificado pelo general Villas Boas, manteve as instituições sob contínua pressão. Isto é, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, pela legalidade e pela legitimidade, foram elas mesmas quem definiram os limites desses três conceitos.

Devido a esse protagonismo imediato, acreditamos que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe contra Dilmas, ainda que as três forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, o golpe não foi fruto de uma conspiração militar, mas sim do trabalho de, no mínimo, três grupos conspiradores com objetivos diferentes, mas que em determinado momento se unificam e derrubam a presidenta: os políticos, o poder judiciário – especialmente a Lava Jato – e o grupo militar. Esse desejo de protagonismo por parte de setores militares não foi explícito, e por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro.

::Linha do tempo: o que os vazamentos da operação Lava Jato revelaram até agora::

Com Bolsonaro, as FFAA tornaram-se, desde a campanha, abertamente jogadoras, formando um dos grupos de sustentação ao governo. Embora sempre tenham afirmado que não foram para o governo enquanto instituição, se mostraram um grupo bastante coeso, comportando-se como um partido militar. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, especialmente do Exército, e o esvaziamento político do Ministério da Defesa.

O desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo, embora o tenham ocupado massivamente. Apesar disso, as FFAA disputam tal hegemonia com um projeto melhor pensado e organizado e, portanto, melhor aparelhado para atuar como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, ocupando quase 2,5 mil cargos de assessoria ou chefia em ministérios ou repartições. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.

Hipóteses de cenários

Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das Forças Armadas. O segundo, que se relaciona com o anterior, diz respeito à quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.

A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?

Esse medo faz sentido também diante das forças formais, como as polícias militares. Foi uma conquista das FFAA a subordinação das polícias e todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça, que contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA, especialmente em razão da banalização de operações GLO. Entretanto, também é preciso pensar o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que as próprias Forças Armadas. Esse cenário recentemente se confirmou com o motim da polícia militar do Ceará. O ministro da Justiça, Sergio Moro, atuou muito fracamente, assim como o coronel comandante da Força Nacional de Segurança Pública.

O segundo cenário diz respeito à hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA, junto à disciplina. Acredita-se que as FFAA, quando assumiram o projeto de governo, tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Mesmo entre os oficiais, essas diferenças se apresentaram. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salários, benefícios.

A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionalistas, como as Forças Armadas e o Poder Judiciário. Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso.

Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Todavia, parte desse exército é armado, como é perceptível pelo forte apoio miliciano e nas polícias militares que o presidente possui, constituindo uma bomba relógio pronta para explodir. Com ou sem a confirmação dos cenários anteriores, ou seja, com ou sem o fim do monopólio da força e, com ou sem a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte exército pretoriano, como nenhum governante da Nova República sequer sonhou.

Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (que é a função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência, os senhores da guerra. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente são abstrações, instituições coletivas ou até imaginárias (como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder…), frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.

Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito (com ou sem fraude é outro debate). Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a militarização que ocorre no seio da sociedade e as alterações que ocorrem na percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.

Estas análises são feitas diante da explosão dos casos de coronavírus no Brasil, que, sem dúvida, será o maior teste que as FFAA terão das suas capacidades. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como para o mundo, os próximos meses determinarão o que será esse século para o Brasil.

Terminamos com nova advertência. Propositadamente, este texto não focou em questões de defesa, mas estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos, os militares. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal-estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra (RJ), cuja principal hipótese de conflito é com a França.

 

*Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias são pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da UNESP.

**O estudo completo que deu origem a este artigo será publicado no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Edição: Rodrigo Chagas

Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Ditadura Nunca Mais!

O dia 31 de março de 1964 marca um triste capítulo da história brasileira. Nesse dia as Forças Armadas romperam, pela força, o estatuto da democracia e tomaram partido pelo estrangulamento dos movimentos sociais, violou-se a institucionalidade do Brasil para instalar um regime militar-autoritário que subordinou a defesa nacional brasileira ao combate a um “inimigo interno” arbitrariamente definido. Durante esse período suspenderam-se as atividades políticas normais para dar lugar a um regime de exceção. A constituição nacional foi abolida, a informação cerceada e a comunicação censurada. A tortura, a morte e os desaparecimentos e outras práticas abomináveis passaram a ser a conduta cotidiana dos carrascos do regime. As decisões nacionais foram sequestradas pelos militares que governaram em nome da corporação. A memória desses tempos sombrios está consolidada nos relatórios da Comissão Nacional da Verdade negados pelos militares ainda hoje.

O Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, desde a sua fundação, tem na construção da democracia e dos direitos humanos seus compromissos pétreos e a integração regional como horizonte. Por isso, desenvolvemos estudos que ensejam a autonomia estratégica brasileira, para que o Brasil possa decidir soberanamente o seu destino, sem imperar sobre seus vizinhos como expressa a Estratégia de Defesa Nacional. Por isso neste dia em que lembramos com luto o momento em que os militares quebraram a cadeia de comando para atentar contra a nação, queremos manifestar nossa alerta para que nunca mais se repitam tais crimes de Lesa-Pátria.

Diante da convergência atual das crises econômica, sanitária, moral e política, quando saídas autoritárias começam a ser aventadas no Brasil, o GEDES adverte que não há saída fora da democracia.

Soldados da Democracia e da Paz? Considerações sobre os efeitos da participação de militares em operações de paz sobre as relações civis-militares

Leonardo Dias de Paula, Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas e pesquisador do Gedes

 

A participação em operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser observada como uma função alternativa de emprego para as forças armadas. As possibilidades de profissionalização, redirecionamento do emprego das forças ao exterior, o contato com princípios democráticos e de proteção de direitos e liberdades fundamentais, contidas na interpretação convencional sobre as operações de paz, podem ser compreendidos como fatores potencialmente capazes de contribuir para a consolidação de relações entre civis e militares balizadas pelo controle das forças castrenses pelos representantes políticos eleitos.

Assim, é possível vislumbrar que o engajamento das forças armadas em missões de paz contribua para a transformação dos propósitos e valores partilhados pelas instituições militares em prol de relações civis-militares em que se verifica um consolidado controle civil sobre os militares (VELÁZQUEZ, 2010). Charles Moskos (1976) nutriu a expectativa de que a participação em operações de paz poderia modificar as interações entre militares, outros poderes políticos e a sociedade. Em síntese, a participação em operações de paz resultaria em forças militares distantes da disputa política e do desempenho de funções subsidiárias internas, e, portanto, concentradas em missões voltadas ao exterior.

No entanto, ao analisar o caso brasileiro, é possível identificar efeitos contrários a essa expectativa. A participação na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, teve implicações para o emprego das forças armadas em missões internas e para o prestígio dos militares diante da opinião pública, contribuindo para seu retorno ao centro do poder. Ambos os efeitos seguem na direção oposta à consolidação de mecanismos de supervisão das forças armadas pelo poder civil.

Uma opção para iniciar esse estudo concerne à identificação das atividades desempenhadas por contingentes militares em operações de paz da ONU. Com efeito, as tarefas desempenhadas em missões de paz diferem das funções de defesa nacional, próprias às forças castrenses, ainda que ambas voltem sua face ao exterior. Observam-se, entretanto, que as operações de paz aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) passaram por transformações. Enquanto as missões desdobradas no período da Guerra Fria estiveram predominantemente circunscritas a tarefas como a supervisão de acordos de cessar fogo e do movimento das partes beligerantes, os mandatos contemporâneos compreendem funções localizadas em um espectro mais extenso. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, as operações de paz incorporaram tarefas como o suporte à distribuição de auxílio humanitário, a realização de projetos de impacto rápido, a supervisão de eleições, entre outras funções.

As atividades contidas nos mandatos de operações de paz contemporâneas, portanto, se aproximam às funções subsidiárias realizadas pelas forças castrenses. Simultaneamente, as missões desdobradas nesse período podem ser caracterizadas por sua maior permissividade ao recurso à violência como instrumento para garantir a realização dos objetivos do projeto internacional de paz. Enquanto as operações de outrora eram regidas por uma estrita limitação no uso de meios coercitivos durante a execução de suas atividades, os mandatos contemporâneos são fundamentados em uma interpretação mais flexível quanto às restrições no uso da violência para alcançar os objetivos políticos aprovados pelo CSNU para cada missão desdobrada em terreno.

A volumosa participação de militares do Exército Brasileiro na Minustah não secundou os mecanismos de controle civil sobre as forças armadas. A atuação dos contingentes brasileiros no Haiti foi caracterizada por concatenar tarefas estritamente relacionadas à esfera da segurança – como o uso da violência contra gangues e criminosos – e projetos de desenvolvimento e de distribuição de auxílio humanitário. Cerca de 37,5 mil militares do país desembarcaram no país caribenho para integrar a missão das Nações Unidas. Durante todo o período, oficiais do Exército brasileiro foram selecionados como comandantes do componente militar da missão de estabilização.

A experiência em operações urbanas adquirida no país caribenho foi relevante para a condução de missões de segurança pública em território brasileiro na forma de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As similaridades entre as operações conduzidas em Porto Príncipe e na cidade do Rio de Janeiro foram frequentemente evocadas: as semelhanças entre as periferias de ambas as cidades – os teatros de operação para as forças armadas brasileiras; as características dos alvos das operações – grupos violentos envolvidos em atividades ilegais; as formas de engajamento, das quais se destaca a criação de bases garantidoras de domínio sobre os territórios urbanos – os “pontos fortes” do contingente militar da missão de paz e as Unidades de Polícia Pacificadora atribuídas à Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro.

A violência acentuada é também um elo que une as ações de militares brasileiros no Haiti e nas operações domésticas. Assim, é possível observar a repatriação da experiência adquirida pelas forças armadas nacionais durante a operação de paz em favor de processos de militarização da segurança pública (HARIG, 2019; MARQUES, 2018). O padrão de emprego das forças armadas que caracteriza ambos os tipos de operação desempenhadas por militares brasileiros pode ser arregimentado sob o signo da contrainsurgência, em especial por apensar o uso da violência à realização de atividades de governo dos territórios sob intervenção.

Amiúde, o prestígio auferido durante a operação de paz contribuiu para uma imagem das forças militares como garantidoras da ordem e bálsamo para a conjuntura política nacional. Mesmo se restringirmos nosso estudo à década de 2010, é possível identificar diferentes episódios em que a atuação das forças armadas, ou de membros delas, afetou a cena política brasileira. Manifestações favoráveis a uma intervenção militar na política nacional proliferaram, angariando gradativamente mais fiéis, desde o ano de 2013. Durante a greve de caminhoneiros em 2018, por exemplo, viu-se o estender de faixas clamando por um novo golpe militar; simultaneamente, as forças castrenses foram empregadas para garantir a distribuição de mercadorias essenciais e desobstruir vias em todo o território brasileiro, marchando de encontro aos interesses dos caminhoneiros em greve. Parte relevante desses pedidos esteve fundamentada em uma interpretação torpe do artigo 142º da Constituição Federal de 1988 e em uma futurologia imaginativa de ameaças à ordem.

A comunicação irascível de oficiais da reserva e da ativa das forças militares, muitas vezes realizada através de comentários curtíssimos na rede social Twitter, pressionou representantes democraticamente eleitos e membros do judiciário. Um exemplo dessa pressão pode ser observada durante o julgamento de um pedido de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ameaçando uma intervenção em caso de uma imaginada violação da ordem e contrariedade aos anseios de parte da população. Com efeito, durante a década de 2010, sugestões de golpes militares como alternativas para imaginados casos de ameaça à lei e à ordem foram demasiadamente frequentes, indicando a fragilidade da democracia brasileira. As menções à prontidão para o serviço pulularam entre devotos do autoritarismo membros das forças armadas. Um episódio especialmente marcante foram as elegias do general Hamilton Mourão à possibilidade de golpes pelas forças armadas.

É preciso ainda destacar um evento anterior ao pleito. Candidatos de diferentes espectros político-ideológicos se submeteram a sabatinas do então comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas. O militar, que deveria obediência aos representantes eleitos à presidência da República, inspecionou os planos dos postulantes para a política brasileira durante um eventual mandato.

Conquanto seja possível observar a permanência dos militares em questões políticas após a transição ao regime democrático brasileiro, as eleições de 2018 representaram o retorno de militares ao centro do poder através na esfera federal. A vitória de Jair Bolsonaro resultou em uma seleção numerosa de ministros e de outros cargos relevantes oriundos da caserna. O plantel ministerial em janeiro de 2019 contava com seis membros das forças castrenses. Militares passaram a capitanear postos sensíveis às políticas de defesa, como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e o Ministério da Defesa. Há militares em outros setores: infraestrutura, ciência, empresas estatais. As nomeações não se restringiram aos primeiros escalões do governo federal, irradiando-se por outros níveis e também através das autarquias estaduais.

Parte relevante do ministério empossado no início do ano de 2019, bem como de outros cargos relevantes da Federação, teve experiência na Minustah. Apesar das rotações no elenco, militares permanecem em postos sensíveis. Em fevereiro de 2020, com a indicação do general Walter Souza Braga Netto, os quatro ministérios que despacham da sede do poder Executivo passaram a ser ocupados por militares: três membros das forças armadas e um policial militar. O novo habitué do Palácio do Planalto fora nomeado pelo ex-presidente, Michel Temer, como interventor federal para o estado do Rio de Janeiro em 2018; depois, tornou-se comandante do Estado-maior do Exército.

Comandante do componente militar da Minustah durante o Massacre de 6 de Julho, o general Augusto Heleno tornou-se um dos homens-fortes do governo de Jair Bolsonaro. Ministro do GSI, Heleno protagonizou notícias com declarações que atentam contra a democracia. Em uma gravação transmitida através da internet, o general esbravejou que o governo não deveria aceitar negociações junto a parlamentares. A deselegância do ministro apenas coroa seu desapreço pelo regime democrático.

É preciso insistir: essa breve coletânea de eventos no Brasil contemporâneo contraria as expectativas de que a participação em operações de paz contribuiria para a consolidação de mecanismos de controle e supervisão das forças armadas de um país. Recorrer ao engajamento nesse tipo de missão como alternativa para reformar as forças castrenses e instituir formas de controle civil sobre as instituições militares é uma medida inócua na ausência de outros mecanismos de supervisão (SOTOMAYOR, 2007). Assim, a criação de instituições de controle efetivo depende de um entendimento preciso das características e prerrogativas militares, bem como do processo decisório em um Estado para que mudanças radicais nas relações civis-militares sejam planejadas e implantadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARIG, Christoph. Re-Importing the ‘Robust Turn’ in UN Peacekeeping: Internal Public Security Missions of Brazil’s Military. International Peacekeeping, Vol. 26, n. 2, 2019.

 MARQUES, Adriana A. Missões de paz e relações civis-militares: reflexões sobre o caso brasileiro. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais. v. 7, n. 14. Jul/dez 2018. p. 242-262.

MOSKOS, Charles C. Peace Soldiers: the Sociology of United Nations Military Forces. Chicago: Chicago University Press, 1976.

 SOTOMAYOR, Arturo. La participación en operaciones de paz de la ONU y el control civil de las fuerzas armadas: los casos de argentina y uruguay. Foro Internacional. 2007. v. XLVII, n. 187 (1). pp. 117-139.

VELÁZQUEZ, Arturo C. Sotomayor. Peacekeeping effects in South America: common experiences and divergent effects on civil-military relations. International Peacekeeping. v. 17, n. 5. 2010. p. 629-643.

Créditos da imagem: Força Aérea Brasileira, Sgt Rezende/ Pelotão de Infantaria da FAB embarca para missão da ONU no Haiti