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“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 2

Danielle Amaral Makio*

Na primeira parte da nossa análise sobre o Cazaquistão abordamos alguns elementos que levaram aos protestos no país no início de 2022, entre os quais podemos destacar, sobretudo: (i) a formação e a estrutura do regime político do país; (ii) a transição econômica ocorrida no período pós-soviético; e (iii) o contexto socioeconômico face os efeitos da pandemia. No presente texto, analisaremos mais uma questão essencial para entendermos o contexto cazaque: o nacionalismo. Este é um tema recorrente na política do Cazaquistão. Ainda durante os primeiros anos do mandato de Nazarbayev dizia-se que o líder era um nacionalista desenvolvimentista. Esse, porém, não é um entendimento partilhado pelos grupos nacionalistas do país, exacerbando, mais uma vez, a profunda cisão entre regime e povo no país. Segundo estes cazaquistaneses afeitos a ideias próprias de nação, Nazarbayev, apesar de ter sido uma figura importante na definição da identidade cazaque atual, não poderia ser rotulado como uma nacionalista, pois sempre promoveu uma ideia de nação essencialmente atrelada a agentes estrangeiros. Nazarbayev, nesse contexto, é acusado de não exaltar os reais símbolos e a verdadeira história do seu povo e de condicionar parte do desenvolvimento nacional a fatores externos. Dessa maneira, surgiram diferentes ramificações do nacionalismo cazaquistanês, todas unidas pelo objetivo primeiro de remodelar a identidade e a política nacionais de acordo com expressões genuinamente pertencentes à sociedade local, distanciando o Cazaquistão de narrativas alheias. 

Assim, a primeira vertente do nacionalismo cazaquistanês é essencialmente anti-russa. Esse grupo se preocupa com os quase 30% da sociedade que é formada por russos étnicos, com a manutenção do idioma russo em detrimento do idioma local – o cazaque – entre outros exemplos. Nesse contexto, eles buscam por uma maior autonomia, e não um rompimento em relação ao Kremlin, histórico parceiro do país. Outro setor do movimento nacionalista cazaquestanês é a sua porção sinofóbica, cuja relevância vem crescendo sobretudo desde 2014, a despeito da satisfação das elites em relação à parceria, explicitando outro ponto de ruptura entre sistema e sociedade. Naquele ano, o então presidente Nazarbayev oficialmente lançou o chamado Nurly Zhol, plano desenvolvimentista do Cazaquistão que busca aumentar a conectividade entre a malha produtiva do país e o mercado consumidor. O ambicioso projeto foi uma resposta sobretudo à crise ucraniana, a qual, ao afetar a economia russa, penalizou severamente também a economia cazaque, altamente integrada a Moscou. O Nurly Zhol, portanto, foi uma tentativa de reorganização econômica interna para que o país pudesse reaquecer indústria e mercado domésticos e, assim, reduzir os efeitos da crise. Poucos meses após o lançamento oficial do plano, o mesmo foi oficialmente atrelado à Nova Rota da Seda chinesa, empreendimento também anunciado no mesmo período. A China, a partir de então, tornou-se a financiadora legítima do projeto de desenvolvimento cazaque. A partir daí as relações entre ambos vêm se estreitando progressivamente. Alguns de seus resultados, porém, ainda que bem-vistos pelo governo e pelo grande capital local, vem desagradando parte da população.

Grande parte das empresas chinesas que se instalaram no Cazaquistão desde então não usam mão de obra local. A ausência da criação de novos empregos e o aumento da concorrência gerada pela maior migração de chineses para território cazaque é motivo de grande insatisfação popular. Ademais, a sistemática compra de terras pela China, o uso de meios de produção altamente poluentes e extrativistas, prejudiciais ao solo, e outros fatores aumentam a lista de insatisfações de cazaquistaneses em relação aos vizinhos. A despeito da relevância desses argumentos na formação da sinofobia no país, há um elemento central: a questão de Xinjiang, província separatista chinesa formada por minorias étnicas e muçulmanas que faz fronteira com o Cazaquistão. Devido a relevância da região para a China, Pequim tem instituído um controle rígido sobre a população local, medida rondada por denúncias de desrespeito aos direitos humanos das minorias que habitam o espaço. Nesse contexto, as ondas migratórias entre Xinjiang e Cazaquistão vêm crescendo e há preocupações por parte do governo e do povo cazaque acerca do tratamento dispensado pela China aos cidadãos cazaques da etnia uighur que eventualmente cruzam a fronteira.

Ambos, russofobia e sinofobia, não são elementos excludentes no cenário nacionalista cazaquistanês, tampouco são necessariamente acompanhados um do outro, contudo, há uma ligação explícita entre o nacionalismo local e a maneira pela qual esses fatores são entendidos pela sociedade. 

Outro fator externo de incentivo ao nacionalismo no Cazaquistão é a presença do Ocidente, sobretudo dos EUA, em meio à sociedade. Ainda que haja, de fato, certa influência estadunidense sobre grupos da população do país – e até mesmo sobre setores do governo -, estes, em geral, limitam-se a porções jovens da burguesia que habitam grandes centros. Algumas regiões do interior do país podem, de fato, apresentar níveis interessantes de influência norte-americana, porém é difícil mensurar até que ponto esses grupamentos são parte de algum tipo de movimento nacionalista local. A ocidentalização, assim, pode atuar como uma espécie de polarizador de alguns setores do nacionalismo cazaquistanês, porém o nível de sua interferência entre a população de fato é ainda nebuloso e não parece ter expressividade tão grande quanto os demais fatores aqui apresentados. 

Assim, pode-se notar que por trás dos protestos que tomaram conta do Cazaquistão logo nos primeiros dias de 2022 há muito mais que o aumento dos preços do gás. De um regime ensimesmado incapaz de estabelecer diálogos efetivos com sua população até uma economia altamente dependente típica de um país sobre o qual pairam interesses escusos de naturezas diversas, a política cazaque tem níveis de complexidade que demandam uma análise cautelosa. Compreender como se deu a formação do Estado e como ele se articula interna e externamente são questões chaves para desvelar as recentes manifestações sem que nos enganemos com narrativas demasiado simplistas que ignoram as próprias divisões discursivas inerentes ao país. Nesse cenário, é indispensável aceitar os limites que a própria conjuntura impõe à análise para que não criemos hipóteses que se distanciam da realidade e/ou que nos ceguem para características genuínas que importam para a construção de um novo futuro para o Cazaquistão.

 

* Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

“Adeus, Vovô”: Revolta e Luta no Cazaquistão – Parte 1

Danielle Amaral Makio*

Embalados ao som de vozes gritando “Adeus, vovô”, em referência ao ex-presidente Nursultan Nazarbayev, cidadãos e cidadãs tomaram as ruas de importantes centros no Cazaquistão em manifestações marcadas por revolta, violência e dúvidas. Há muitas maneiras de analisar os protestos que tomaram o Cazaquistão no início de 2022. De revolução colorida a manifestações genuínas das classes trabalhadoras do país, os eventos que convulsionaram o maior Estado da Ásia Central têm diferentes níveis de complexidade. Mais importante do que rotular o episódio de acordo com nomenclaturas específicas, contudo, é compreendê-lo em suas minúcias e particularidades. Portanto, nosso objetivo neste texto é explanarmos a realidade com a qual estamos lidando, analisando elementos políticos, históricos e sociais deste país.

Ex-república soviética, o Cazaquistão é hoje uma república constitucional semipresidencialista na qual o primeiro-ministro é o chefe de governo e o presidente assume o posto de chefe de Estado e das forças armadas. Antes de integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), porém, o país era composto por povos nômades que, organizados em torno de clãs, não constituíam um Estado nacional aos moldes atuais.  As práticas políticas sustentadas ao longo dos períodos soviético e nomádico levaram o país a construir um regime que, por um lado, mantém estruturas típicas dos tempos soviéticos, como a manutenção das burocracias características e a centralização de poder, e, por outro, é influenciado por traços comuns a sociedades nômades e clânicas, o que se observa, entre outros, na alta personificação do poder e na estrutura dos laços de lealdade criados entre sociedade e governantes.

Mapa do Cazaquistão

A figura de Nursultan Nazarbayev, nesse contexto, é emblemática. Presidente do país até 2019, o líder, cuja influência remonta ao período soviético, é ainda hoje visto como o grande símbolo nacional. A história de Nazarbayev à frente do Cazaquistão exemplifica a maneira pela qual o poder se configura no país. Primeiramente, vem à tona a personificação do governo. Em clãs, é comum que a liderança tenha um elemento corpóreo; ela é identificada em uma pessoa, um líder que goza da posse da lealdade dos demais membros do grupo. A regência do ex-presidente em grande medida reproduz essa estrutura política. A confiança há anos depositada em sua figura é mantida e aprofundada para uma espécie de culto que atrela a existência e as glórias do Cazaquistão ao seu líder absoluto. A influência deste é tamanha que não só se expressa em uma quantidade massiva de reproduções de sua imagem em estátuas e quadros espalhados por cidades do país, como também se manteve mesmo após sua sucessão.

Quando abdicou do cargo em 2019, Nazarbayev deixou a presidência para Tokayev, seu partidário e protegido, garantindo que este continuasse, de forma efetiva, a influenciar a política nacional. A saída de Nazarbayev se deu em meio a uma crise de popularidade inédita que ameaçava a manutenção dos altíssimos níveis de governabilidade do político. Com o crescimento econômico comprometido desde a crise de 2008, e em face de medidas austeras adotadas por imposição do Fundo Monetário Internacional como condição para acesso a novas linhas de crédito, Nazarbayev passou por um período de crescente contestação popular. O mesmo não se pode afirmar das elites políticas e econômicas, que em muito se beneficiaram do contexto. A indicação de Tokayev, assim, pode ser entendida como uma manobra política que a um só tempo garantiu: (i) a continuação do poder de Nazarbayev, (ii) o arrefecimento dos ânimos de parte da população insatisfeita e (iii) a sinalização ao mundo de que o país passava por um momento de abertura política. 

Há, ainda, um segundo elemento do governo de Nazarbayev que nos interessa para compreender a constituição do regime político cazaque: a centralização do poder. Ainda que o governo do Cazaquistão seja dividido em diversas instituições, como parlamento bicameral, ministérios, prefeituras, entre outros, é notável o peso do cargo de presidência no comando do país. Nesse contexto, é importante ainda ressaltar a ausência de uma oposição política devidamente organizada. Prática recorrente da URSS, o controle rígido de partidos e grupos opositores é uma realidade no cenário cazaque, que volta esforços consideráveis para o monitoramento e repressão de movimentos contrários ao regime, os quais são corriqueiramente classificados como células terroristas. Na esteira do cerceamento político, é importante salientar o intenso controle estatal sobre as mídias do país, fato que impacta a formação da opinião pública e dificulta a circulação de informações que possam favorecer o crescimento de sentimentos contrários ao status.

Dessa maneira, o Cazaquistão se caracteriza por um regime político autocrático afeito à personificação do poder e com uma oposição política pouco organizada. Há, porém, outras características importantes do país que devem ser consideradas para que analisemos os recentes protestos de janeiro de 2022. A primeira delas está relacionada à independência e abertura do país em 1991. O fim da URSS marcou a introdução de suas 15 repúblicas em um sistema internacional dominado pelo capitalismo e, por conseguinte, por grandes corporações. O caso cazaque não é diferente. Rico em minérios e hidrocarbonetos, o Estado rapidamente recebeu um fluxo massivo de capital estrangeiro, à época primordialmente representado por empresas estrangeiras que se instalaram no país para extrair e comercializar seus recursos naturais e por capital financeiro. O choque entre um capitalismo endógeno pouco desenvolvido e o crescente interesse do capital estrangeiro pelo Cazaquistão teve diversas consequências. De um lado, houve um crescimento econômico expressivo que enriqueceu as oligarquias no poder. Por outro, criou-se uma grande dependência de capital externo, que veio acompanhada de: (i) desindustrialização, ocorrida pela incapacidade das indústrias nacionais de competir com estrangeiras; (ii) pouca diversidade econômica, causada pela crescente dependência de atividades extrativistas; (iii) alianças entre o grande capital e as elites no poder em detrimento da população em geral; entre outros.

Nesse contexto, a maneira com que se deu a abertura econômica cazaque levou à criação de um regime que não somente é autocrático, mas que também é ensimesmado, que se afastou de sua sociedade. O atrelamento dos interesses das oligarquias no poder e dos interesses do grande capital que se instalou no país moldou um governo que por vezes preza mais o lucro das empresas multinacionais que se encontram no Cazaquistão – as quais em sua maioria têm como acionistas ou beneficiados membros das famílias no poder – do que o próprio país. Leis trabalhistas pouco eficazes na defesa do trabalhador, escassos incentivos à fomentação da indústria nacional (cenário que começa a mudar lentamente em 2014) e falta de garantias no que diz respeito ao emprego longevo de mão de obra local por multinacionais presentes no país são alguns exemplos de como o governo privilegia mais uma parte da sociedade do que outra. Somando esse cenário a uma histórica brutalidade policial, à proibição de manifestações públicas contra o regime e ao controle midiático, o diálogo entre o governo e o povo se deteriorou até atingir níveis insignificantes. Esse quadro, ademais, ganha novos matizes quando pensamos na imensa desigualdade social e nos altos níveis de corrupção que se estendem por todo o país.

É, pois, nesse contexto mais alargado que ganham corpo as manifestações de janeiro de 2022. Há, contudo, outros fatores de ordem conjuntural que merecem atenção para que possamos compreender o que levou todas essas contradições à ebulição. A COVID-19 é talvez a mais preponderante entre elas. Somada a uma economia que vinha desacelerando desde 2008, a pandemia teve um efeito especialmente devastador no cenário cazaque. Fechamento de empresas, cortes no número de empregados em grandes e pequenas indústrias, aumento da pressão sobre as contas públicas, aumento de desemprego, inflação. Esses são alguns dos problemas que vêm afetando severamente o país desde 2020 e cuja principal consequência tem sido um descontentamento social contra o governo, que face às novas dificuldades foi incapaz de oferecer auxílio adequado à sua população, a qual se viu à mercê dos acontecimentos e das devastadoras decisões de muitas multinacionais. Ainda em 2020, pequenos protestos liderados pelas classes trabalhadoras já vinham ocorrendo em regiões como Mangystau, local cuja principal atividade é a extração de combustíveis fósseis e que foi duramente atingida pela redução de operações lideradas por estrangeiras.

Para além dos desafios aqui apontados, 2022 começa com uma nova surpresa para o povo cazaque: no primeiro dia do ano, o presidente decidiu retirar subsídios nacionais direcionados ao gás liquefeito de petróleo, levando os preços do combustível a explodirem em um contexto no qual a renda da população vinha caindo expressivamente. É importante ressaltar que o sistema de aquecimento do Cazaquistão funciona majoritariamente à base de gás, combustível também muito usado por veículos. Em meio a um rigoroso inverno, impedir que parte da sociedade tenha condições de pagar pelo gás sob a justificativa de corrigir imperfeições do mercado que poderiam levar a uma crise de desabastecimento foi o suficiente para que os protestos eclodissem.

A resposta veio de imediato: no dia 2 de janeiro, manifestações pacíficas já tomavam Mangystau. Na pauta dos protestantes estavam não somente a revogação da medida, mas também insatisfações com os níveis de corrupção do governo, que estariam ligados à situação em que se encontra o país, e com a própria manutenção de um regime que se consolidou em detrimento da sociedade e em favor de elites e do grande capital – como explicitado nas referências diretas dos manifestantes a Nazarbayev. Ainda que não houvesse apelo à violência por parte dos manifestantes, estes foram duramente reprimidos pela polícia, a qual classificou o movimento como terrorista. Graças à legitimidade dos clamores das ruas e da brutalidade com que foram recebidos pelo Estado, os protestos logo foram apoiados por outros setores da sociedade em cidades como Almaty, onde se deram os principais desdobramentos do episódio.

A escalada violenta dos protestos, nesse ínterim, deu-se por motivos diversos: (i) a resposta genuína dos manifestantes à brutalidade demonstrada pela polícia e pelo governo, que violou de diversas maneiras os direitos da população, utilizando desde gás lacrimogêneo e bombas de dispersão a cortes à internet; (ii) a apropriação das manifestações por grupos oportunistas que viram no evento a possibilidade de se mobilizarem; (iii) a ação de vândalos não associados aos protestos. Considerando o controle midiático que o regime do Cazaquistão imprime sobre a imprensa e a limitação ao acesso à rede de comunicação, ainda é incerto afirmar a presença de grupos ligados a agentes estrangeiros. Atualmente, sobressaem-se duas hipóteses. A primeira propõe que a radicalização do movimento foi promovida pelos EUA que, na tentativa de conter o eixo sino-russo e após o fracasso no Afeganistão, viu no Cazaquistão a possibilidade de garantir sua presença na região. Nesse sentido, a Casa Branca teria conseguido coordenar os eventos sobretudo através do aumento da ocidentalização do país por meio da presença de ONGs financiadas pela National Endowment for Democracy (NED). De acordo com essa visão, a população cazaque seria porosa o suficiente para que houvesse a incitação de sentimentos pró-Ocidente e anti-regime. A outra leitura, porém, sugere o oposto: a Rússia, na esteira dos acontecimentos na Ucrânia, estaria por trás do episódio como forma de garantir a manutenção de seus interesses no país, cujo crescente alinhamento à China, somado à ameaça estadunidense, estaria atrapalhando a presença do Kremlin no local.

Ambas as hipóteses, ainda que importantes para compreendermos o episódio sob várias perspectivas, não são, no momento, claramente refutadas ou confirmadas. O que se pode afirmar, por hora, é que tanto EUA quanto Rússia têm interesses em se manter influentes no Cazaquistão e teriam condições de fazê-lo. Contudo, é preciso que não deixemos que a suposta relevância da atuação de agentes externos ofusque o cenário cazaque e sua força. Entender os recentes protestos também como um movimento proletário genuíno e nacional é fundamental para não perder de vista os interesses daquele que é o lado mais importante de todos os recentes eventos: o povo cazaque. É preciso, pois, cuidado para não reduzir, mais uma vez, uma sociedade complexa e suas expressões às vontades de grandes players da política internacional. Dito isso, há ainda uma consideração que devemos fazer a fim de entender melhor as relações estabelecidas entre o Cazaquistão, os protestos de janeiro de 2022 e os agentes estrangeiros: o nacionalismo cazaque, ou cazaquistanês, como preferem os nacionalistas. Este tema será o foco da segunda parte da nossa análise.

Danielle Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUCSP) e pesquisadora do Observatório de Conflitos.

Imagem 1: Mapa estilizado do Cazaquistão. Por Stasyan117/ Wikimedia Commons.

Imagem 2: Mapa do Cazaquistão. Por U.S. Central Intelligence Agency – University of Texas Libraries.

Dia Internacional da Mulher: vozes em movimento pela proteção dos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina

Laís Gomes Sartori*

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

No dia 08 de março é celebrado o Dia Internacional da Mulher. A criação desta data foi oficializada em 1975, pela Organização das Nações Unidas (ONU), e as explicações acerca de sua origem comumente afirmam que se trata de uma homenagem às 129 mulheres operárias que, no ano de 1857, foram mortas em um incêndio criminoso em uma fábrica têxtil localizada na cidade de Nova Iorque. Para além desta história, é importante ressaltar a origem desta data em lutas anteriores, notadamente àquelas lideradas por feministas socialistas como a alemã Clara Zetkin (1857-1933) e a russa Alexandra Kollontai (1872-1952), cujas ações contestavam o funcionamento do capitalismo industrial emergente, bem como o preconceito cotidiano enfrentado por mulheres tanto nos locais de trabalho, quanto no ambiente doméstico.

Os corpos queimados em Nova Iorque contam a história de uma enorme quantidade de vidas que trabalhavam de forma precária para sustentar um sistema capitalista que, por sua vez, precisa da destruição da vida humana, bem como da natureza, para sobreviver e se fortalecer (ALLIEZ; LAZZARATO, 2021; FEDERICI, 2019). Em reação, a conscientização das mulheres incita à luta por mudanças não apenas nas suas formas de trabalho, como também na forma de organização social. Surgem os movimentos organizados em prol do sufrágio universal, da igualdade salarial, e de diversas outras pautas, como os direitos sexuais e reprodutivos[1].

Para além de um dia de homenagem às mulheres e de reflexão acerca de suas lutas por direitos e oportunidades sociais, esta data encoraja inúmeras mobilizações feministas.  Muitas vezes essas mobilizações estão alinhadas à luta antirracista, à busca pelo fortalecimento democrático com mais representatividade na política, bem como aos esforços para a preservação do meio ambiente e  para o desenvolvimento sustentável – como ressaltado pela ONU na campanha do 8M de 2022. Além disso, algumas pautas históricas continuam presentes, como a busca contínua por maior equidade de gênero e pela garantia e proteção de direitos . Este texto traz um panorama do contexto e das lutas recentes na América Latina, ressaltando o tema dos direitos sexuais e reprodutivos.

 

Direitos reprodutivos como direitos humanos

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrem cerca de 73 milhões de abortos induzidos no mundo a cada ano, muitos deles realizados por mulheres e meninas que sofreram violações sexuais. Os procedimentos clandestinos para a realização do aborto podem causar sérios riscos à saúde das gestantes, levando a diversas mortes que, muitas vezes, são subnotificadas e impedem a efetivação de ações pela salvaguarda da saúde e bem-estar de tantas vidas. Um exemplo disso ocorre no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto realizada em 2016, “cerca de metade das mulheres que abortam precisam ser internadas” (DINIZ et al, 2016). Dados mais recentes afirmam que no ano de 2019, o SUS contabilizou aproximadamente 195 mil internações por aborto, sejam eles espontâneos ou consentidos.

Vale mencionar que os temas como aborto e saúde sexual das mulheres são, em muitos países, negligenciados. Violências como o estupro e o feminicídio são apenas a ponta de um iceberg de uma cultura patriarcal que esconde diversas violações estruturais e culturais, como assédios e preconceitos que, consequentemente, privam as mulheres do controle de seus corpos. Para lutar contra isso, as primeiras movimentações para a garantia dos direitos das mulheres ocuparam espaço nos sistemas internacional e nacional, principalmente, a partir da década de 1990.

A associação dos direitos reprodutivos aos direitos humanos é fruto da era contemporânea e das diversas frentes de lutas feministas ao redor do globo, que passaram a discutir a sexualidade e a reprodução humana de maneira ampla, contestando os padrões socioculturais vigentes na época. A Conferência Mundial de Direitos Humanos, de 1993, declarou, pela primeira vez, que os direitos das mulheres e meninas eram inalienáveis e compreendiam parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. Essa discussão foi o pontapé inicial para que as reflexões acerca do direito reprodutivo tomassem forma e ganhassem espaço em meio ao discurso internacional. Posteriormente, durante a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), em 1994, que se conceituou o termo “direito reprodutivo”[2] como conhecemos hoje.

Em relação ao cenário americano, é possível observar o posicionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), composto por dois órgãos, a Comissão e a Corte. O primeiro é responsável por assegurar e observar o cumprimento dos direitos humanos no continente americano realizando recomendações aos Estados, por exemplo. Já o segundo é um órgão judicial autônomo que visa salvaguardar as exigências da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e julgar possíveis violações. Em alguns relatórios temáticos[3], a CIDH destacou a importância do direito à saúde reprodutiva às mulheres, principalmente aquelas em situação de vulnerabilidade social, reconhecendo que o aborto inseguro viola esse direito, a integridade e a privacidade femininas. Além disso, a Comissão também ressaltou que a criminalização do aborto afeta negativamente diversas esferas da realidade dos corpos que têm a capacidade de gestar, sendo obrigação dos Estados prezarem por serviços de assistência eficientes em casos de abortos inseguros. A Corte IDH já admitiu casos envolvendo a questão do aborto, o último ficou conhecido como o Caso Manuela e familiares vs. El Salvador. Em dezembro de 2021[4], o Estado salvadorenho foi condenado internacionalmente pela criminalização de uma jovem que buscava assistência de saúde em meio a uma emergência obstétrica – a jovem havia sofrido um aborto espontâneo, porém a médica que atendeu Manuela denunciou-a por ter abortado voluntariamente, o que gerou uma condenação da 30 anos de prisão por homicídio qualificado.

É importante ressaltar, ainda, que o debate e o reconhecimento desses direitos em plataformas e conferências não significa, necessariamente, que eles serão aplicados na prática, em políticas públicas, leis ou ações governamentais. O percurso para a conquista dessas questões é longo e desafiador, e inúmeras mulheres sofrem diariamente devido à negligência de órgãos nacionais e internacionais, principalmente quando o assunto envolve o aborto e a autonomia do corpo feminino.

Certamente, há inúmeros casos como o de Manuela, alguns foram julgados em cortes internacionais, já outros, a maioria, são silenciados e provocam diariamente violações aos direitos reprodutivos femininos, destruindo a realidade de milhares de mulheres ao redor do mundo. Assim, ainda que as comissões internacionais auxiliem na ampliação de um ativismo em prol da garantia dos direitos das mulheres, a América Latina continua sendo uma região com altos índices de abusos e violações (SEGATO, 2016; CEPAL, 2021). Diante deste cenário, os movimentos sociais e feministas continuam vivos e em transformação, (re)inventando-se e fortalecendo-se pela arte[5], e pela (re)ocupação das ruas, pressionando por políticas públicas que promovam justiça social.

 

Mudanças recentes e mobilizações em 2022

Neste ano, diversas ações pelo Dia Internacional da Mulher (8M) ocorrem na América Latina. No Brasil, muitas ativistas lutam contra a violência sexista, fome, desemprego, fragilidade democrática e insatisfação política, com destaque para os movimentos liderados pela Marcha Mundial das Mulheres. No México, as movimentações coletivas buscam por ações concretas em favor dos direitos das mulheres e o fim da repressão dos movimentos feministas no país. Na Argentina, que alcançou a legalização do aborto no final de 2020, as mobilizações já começaram em 2 de março, em protestos contra o abuso grupal de uma jovem em um carro. As atividades foram lideradas pelo coletivo feminista Ni una a menos.

Em outros países da região, os avanços são mais lentos e custosos como, por exemplo, no Chile, onde o aborto era proibido em qualquer circunstância até meados de 2017. Após essa data, foi permitido apenas em casos de estupro, risco de vida da mulher e má formação do feto. Em 2021 houve iniciativas para a descriminalização do aborto na Câmara dos Deputados chilena, no entanto, o processo foi arquivado no fim do ano. Para o 8 de março de 2022, em meio a um duro processo constitucional, os movimentos feministas chilenos estão nas ruas com o objetivo de conter a ascensão da extrema direita no país.

De modo semelhante, no Equador, a situação enfrentada pelas feministas é desafiadora: apenas em janeiro deste ano a Assembleia Nacional descriminalizou o aborto em casos de estupro. Esse avanço, entretanto, ainda pode ser vetado pelo presidente do país. Assim, as ações das mulheres equatorianas para o 8 de março estão centralizadas, principalmente, na luta por uma lei mais abrangente e justa para a descriminalização do aborto.

É da Colômbia que vem os ventos mais recentes de mudança. No país, o aborto até a 24ª semana de gestação foi descriminalizado em 21 de fevereiro de 2022 e, ademais, foi reafirmada uma lei de 2006 que permitia o aborto legal em casos de estupro, riscos à saúde da gestante ou má formação fetal. O processo analisado na Corte Constitucional Colombiana contou com 5 votos favoráveis e 4 contrários. Além disso, as atividades foram protagonizadas pelos movimentos feministas, que clamaram por políticas públicas capazes de auxiliar a saúde das mulheres, oferecendo métodos contraceptivos, atendimentos médicos, acesso à informação e aos serviços de aborto seguro, bem como à educação sexual.  As ações feministas na América Latina pretendem juntar forças para atuar ativamente em tempos tão turbulentos, em que as destruições causadas pela pandemia, bem como ao aumento das violações, instabilidades políticas e a contrarresposta conservadora ameaçam diariamente a vida das meninas e mulheres latino-americanas.

 

* Laís Gomes Sartori é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP. Pesquisadora do GEDES.

** Maria Eduarda Kobayashi Rossi é graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP. Pesquisadora do GEDES.

Imagem: Ativistas participam de marcha contra a violência de gênero no Equador. UN Women/Johis Alarcon.

 

Notas:

[1]De acordo com o Instituto Nacional da Saúde da Mulher, o direito reprodutivo faz referência ao direito das pessoas escolherem livremente “se querem ou não ter filhos, quantos filhos vão ter e em que momento da vida”. As políticas para a promoção deste direito também devem garantir informações sobre os métodos contraceptivos, educação sexual e planejamento familiar. Já os direitos sexuais, referem-se ao “Direito de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições e com respeito pleno pelo corpo do(a) parceiro(a)” bem como “direito ao sexo seguro para prevenção da gravidez indesejada e de DST/HIV/AIDS. Direito a serviços de saúde que garantam privacidade, sigilo e atendimento de qualidade e sem discriminação”. Para mais informações, acesse: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/direitos_sexuais_reprodutivos_metodos_anticoncepcionais.pdf.

[2]Os direitos reprodutivos “baseiam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos decidirem livre e responsavelmente sobre o número, espaçamento e quando devem ter os seus filhos e de terem acesso à informação sobre a forma como fazê-lo, bem como o direito de beneficiarem de saúde sexual e reprodutiva do mais alto nível. Também incluem o direito de todos tomarem decisões sobre a reprodução sem discriminação, coerção nem violência.” (CIPD, 1995)

[3]https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2015/10240.pdf

https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2011/7512.pdf

[4]El Salvador é um dos poucos países americanos que ainda penaliza o aborto em qualquer situação.

[5]É importante salientar, ainda que em nota complementar, que a arte (expressa por meio de cartazes, danças, teatros e muitas outras formas) é um elemento constante nos coletivos e ações feministas. Um exemplo disso é o movimento One Billion Rising, ativo não apenas na América Latina, como também em diversos países do globo.

 

Referências

ANIS – Instituto de Bioética. Aborto: por que precisamos descriminalizar? Argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442. Brasília. Letras Livres. 2019. Disponível em: <https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf>. Acesso em 6 de março de 2022.

ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e Capital. Editora Ubu. 2021.

DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2017, v. 22, n. 2, pp. 653-660. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016>. ISSN 1678-4561. Acessado 5 Março 2022.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Editora Elefante. São Paulo. 2019.

SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Traficantes de sueños, 2016.

Una Aproximación a la Crisis Ruso-Ucraniana

Carlos Gutierrez*

Texto publicado originalmente em SIC Notícias

En toda crisis, y particularmente si esta conlleva el uso de la fuerza, nos podemos encontrar con tres componentes básicos iniciales: la desinformación, la retórica y el cinismo.

No quiero detenerme en ellos porque no me parece lo más relevante de la coyuntura, pero es indudable que juegan un rol muy importante en la opinión pública, en las perspectivas de los analistas (especialmente aquellos que son especialistas de última hora en todo), y sobre todo en ocultar los intereses vitales que condujeron a la crisis.

La desinformación (“se está haciendo una masacre de ciudadanos”, “se están bombardeando ciudades”, “esta es una operación limitada”, y un largo etc.), la retórica (“esto llevará a la tercera guerra mundial”, “ahora vendrá el ataque al resto de Europa”, “se aplicarán las sanciones más grandes de la historia”, y otro largo etc.), y el cinismo (“apoyaremos la lucha por la libertad y la democracia”, “es inaceptable el ataque a un país soberano”, “no se puede aceptar la independencia de regiones de un país soberano”, “siempre optaremos por la paz”, y un etc. más largo aun escondiendo guerras injustas y preventivas, masacres, desconocimiento de la ONU, golpes de estado), hacen de estas coyunturas espacios para el maniqueísmo de los líderes y medios de comunicación de todas las improntas y orientaciones ideológicas, quizás el más recurrente por su facilismo que es el de caracterizar a unos como buenos y a otros como malos, no auscultando los intereses que mueven a unos y a otros.

Por lo tanto, trataré de identificar algunas líneas interpretativas a modo de hipótesis y en forma sucinta (porque estamos ante hechos que transcurren con mucha velocidad) que cubran las explicaciones de por qué se ha llegado a la crisis, los elementos que son develados por esta, y los escenarios y conceptos que quedan abiertos.

1- El origen profundo de la crisis

Según la BBC (quizás uno de los medios considerados más serios en el mundo), el actual conflicto tiene sus inicios en la anexión de Crimea por parte de la Federación Rusa en el año 2014, lo que ya demuestra el sesgo interpretativo de una situación de mucho más larga data y de mayores complejidades.

En el discurso presidencial de Putin del 21 de febrero, hay una larga explicación de lo que significa Ucrania y el eslavismo para los rusos, arraigado en lo más profundo de su “fondo cultural” (de allí la crítica a lo que hizo la URSS con Ucrania), y que al parecer el occidente europeo y Estados Unidos nunca han logrado comprender. Incluso llegar a decir del “dolor inmenso que les provoca su alejamiento de Rusia”.

Se explaya al respecto con estas afirmaciones:

“El bienestar, la existencia misma de Estados y pueblos enteros, su éxito y vitalidad tienen origen en un poderoso sistema de raíces de su cultura y sus valores, la experiencia y las tradiciones de sus antepasados y, por supuesto, dependen directamente de la capacidad de adaptarse rápidamente a una vida en constante cambio, de la cohesión de la sociedad, de su voluntad de consolidarse, de reunir todas sus fuerzas para seguir adelante.

Pero ustedes y yo sabemos que la verdadera fuerza está en la justicia y la verdad, que están de nuestra parte. Y si esto es cierto, entonces es difícil no estar de acuerdo en que la fuerza y la voluntad de lucha son la base de la independencia y la soberanía, la base necesaria sobre la que se puede construir un futuro, un hogar, una familia, nuestra patria.”

En el fondo histórico de Rusia siempre se han encontrado dos paradigmas político-culturales: el europeísmo y el eslavismo, que han vivido las vicisitudes propias en cada época y dependiendo de la hegemonía de uno u otro, se entienden las políticas exteriores de Rusia. Durante la URSS esta tensión se vio morigerada por el conflicto mayor de corte ideológico, pero nunca despareció.

Se reactivó con la desaparición de la URSS. Gorbachov y Yelstin más europeístas esperaron de estos la buena voluntad de acogerlos en el seno europeo, pero la debilidad política y económica de Rusia alentó la tentación estadounidense del hegemón unilateral.

Como lo dice el propio Putin en su discurso del 24 de febrero:

“La respuesta es clara, comprensible y obvia. La Unión Soviética se debilitó a finales de la década de 1980 y luego se derrumbó. Todo el curso de los acontecimientos de entonces es una buena lección para nosotros y ahora se ha demostrado convincentemente que la parálisis del poder y la voluntad es el primer paso hacia la degradación y el olvido por completo. Una vez que habíamos perdido la confianza por un tiempo, el equilibrio de poder en el mundo se rompió.”

Hoy están en su cénit los eslavistas que, sin despreocuparse de Europa, sienten que su estatura histórica reside en la fortaleza y riqueza del eslavismo y para eso fortalecen su espacio étnico-cultural, así como consecuencia directa el cuidado de sus fronteras, que es lo que sintetiza su visión de Ucrania.

2- El papel de los líderes

Más allá de las caricaturas de cada uno de los líderes principales del conflicto (Putin, Zelensky y Biden) y sus respectivas orientaciones políticas e ideológicas en el plano interno de sus estados, lo cierto es que se puede apreciar un acercamiento muy distinto a la profundidad de la crisis y al modelo de liderazgo de cada uno de ellos.

Los liderazgos más recientes de Estados Unidos están en deuda: el disruptivo Trump que ninguneó a la política internacional y el debilitado Biden, que vive en una realidad paralela entre su visión conservadora del poder de Estados Unidos que ya no tiene y la realidad brutal que le demuestra su derrota en Siria y Afganistán. Su liderazgo se asocia también a ese cinismo calculador que abusa de sus socios, pero que no trepida en dejarlos: al gobierno afgano ante los talibanes, a los kurdos ante los turcos, a la agrupación democrática siria que formó ante el gobierno sirio y la respuesta militar de Rusia.

El liderazgo estadounidense quiere recuperarse, con un discurso fuerte e intransigente, pero lo más probable es que su frente interno esté tan descompuesto y su economía en deterioro, que tampoco se jugará a fondo ante esta crisis que no puede controlar del todo.

El presidente ucraniano Zelensky, que sigue un comportamiento autoritario y corrupto de todos los presidentes anteriores en Ucrania, ha demostrado su inmadurez en estas lides. Se jugó todo a la credibilidad de los discursos de Biden y la OTAN, sin sopesar los verdaderos intereses de ellos, su real poder y disposición a apoyar a Ucrania en la crisis y no dimensionar los intereses rusos. No aprendió de la crisis del año 2014 en Crimea, de la guerra de Chechenia en 1999, ni la del 2008 en Georgia, donde Putin demostró que sí tenía el poder y la voluntad de resolver crisis mediante la fuerza. Es lo más probable que sea el que más pierda en esta crisis.

El presidente Putin creo que ha sido caracterizado correctamente como un conservador nacionalista, con una larga experiencia política y militar, y una visión estratégica sobre el futuro y el papel de Rusia en la política internacional, que en esta materia ha logrado gozar de un alto consenso en la elite interna. Su prestigio y trascendencia se juega precisamente en su proyecto del refortalecimiento de Rusia y su proyección internacional, y así como ha salido victorioso de los conflictos anteriores (particularmente Chechenia y Georgia, y en el reciente apoyo en Siria), lo más probable que de este salga aún más fortalecido.

3- Los objetivos políticos declarados por el Presidente Putin

Hay dos discursos de Putin que son muy claros en dilucidar sus objetivos políticos en la relación con Ucrania, el del 21 de febrero que acepta reconocer la independencia de las regiones ucranianas autoproclamadas autónomas de Donetsk y Lugansk y el del 24 de febrero que anuncia el inicio de la Operación Militar Especial contra Ucrania.

Ambos discursos son muy decisivos y claros en expresar la visión política de fondo del gobierno ruso, que claramente se podría catalogar como fuertemente nacionalista y realista en política internacional, asumiendo la lógica de defensa de los intereses nacionales y recogiendo la histórica tradición de la cultura y política rusa (que va bastante más allá de lo que muchos analistas han querido identificar como la reconstitución de la Unión Soviética) que la ubica como un actor relevante en un espacio mixto que es Europa y Oriente.

Los objetivos aducidos de alcance estratégico son: la NO expansión de la OTAN hacia el este europeo de países que colinden con la Federación Rusa, así como la NO instalación de infraestructura militar cerca de sus fronteras y que esta alianza regrese a sus fronteras que tenía al año 1997, es decir a la situación previa del ingreso de países que fueron parte del bloque del Pacto de Varsovia que se inició en el año 1999.

Los objetivos inmediatos fueron declarados en el discurso del 24 de febrero que da inicio a la Operación Militar Especial que busca “desmilitarizar, desnazificar y juzgar a criminales de guerra que operaron contra los ciudadanos de las regiones de Donetsk y Lugansk”. A esto, claramente habría que agregar que buscará asegurar la independencia de las dos repúblicas, así como el reconocimiento de una Crimea rusa.

El objetivo de la desnazificación pudiera parecer extraño, pero desde el golpe militar del año 2014, fuerzas políticas de extrema derecha y específicamente sectores neonazis han tenido una influencia muy decisiva en el devenir político de Ucrania, no solo con dirigentes y partidos políticos en puestos relevantes del gobierno y de las fuerzas militares, sino con medidas concretas como la prohibición del uso del idioma ruso, la glorificación de la colaboración nazi en tiempos de la Segunda Guerra Mundial, la concentración de fuerzas de extrema derecha mundial para su organización internacional, y la creación del Regimiento Azov, que es una milicia neonazi incorporada a la Guardia Nacional Ucraniana.

4- El componente económico

Nunca va estar declarado explícitamente si hay intereses económicos en el conflicto, pero es evidente que por lo menos hay consecuencias.

Las acciones más visibles y retóricas por parte de la OTAN y Estados Unidos han estado centradas en las medidas económicas, particularmente financieras. Pero hay mucha discusión actual sobre los verdaderos efectos en Rusia, los impactos que estas tendrán en la propia Europa y los efectos de mediano y largo plazo que están en el fondo del conflicto.

Por lo menos, por ahora se pueden enunciar algunos temas relacionados:

  • Rusia viene viviendo sanciones hace varios años, y para esto se ha ido preparando a enfrentar estos escenarios como algunos más duros. Actualmente Rusia tiene reservas líquidas en dólares bastante alto, al igual que en otras monedas y sobre todo de reservas en oro, logrando en enero de 2022 una cifra récord e histórica.
  • Los ingresos a la economía rusa (por lo tanto dólares) son esencialmente en venta de comodities, energía y material bélico. Todas, difíciles de terminar en forma abrupta, particularmente la energía de la cual depende mucho Europa, al igual que determinados productos alimenticios.
  • Los precios de las energías han subido de precios, lo que afectará especialmente a los europeos.
  • Las medidas financieras europeas tendrán también efectos negativos en su propio territorio: inflación; aumento importante de las primas de riesgo que encarecerá los préstamos; faltará liquidez de dólares que tendrán que ser suplidos por la Reserva Federal de Estados Unidos a través de la emisión;
  • El impacto más profundo tendrá la economía financiera mundial, donde el dólar es que corre con el riesgo de ser moneda de reserva y la posibilidad cierta de acelerar la tendencia que exista una economía paralela a la estadounidense-europea con otra china-rusa-oriente, donde no prime el dólar y con un sistema interbancario propio, que ya funciona entre ambos desde el año 2014 (en este sentido el retiro de los bancos rusos del sistema Swift, acelera esta posibilidad).
  • Hay que recordar que la economía europea todavía está en cuidados intensivos producto de los efectos no totalmente superados de la pandemia.
  • El gran ganador económico será China, con la potenciación del yuan, el acopio de oro y nuevas posibilidades comerciales.

5- La disputa por una nueva configuración mundial

El principal elemento develado por esta crisis es que la actual situación de poder a nivel mundial choca con la arquitectura de poder existente, y se aprecia una tensión dirigida al status quo que impuso Estados Unidos desde el momento en que rompe la dualidad bipolar propia de la Guerra Fría.

La hegemonía unilateral ejercida con toda fuerza por Estados Unidos desde el año 1991 está cuestionada por otro hegemón de magnitud creciente que es China (y que sin lugar a dudas en un futuro próximo superará a EEUU) y por otros poderes que, siendo menores, sí representan influencias determinantes en espacios geográficos más acotados, como pasa con la misma Federación Rusa en un espacio interméstico entre Europa y parte de Asia; India en la zona indo-pacífica; Irán en la zona medio oriente.

Por lo tanto, esta quebradiza estructura internacional, que se expresa en organismos internacionales y alianzas militares, ya no da plenamente cuenta de la realidad política y económica internacional y tiende a buscar su cauce abriendo las nuevas posibilidades de multicentros que tenderán a organizarse y ordenarse en torno a espacios sustanciales.

Este es el gran problema de Estados Unidos y su tendencia al agotamiento de su hegemonía unilateral, que no está dispuesto a este reconocimiento de la nueva realidad mundial y cierra los espacios a esta configuración a través de “cordones sanitarios” que adquieren expresión concreta por ejemplo en la expansión de la OTAN en referencia a la Federación Rusa.

En el discurso del 24 de febrero, Putin lo explica así:

“Una mayor expansión de la infraestructura de la Alianza del Atlántico Norte, la exploración militar de los territorios de Ucrania que ya ha comenzado es inaceptable para nosotros. El punto, por supuesto, no es la OTAN en sí misma, que es solo un instrumento de la política exterior de Estados Unidos. El problema es que en los territorios adyacentes a nosotros —quiero señalar, en nuestros propios territorios históricos— se está creando una anti-Rusia hostil a nosotros, que ha sido puesta bajo un control externo completo, se están acomodándose las fuerzas armadas de los países de la OTAN y están llenado estos territorios con las armas más modernas.

Para Estados Unidos y sus aliados se trata de la llamada política de contención de Rusia, un evidente dividendo geopolítico.”

En este análisis crítico está implícita la discusión sobre la relación entre diplomacia y poder hegemónico absoluto, donde pierde centralidad la opción política para dar paso a la amenaza del uso de la fuerza, lo que abre la necesidad del debate de un nuevo orden con discusión de los conceptos que deberían darle sentido. Según el propio Putin:

En un estado de euforia de superioridad absoluta, de una especie de absolutismo moderno e incluso en el contexto del bajo nivel de cultura general y la arrogancia de aquellos que prepararon, tomaron y cabildearon decisiones beneficiosas solo para ellos mismos, la situación comenzó a desarrollarse en un escenario diferente.

Como he dicho antes, Rusia ha aceptado las nuevas realidades geopolíticas tras el colapso de la URSS. Respetamos y seguiremos respetando a todos los países recién formados en el espacio postsoviético. Respetamos y seguiremos respetando su soberanía, y un ejemplo de ello es la ayuda que hemos prestado a Kazajistán, que se ha enfrentado a unos acontecimientos trágicos y a un desafío a su condición de Estado y a su integridad. Pero Rusia no puede sentirse segura, desarrollarse, ni existir con una amenaza constante procedente del territorio de la actual Ucrania.”

6- El concepto de Autodeterminación de los pueblos y la Seguridad Indivisible

En esta crisis se han planteado conceptos claves existentes que también serán parte de su interpretación para escenarios futuros.

El principal de ellos es la relación entre la Autodeterminación de los pueblos y el de la Seguridad Indivisible, que han sacado a relucir en varias oportunidades los líderes involucrados en el conflicto.

Nadie ha puesto en interdicción el derecho a la autodeterminación de los pueblos (aunque pudiéramos tener dudas razonables del respeto que se ha tenido sobre este derecho), pero progresivamente la humanidad ha ido incorporando determinadas limitaciones a lo que pudiera ser un derecho absoluto, como por ejemplo el respeto universal de los derechos humanos, la existencia de cortes penales internacionales y otros. Pero, justamente en el año 1990 ante la firma de la Carta de París que da forma a la Organización para la Seguridad y Cooperación Europea (OSCE), se expresa que, en el campo de la seguridad, el concepto de Seguridad Indivisible, que apunta justamente a una limitación implícita para cada Estado.

Es una suerte de reverso conceptual al concepto de disuasión, donde prima el derecho de cada país a generar un poder de tal magnitud que convenza a un hipotético enemigo a no hacer uso de la fuerza; en cambio, el de Seguridad Indivisible se basa en el hecho de que un Estado no debe generar condiciones para que otro estado se sienta inseguro. En palabras de la Carta:

“Finalizada la división de Europa, nos esforzaremos por conferir una nueva calidad a nuestras relaciones de seguridad respetando plenamente la libertad de cada uno de elegir en esta materia. La seguridad es indivisible y la seguridad de cada Estado participante está inseparablemente vinculada a la de todos los demás. Por consiguiente, nos comprometemos a cooperar en el fortalecimiento de la confianza y la seguridad entre nosotros y a fomentar el control de las armas y el desarme”. (Carta de París para una nueva Europa, página 3).

¿Y no es, entonces, precisamente lo contrario a este acuerdo lo que sucede con la expansión de la OTAN a países contiguos geográficamente con la Federación Rusa?

Sería muy interesante, para ir delineando escenarios futuros, retomar este concepto de la Seguridad Indivisible como un paso sustancial en la creación de una nueva arquitectura internacional.

7- El límite a la actual diplomacia

Para llegar a una situación de crisis que conlleva el uso de la fuerza militar, sea esta limitada o extensiva, hay que reconocer que ha habido un fracaso de la diplomacia.

Este es otro punto esencial que ha develado esta coyuntura, en cuanto a los límites que la actual diplomacia tiene en el marco de una configuración política internacional con un hegemón unilateral agresivo, en una fase de larga duración de decadencia que impide la constitución de otros poderes globales.

Como se puede demostrar a través de un largo recuento de espacios diplomáticos llevados a cabo por la Federación Rusa y Estados Unidos para encontrar un nuevo paradigma de relaciones en Europa que incluyera a Rusia, este caminó demostró sus limitaciones.

Efectivamente, con el ocaso de la Unión Soviética y el término del Pacto de Varsovia, no sucedió lo mismo con la OTAN (teniendo en cuenta que era una alianza defensiva contra la URSS), pero se aseguró que esta no crecería hacia el este. Esta política duró hasta el año 1999 cuando hicieron su ingreso Polonia, Hungría y República Checa. Y así siguieron 4 oleadas más: el 2004 con Bulgaria, Eslovaquia, Eslovenia, Rumania, Estonia, Letonia y Lituania. El año 2009 con Croacia y Albania. El año 2017 con Montenegro y el 2020 con Macedonia del Norte. Estaba en los planes Georgia, pero después de la guerra del año 2008 no continuó con el proceso. Y en el caso de Ucrania los planes comenzaron el año 2008.

Este continuo desprecio por los acuerdos (de palabra y escritos), ha mermado la capacidad de la diplomacia para frenar el uso de la fuerza, y eso conlleva una profunda reflexión sobre una nueva conceptualización y rol de la diplomacia, para que vuelva a ser el instrumento principal y creíble en la resolución de conflictos.

El líder ruso lo sintetiza de esta forma:

“Esto ha provocado que los tratados y acuerdos ya no sean válidos en la práctica. La persuasión y las propuestas no ayudan. Todo lo que no conviene a la hegemonía, al poder, se declara arcaico, obsoleto e innecesario. Y viceversa, todo lo que les parece conveniente se presenta como la verdad definitiva que impulsan a toda costa, groseramente por todos los medios. A quienes no están de acuerdo, los destruyen.

De lo que estoy hablando ahora se refiere no solo a Rusia, y no solo a nosotros nos preocupa. Esto se refiere a todo el sistema de relaciones internacionales y, a veces, incluso a los propios aliados de Estados Unidos. Después del colapso de la URSS, de hecho, comenzó la redistribución del mundo y las normas del derecho internacional que se habían establecido en ese momento —y las normas principales, básicas que fueron adoptadas después de la Segunda Guerra Mundial y consolidaron en gran medida sus resultados— comenzaron a obstaculizar a los que se autoproclamaron vencedores de la guerra fría.

Por supuesto, en la parte práctica de la vida, en las relaciones internacionales y en las reglas que la rigen, era necesario tener en cuenta los cambios de la situación mundial y del equilibrio de poder. Sin embargo, esto se debía hacer con profesionalismo, despacio, con paciencia, teniendo en cuenta y respetando los intereses de todos los países así como entendiendo su propia responsabilidad.”

8- El eurocentrismo

Si bien esta crisis está centrada geográficamente en Europa, el núcleo del conflicto es entre Rusia y Estados Unidos, pero también es indudable que sus alcances políticos, económicos y geopolíticos lo trascienden grandemente.

Las actuaciones más notorias corresponden a los países de Europa, particularmente los miembros de la OTAN, lo que también produce un sesgo importante en el análisis de la crisis, justamente por el carácter todavía atlanticista del enfoque (con este barbarismo quiero centrar el problema de la llamada lectura de la “comunidad internacional” en la OTAN).

Puede observarse con claridad que los alineamientos con uno u otro de los actores en el conflicto obedecen a sus alianzas o afinidades políticas; como ejemplo por el lado de Rusia e encuentra Siria, Irán, Cuba, Venezuela, etc., y por el lado de Estados Unidos fuera de la OTAN y la UE están sus aliados del Pacífico como Japón, Australia, etc.

Los dos más grandes estados, India y China, han mantenido una distancia prudente de la vociferencia atlantista, absteniéndose en la votación del Consejo de Seguridad de la ONU, algo parecido a lo que pasó con Argentina y Brasil en la OEA. Toda la zona sur de Asia no se ha involucrado en el conflicto, incluso el Primer Ministro pakistaní viajó a Moscú por primera vez en 23 años.

Por lo tanto, muy lejos de existir una posición unánime de la llamada “comunidad internacional”, que también en la amplitud correcta del término están sacando sus propias conclusiones de este conflicto y las preguntas que quedan abiertas al respecto, tanto en lo geopolítico como en lo económico.

9- Qué logra cada uno

Por supuesto que, con la crisis en curso, lo que se configure como escenarios futuros es todavía muy incierto. Pero, esbozo algunas ideas:

  1. La Federación Rusa podría alcanzar sus objetivos de neutralidad oficial de Ucrania, la independencia de las dos regiones del Donbás, y el reconocimiento de Crimea. Esos logros políticos deberían ser suficientes.
  2. La desmilitarización de Ucrania podría ser parte de su estatus de neutralidad, pero también probablemente como resultados de las operaciones militares propiamente tal, la infraestructura militar ucraniana quede muy debilitada.
  3. Ucrania debiera mantener su independencia y régimen político propio.
  4. Vendrá una situación económica compleja tanto para Rusia como en Europa, pero que también tenderá a nuevas reconfiguraciones, poniendo atención a lo que pase con el dólar como moneda de reserva, sistemas interbancarios, etc.
  5. Estados Unidos no obtendrá ganancias estructurales, excepto una administración publicitaria de la crisis.
  6. La UE y la OTAN entrarán en un nuevo momento de reflexión, una vez pasada la euforia tendrán que enfrentarse a las limitaciones actuales a su poder económico y político, y de su excesiva dependencia de la política estadounidense.
  7. Hay un riesgo general de las lecturas nacionalistas sobre esta crisis, que pondrá en tensión a los proyectos democráticos internos e internacionales.

 

*Carlos Gutiérrez es analista en defensa y miembro de Grupo de Análisis de Defensa y Fuerzas Armadas (GADFA).

Imagen: Rally in Donetsk. Por: Wikimedia Commons.

Consequências para as populações civis e os limites legais humanitários na guerra Rússia-Ucrânia

Beatrice Daudt Bandeira* 

Após meses de tensão nas relações Rússia-Ucrânia e aproximação das tropas russas das fronteiras do país vizinho, iniciou-se, no último dia 24 de fevereiro, uma guerra na Europa, autorizada pelo presidente russo, Vladimir Putin.  O ato, que é reconhecido por Putin como uma “operação militar especial”, gera reações e preocupações internacionais, além de efeitos potenciais para a política de segurança na Europa, bem como para a balança de poder mundial vigente. Para as populações presentes na Ucrânia, restam os custos da guerra: aumento generalizado de suas vulnerabilidades e baixas de civis. Cenário que deve se agravar conforme a escalada do conflito. O risco humanitário decorrente do uso da força em um conflito armado internacional é uma discussão fundamental, mas tradicionalmente deixada em segundo plano pelos combatentes. Em contraponto, sugerimos uma análise que se concentre nas consequências de hostilidades às populações civis na Ucrânia, discussão que se apoia nos relatos de organizações humanitárias e de direitos humanos internacionais, que estão atuando in loco, e que têm se preocupado com possíveis violações das leis internacionais da guerra pelos combatentes.

Os dilemas acerca da coexistência entre a Rússia e a Ucrânia são de longa data. A preocupação da Rússia com a Ucrânia consiste no temor de uma expansão ocidental para os países do leste-europeu e os espaços pós-soviéticos. O que, de fato, aconteceu com o estabelecimento de alianças entre os atuais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os esforços de consolidação da defesa, segurança e alcance da esfera de influência ocidental na região. Para contextualizar, em dezembro de 2021, a Rússia apresentou à OTAN e aos Estados Unidos um conjunto de exigências, entre as quais a garantia de que a Ucrânia não se junte à aliança militar, o que, caso concretizado, como alega Putin, seria uma ameaça crítica à dimensão política da segurança nacional russa. O acordo foi rejeitado.

A retórica russa versa sobre a preocupação de que a Ucrânia se torne, portanto, uma nação “anti-Rússia”. Além disso, os interesses russos na região partem, também, de perspectivas geopolíticas, bem como laços históricos comuns aos dois países e o elemento identitário. A Ucrânia está localizada em uma região estratégica de acesso ao Mar Negro pelo Porto de Sebastopol e Putin reconhece o país como vital para a preservação do nacionalismo e a unidade nacional russa – o idioma russo é, inclusive, falado na Ucrânia, principalmente no leste do país. O que, todavia, não serve em hipótese alguma como justificativa para as agressões que caracterizam o cenário atual.

Afora as possibilidades de resolução das controvérsias por meios diplomáticos, a medida prática de contenção adotada pelas autoridades do Ocidente (como o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e líderes da União Europeia) tem sido, até o momento, a imposição de sanções e pressões financeiras, inclusive penalidades a bancos russos, mas para as quais a Rússia parece ter se preparado, em maior ou menor grau. No âmbito da comunidade internacional, a Rússia, como um dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, exerce seu poder de veto sobre resoluções que condenem a invasão, como aconteceu no dia 25 de fevereiro.

Do ponto de vista do escopo legal e humanitário, diversas organizações internacionais têm buscado chamar atenção para a necessidade de que as forças ofensivas no conflito cumpram com as normas do Direito Internacional Humanitário sobre meios e métodos de guerra.  Pronunciaram-se acerca do tema: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, International Rescue Committee, Human Rights Watch (HRW), Anistia Internacional, além de agências das Nações Unidas, como Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), por exemplo.

À medida que a crise se prolonga, as vulnerabilidades das populações presentes na Ucrânia tendem a ser rapidamente agravadas assim como a dificuldade de suprir suas necessidades básicas o que terá impacto, especialmente, sobre grupos como os de crianças, mulheres, idosos e enfermos. Deve-se considerar que as ameaças à dignidade humana dos afetados por qualquer conflito armado são reais e urgentes. Lógica que serve para destacar os possíveis impactos humanos, sociais, psicológicos, políticos e financeiros no curto e longo prazo.

As longas filas de carros que deixam a Ucrânia evidenciam a situação dramática, marcada pela preocupação da população com sua segurança, pelo reconhecimento, por parte da Rússia, da integridade territorial do país e o inadiável apelo para o restabelecimento da paz. As consequências da guerra devem afetar o fluxo de deslocados internos (que já atinge o número de 160 mil) e de refugiados ucranianos: ao menos 875 mil pessoas que, apesar das condições meteorológicas, deixaram seu país desde o início da invasão russa com destino aos países vizinhos, Polônia, Moldávia, Romênia e Hungria. Tais números devem aumentar rapidamente nos próximos dias.

Para as comunidades que permanecem nas zonas de conflito (que têm recorrido às estações subterrâneas de metrô como abrigo contra bombas) está em jogo o acesso aos bens básicos de sobrevivência, como atendimento médico seguro e eficaz. E serão por elas testemunhados os impactos que ataques militares, quando feitos de forma indiscriminada – o que descumpre as leis da guerra, inclusive -, têm sobre infraestruturas civis essenciais, incluindo instalações de saneamento, distribuição de eletricidade e transmissão, bem como serviços de distribuição de alimentos e água, prédios habitacionais, hospitais e escolas. Tipo de ataque ilustrado pelas imagens de um míssil, disparado pela Rússia, que destruiu parte de um prédio residencial, na madrugada do dia 26, na cidade de Kiev, onde as  tropas ucranianas (e civis) defendem o país contra a escalada de violência por parte da Rússia, que tem como objetivo o controle político da capital e a ambição de derrubar o governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Até o momento, as consequências desta guerra para a população civil não têm sido suficientemente vislumbradas pelas partes políticas envolvidas. Organizações humanitárias e de direitos humanos internacionais, a exemplo da Anistia Internacional, a própria ONU e a HRW, citadas anteriormente, alertam para a preocupação com possíveis ataques que violem as leis internacionais. Destaca-se que o Direito Internacional Humanitário (ou leis da guerra), apesar de não proibir que a escalada de violência armada tenha lugar no espaço urbano, apresenta como obrigação legal e moral dos combatentes não realizar ataques deliberados e imprudentes que atinjam pessoas e infraestruturas civis. Além disso, o uso de arsenal, que inclui munições de fragmentação, também é proibido por sua capacidade de gerar danos generalizados a civis.

Relatos feitos por trabalhadores das organizações têm informado sobre a dificuldade do monitoramento da violência e de supostas violações do Direito Internacional Humanitário, que podem estar acontecendo por todo o país. A HRW, por exemplo, apurou um caso em que um míssil balístico russo, com munição de fragmentação, atingiu um hospital na cidade de Vuhledar. Como bem lembra a Anistia Internacional: “Alegações por parte da Rússia que apenas utilizam armas guiadas de precisão são manifestamente falsas”.

Conforme a ONU ao menos 136 civis (sendo 13 crianças) foram mortos até o dia 1 de março. Número que, assim como o de casos de feridos pelos ataques – registrado até o momento como sendo de 400 pessoas -, ainda permanece incerto. O Ministério da Saúde da Ucrânia estimou que, até o dia 27 de fevereiro, o número de vítimas foi de 352 civis mortos (sendo 14 crianças) e 1.684 feridos. A constante desinformação disposta em relatórios não oficiais, as dúvidas sobre a extensão da invasão russa, e a falta de segurança para que os profissionais humanitários realizem seus trabalhos devem contribuir diretamente para o agravamento da situação no país.

Enquanto Putin indica um posicionamento ainda mais agressivo, ao colocar em alerta as força nucleares do país, a comunidade internacional permanece buscando mecanismos de sanção na tentativa de minar a incursão russa sobre o país vizinho. Protestos pró-Ucrânia e em solidariedade às vítimas têm sido registrados ao redor do mundo, inclusive no Brasil. No escopo do humanitarismo internacional, as organizações pedem, de forma urgente, para que as partes ofensivas reconheçam e ofereçam garantias – e demonstrem tal compromisso na prática – de que trabalhadores humanitários, pessoas e instalações civis não serão alvos.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Seus interesses de pesquisa incluem as áreas de ação humanitária e análise de conflitos armados internacionais. Contato: beatricedaudtb@gmail.com.

Imagem: Pessoas se abrigam no metro de Kiev, 2022. Divulgado por: Wikimedia Commons.

A guerra na Ucrânia e o delicado equilíbrio nuclear

Raquel Gontijo*

 

Após três dias da campanha russa sobre a Ucrânia, e diante da reação internacional de repúdio à invasão, Putin declarou que as forças nucleares russas seriam colocadas em elevado estado de alerta. Essa afirmação sinaliza uma ameaça de que, caso haja envolvimento mais intenso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito, a crise poderá escalar para uma guerra nuclear. Mas não está claro ainda exatamente o que significa, na prática, esse estado de alerta.

As forças nucleares russas são compostas por armamentos estratégicos e táticos. Os armamentos nucleares estratégicos têm maior capacidade explosiva, variando entre 50[1] e 800 ktons[2]. Esses armamentos também são associados a veículos de entrega de maior alcance, como mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), mísseis lançados por submarinos (SLBMs) e bombardeiros estratégicos. Por outro lado, os armamentos nucleares táticos têm, em média, menor capacidade explosiva (usualmente entre 10 e 100 ktons) e são associados a veículos de entrega de menor alcance, como mísseis balísticos de médio alcance (MRBMs) e mísseis de cruzeiro.

Parte das forças nucleares, especialmente as forças estratégicas, está constantemente em estado de prontidão, podendo ser acionadas em curto intervalo de tempo, em caso de iminência de um ataque contra a Rússia. A declaração de Putin sobre o estado de alerta das forças nucleares tem como principal efeito aumentar a quantidade de ogivas em estado de prontidão, de modo que elas possam ser empregadas mais rapidamente caso haja um agravamento da escalada do conflito.

Mas sob quais circunstâncias o governo russo poderia autorizar o uso da força nuclear? Essa é uma pergunta que não tem respostas claras.

No relatório de Revisão da Postura Nuclear dos EUA de 2018, o governo estadunidense apresentava uma interpretação sobre a doutrina militar russa que seria baseada na ideia de “escalar para desescalar”. Neste sentido, a Rússia estaria disposta a realizar ataques nucleares limitados como uma forma de coagir seus oponentes a recuarem, em caso de crises. Ou seja, a Rússia teria aparentemente maior disposição para iniciar o uso de armas nucleares.

No entanto, a doutrina oficial divulgada pelo governo russo indica que o uso de armas nucleares poderá ocorrer apenas caso haja a detecção de ataques nucleares contra a Rússia ou seus aliados, ou haja uma ameaça existencial sobre a Rússia, seu território ou o território de seus aliados. Não fica claro, neste momento, se a situação na Ucrânia se configuraria como uma ameaça existencial para os interesses russos. A postura adotada abertamente por Putin nas últimas semanas indica uma leitura de que o território da Ucrânia deve estar, direta ou indiretamente, sob controle russo. Assim, diante das operações militares dos últimos dias, não é absurdo supor que a Ucrânia se configura como parte do território considerado vital pelo governo russo.

Putin tem tentado sinalizar de forma clara sua disposição para escalar o conflito com o uso de armas nucleares, caso a OTAN se envolva diretamente na guerra. Isso nos leva a mais uma pergunta: qual é o risco de escalada nuclear no atual conflito? Podemos dividir a resposta em dois cenários: escalada nuclear proposital e escalada nuclear acidental.

A escalada proposital envolveria uma decisão calculada de iniciar o uso de armas nucleares, com maior probabilidade de que esse uso seja focado nos armamentos nucleares táticos.  Este cenário, apesar de possível, é extremamente improvável. Contudo, alguns elementos poderiam contribuir para esse tipo de decisão: uma crescente deterioração da situação para as forças russas, com aumento da letalidade para suas tropas e uma projeção de guerra urbana longa e custosa; um maior envolvimento da OTAN na guerra, com envio de armamentos, munições, suprimentos em geral e, eventualmente, de tropas; um aumento do isolamento da Rússia no sistema internacional, o que levaria o governo russo a se ver cada vez mais acuado. Esses desdobramentos poderiam levar Putin a buscar uma vitória militar rápida e decisiva pelo uso de armamentos nucleares.

É evidente que a decisão de usar armas nucleares teria um custo gigantesco para a própria Rússia. Primeiramente, o uso de ogivas nucleares teria, necessariamente, um enorme impacto sobre civis, o que geraria uma reação massiva da opinião pública tanto internacional quanto doméstica. Devemos lembrar, inclusive, que o governo de Putin já vem enfrentando resistência de sua população em relação à operação militar, a despeito dos esforços para filtrar e censurar as notícias que circulam no país.

Ainda mais grave, o uso de armas nucleares geraria fortíssimos incentivos para uma resposta mais dura da OTAN: seria como cruzar uma linha vermelha, rompendo com a tradição de não uso nuclear que foi preservada no mundo desde 1945. Este é o cenário que nos levaria para a beira do abismo de guerra nuclear em grande escala. Uma vez que armas nucleares sejam usadas em conflito pela Rússia, a OTAN poderá responder com uma retaliação nuclear limitada, o que poderia, por sua vez, escalar para um engajamento nuclear generalizado.

O outro cenário possível seria o de escalada acidental, ou inadvertida. Em situações de crise, com as forças em estado de alerta elevado e as pessoas sujeitas a estresse intenso, as decisões muitas vezes ficam prejudicadas e podem ocorrer erros de cálculo. A escalada acidental pode acontecer quando uma das partes (ou ambas) calcula mal a reação do oponente.

Na atual crise da Ucrânia, a Rússia e a OTAN estão engajadas em um jogo de sinalizações. Por um lado, a Rússia tenta inibir maior envolvimento da OTAN, ameaçando o uso da força nuclear como um escudo para resguardar sua liberdade de ação na Ucrânia. Por outro lado, a OTAN quer demonstrar que Putin não terá plena liberdade para perseguir suas ambições expansionistas no leste europeus. Neste sentido, os membros da OTAN tentam fazer sinalizações limitadas, enviando armamentos e munições para os ucranianos, impondo sanções econômicas, fechando seus espaços aéreos etc. Essas sinalizações são feitas, em geral, com cautela, mas é difícil prever exatamente o que o outro lado pode interpretar como inaceitável.

Deve-se lembrar também que, em situações de crise, falhas de comunicação e interpretações erradas por parte dos serviços de inteligência podem ter consequências devastadoras. Há inúmeros relatos de momentos, durante a Guerra Fria, em que a escalada nuclear quase ocorreu por falhas humanas e técnicas. Não é, portanto, impensável que erros similares ocorram durante a guerra na Ucrânia, resultando em reações precipitadas que poderiam dar origem à escalada nuclear.

Este é um momento de extrema incerteza. Em meio a tanto sofrimento, com movimentações massivas de deslocados e refugiados, ataques a cidades com impactos sobre civis, danos econômicos ainda difíceis de dimensionar, é fundamental que o mundo mantenha sua atenção também sobre o delicado equilíbrio nuclear que está sendo ameaçado.

No fim do século XIX, analistas militares diziam que a invenção das metralhadoras tornaria as guerras impensáveis, pela escala de mortandade que passaria a ser possível; o mesmo argumento foi levantado sobre a invenção das aeronaves no começo do século XX, pelas imagens de terror de bombardeios a cidades. Hoje, metralhadoras e aeronaves são equipamentos banais em qualquer guerra. É fundamental que as armas nucleares não sigam o mesmo caminho. De todas as consequências que podem decorrer desta guerra, talvez a pior seja pensar que as armas nucleares podem passar a ser percebidas como um armamento de guerra como outro qualquer. Sobretudo, é vital que a tradição de não uso nuclear seja preservada.

[1] As ogivas nucleares, em caso de armas nucleares estratégicas, são frequentemente associadas a mísseis MIRV, ou seja, com múltiplos veículos de reentrada independentes. Assim, por exemplo, cada míssil com 6 veículos de reentrada poderia transportar 6 ogivas de 50 ktons, totalizando 300 ktons e maximizando a área de destruição atingida.

[2] 1 kton é aproximadamente equivalente a mil toneladas de explosivos convencionais. Para efeito de comparação, as bombas de Hiroshima e Nagasaki são estimadas em algo entre 10 e 20 ktons.

 

* Professora do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e pesquisadora do GEDES.

Imagem: Treinamento para o desfile do dia da vitória. Por: Michał Siergiejevicz/Wikkimedia Commons.

Tensão na fronteira ucraniana: reflexos de um mundo em mudança

                                                                        Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

O ano de 2021 marcou os 30 anos da dissolução da União Soviética. No início do mês de dezembro deste mesmo ano, tropas russas – em números estimados em até 175 mil, segundo os serviços de inteligência do governo dos Estados Unidos – foram posicionadas próximas às fronteiras com a Ucrânia. A situação provocou o aumento da tensão das relações russo-estadunidenses e pode ser apontada como reflexo de um processo que evidencia a questão ainda a ser resolvida sobre as configurações de forças e a arquitetura de segurança no continente europeu, sobretudo no que tange ao chamado espaço pós-soviético, e são motivos de apreensão aos olhos da comunidade internacional em relação à iminência de um conflito em maiores escalas.

Apesar de intensificada ao longo da última década, a latência destas tensões pode ser traçada desde a queda do bloco comunista em 1991. Nesse sentido, os acontecimentos e desdobramentos observados neste período trazem à tona alguns pontos que merecem atenção especial. Em primeiro lugar, torna-se claro que, mesmo passados 30 anos, a formação dos novos Estados pós-soviéticos ainda traz questionamentos sobre a identidade destes e o papel da Rússia neste novo contexto geopolítico. Em segundo lugar, mostram a evolução da capacidade militar russa e a disposição do Kremlin em fazer uso de suas forças armadas – direta ou indiretamente – no processo de barganha e reivindicação de seus interesses. Como terceiro ponto, destaca-se a tendência de reconfiguração de forças no tabuleiro internacional a partir da ascensão da China ao posto de principal concorrente dos Estados Unidos e do renascimento militar russo. Em razão destes dois elementos, os cálculos estratégicos  dos atores envolvidos passam a ser feitos a partir da percepção do fim da hegemonia estadunidense estabelecida no pós-Guerra Fria. Por fim, este cenário evidencia o papel crucial da geopolítica para análise da política externa russa e de sua relação com os Estados Unidos e a OTAN. Na origem das tensões atualmente em curso na Ucrânia encontra-se um fenômeno geopolítico percebido pela Rússia como lesivo a sua segurança nacional: a crescente expansão da OTAN, uma aliança militar forjada para combater a União Soviética, em direção às fronteiras russas.

A crise em torno da Ucrânia se iniciou após o posicionamento de tropas russas munidas de artilharia, veículos blindados de combate e tanques ao redor de praticamente toda a fronteira com a Ucrânia. Conforme pode ser visto por imagens de satélites, Kiev se vê cercada ao norte, leste e sul por forças russas. O medo gerado pela aproximação de soldados à fronteira ucraniana se deve ao histórico recente de anexação da Crimeia (2014) e apoio militar – ainda que negado oficialmente pelo Kremlin – às forças separatistas na região do Donbass, nas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. Todos estes elementos fazem com que Ucrânia, Europa e Estados Unidos passem a projetar a possibilidade de invasão militar russa em solo ucraniano. Vale ressaltar, no entanto, que, em abril de 2021, episódio semelhante já havia acontecido. Na ocasião, o governo russo alegou se tratar de uma ação defensiva em resposta aos exercícios militares da OTAN na Europa e como medidas preemptivas para impedir o governo ucraniano de lançar uma ofensiva na região de Donbass (BIELIESKOV, 2021).

Com o objetivo de resolver o impasse, uma sequência de conversas entre líderes da Rússia, EUA e OTAN têm acontecido. Nas negociações, o Kremlin lançou uma gama de reivindicações que incluem, principalmente: 1) o compromisso da OTAN em nunca incorporar a Ucrânia à aliança militar ocidental; 2) eliminar a alocação de armas e tropas da OTAN em países que aderiram à aliança após 1997[1]; 3) banimento de mísseis balísticos de alcance intermediário da OTAN instalados na Europa; 4) garantir a autonomia através da região de Donbass através da federalização da Ucrânia conforme os acordos de Minsk de 2015 (MEYNES, 2022).

Desse modo, o Kremlin tem elevado suas apostas sobre a reposta da OTAN a uma eventual invasão russa em território ucraniano, com o objetivo de coagir seus membros a uma nova rodada de negociações que estabeleça garantias à segurança russa e que formalmente estabeleça o fim da expansão militar ocidental próximo à fronteira russa. Segundo Pifer (2021), Putin sabe que as demandas feitas seriam consideradas desproporcionais pelo governo Biden e pelos outros líderes da OTAN, que tais termos não seriam aceitos e que sua rejeição poderia servir como um pretexto para a incursão russa. Pode-se conjecturar, também, a hipótese de que Vladimir Putin estaria testando os limites de concessões e a forma de negociação do governo estadunidense sob comando de Biden.

Nesse sentido, pode-se argumentar que um objetivo do governo russo foi atingido, ao menos por ora: gerar tensão para chamar atenção das potências ocidentais e garantir um lugar à mesa de negociação, estabelecendo seus próprios termos e interesses. Entre esses interesses, destaca-se o objetivo de reformular a configuração de forças estabelecidas no pós-Guerra Fria, no qual o avanço da OTAN ao Leste Europeu e a adesão de ex-repúblicas bálticas soviéticas, além da sinalização da possível adesão de Geórgia e Ucrânia, foram percebidas por Moscou como política agressiva do bloco ocidental capitaneado por Washington e ameaça à segurança doméstica russa. Com isso em mente, a postura atual russa em relação à Ucrânia deve ser entendida como uma estratégia de brinkmanship, que consiste na elevação da tensão e ameaça de um conflito iminente em busca de obter ganhos em relação à contraparte, como visto na Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. De fato, um episódio que ressoou as tensões vividas no auge da Guerra Fira, o vice-chanceler da Rússia, Sergei Ryabkov cogitou a possibilidade de envio de recursos militares russos à Cuba e Venezuela.

A Rússia parece, a princípio, ter vantagem quanto aos desdobramentos da crise ucraniana. Enquanto suas tropas não ultrapassarem a fronteira, o país não poderá ser acusado de agressão e, nesse meio tempo, continuará a pressionar o Ocidente a negociar em termos favoráveis a Moscou. Como consequência, o dilema de como agir em relação a este imbróglio fica, em sua maior parte, nas mãos da Administração Biden. No cenário em que os Estados Unidos concordem com as demandas de Moscou, a imagem de Washington a nível internacional demonstraria um sinal de fraqueza e mais um indício de que a hegemonia exercida pelo país desde o fim da Guerra Fria está se deteriorando, uma vez que a despeito do imenso poderio militar e econômico, não é mais capaz de fazer prevalecer seus interesses políticos ao redor do globo.

No cenário em que os Estados Unidos iniciem o conflito, Putin terá ainda mais argumentos para justificar a intervenção militar na Ucrânia e aumentar sua retórica de expansionismo militar ocidental como ameaça à segurança russa. Caso a Rússia eventualmente tome o primeiro passo e invada a Ucrânia, Biden terá que lidar com o dilema de não reagir com o uso de força militar, como já ocorreu no caso da Crimeia e, novamente, demonstrar fraqueza política, ou também enviar tropas à Ucrânia. Se este último cenário acontecer, haveria uma linha tênue entre evitar a escalada dos conflitos e se ver em meio a uma guerra indesejada, logo após a retirada humilhante das tropas do Afeganistão.

A retaliação não-bélica mais provável seria, portanto, a aplicação de sanções à Rússia. Contudo, Moscou tem demonstrado, desde a anexação da Crimeia, que está disposta a sofrer os custos econômicos em detrimento de seus interesses estratégico-securitários e garantir a primazia de sua influência política e militar sobre as ex-repúblicas soviéticas, sobretudo no caso da Ucrânia, cujos laços históricos e culturais trazem um elemento de ainda mais complexidade. Como bem define Bordachev (2021, p. 13, tradução nossa) “a política externa russa não é focada em considerações materiais: as questões de segurança, prestígio e étnicas prevalecem sobre os ganhos e benefícios.”

Não obstante, é preciso dizer que a eclosão de um conflito tampouco é de interesse entre os russos. Como mostra Kolesnikov (2021), a população não é favorável a um conflito com a Ucrânia, sobretudo em razão dos laços históricos entre os dois povos. Além disso, o apoio político a Vladimir Putin, a nível doméstico, vem se deteriorando em decorrência dos anos de estagnação econômica e da pandemia de Covid-19. A possibilidade de uma repressão violenta a eventuais protestos contra o governo russo ecoaria os acontecimentos em Belarus e Cazaquistão[2] e seria mais um elemento prejudicial à figura do presidente, doméstica e internacionalmente.

Por fim, cabe destacar que a atual situação envolvendo a possibilidade de um conflito na Ucrânia se desenvolve a partir de um cauteloso cálculo estratégico das potências envolvidas. Ainda que o autor desta análise acredite ser improvável a eclosão de um conflito, ao menos em curto e médio prazo, os desdobramentos das negociações e o desencadeamento de hostilidades em razão de possíveis falhas de comunicação entre as partes dotam o futuro das relações russo-estadunidenses em relação ao contexto pós-soviético de uma grande carga de imprevisibilidade.

[1] A expansão da OTAN a partir de 1997 deu-se em quatro rodadas de adesão de novos membros: Hungria, Polônia e Tchéquia (1999); Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Romênia e Bulgária (2004); Albânia e Croácia (2009); Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020).

[2] No caso de Belarus, os protestos eclodiram em 2020, após o anúncio da reeleição de Lukashenko, a sexta seguida desde a independência do país da União Soviética, apesar das pesquisas eleitorais apontarem para a derrota do governante. No Cazaquistão, as revoltas começaram no início de 2022 em resposta ao aumento do preço dos combustíveis. Em comum, os dois casos se dão em ex-repúblicas soviéticas marcadas pela centralização de poder e autoritarismo de seus governos, que contam com o apoio de Vladimir Putin para a manutenção de seus mandatos. Na crise cazaque, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) – aliança militar composta por Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão – foi acionada pela primeira vez desde sua criação, em 1992, a pedido do governo cazaque. A Rússia contribuiu com, ao menos, 2 mil soldados.

 

*Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Foto de Kiev por Pixabay.

REFERÊNCIAS

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BORDACHEV, Timofei. Space Without Borders: Russia and Its Neighbours. Valdai Discussion Club. December 20, 2021. Disponível em: https://valdaiclub.com/a/reports/space-without-borders-russia-and-its-neighbours/. Acesso em: 18 jan. 2022.

EM RESPOSTA à OTAN, Rússia não descarta enviar militares para Cuba e Venezuela. O Povo. 13 jan. 2022. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/mundo/2022/01/13/em-resposta-a-otan-russia-nao-descarta-enviar-militares-para-cuba-e-venezuela.html. Acesso em 21 jan. 2021.

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HÖPPNER, Stephanie. Entenda os protestos em Belarus. Deutsche Welle. 20 ago. 2020. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/entenda-os-protestos-em-belarus/a-54636597. Acesso em: 21 jan. 2022.

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PIFER, Steven. Russia’s draft agreements with NATO and the United States: Intended for rejection? Brookings. December 21. 2021. Disponível em: https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2021/12/21/russias-draft-agreements-with-nato-and-the-united-states-intended-for-rejection/. Acesso em: 18 jan. 2022.

SCHWIRTZ, Michael; REINHARD, Scott. How Russia’s Military Is Positioned to Threaten Ukraine. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/01/07/world/europe/ukraine-maps.html.  Acesso em: 18 jan. 2022.

SONNE, Paul; HARRIS, Shane. Russia planning massive military offensive against Ukraine involving 175,000 troops, U.S. intelligence warns. The Washington Post. December 3, 2021. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/national-security/russia-ukraine-invasion/2021/12/03/98a3760e-546b-11ec-8769-2f4ecdf7a2ad_story.html. Acesso em: 18 jan. 2022.

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado (Parte II)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

No artigo “Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia” oferecemos um panorama sobre os efeitos da criação do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher sobre as vidas de mulheres latino-americanas e brasileiras. Embora haja avanços significativos, principalmente no que se refere a uma maior visibilidade das desigualdades de gênero e ao estímulo a ações de prevenção e combate às violências contra mulheres e meninas, não podemos perder de vista o fato de que a América Latina continua a ser a região mais perigosa para elas fora de uma zona de guerra. E por que isso ocorre?

De acordo com autoras feministas como Rita Segato (2014, 2016), os corpos das mulheres são espaços onde as múltiplas violências foram naturalizadas desde a colonização. A cultura patriarcal tem disseminado ações de enorme crueldade, que se fazem presentes até hoje. Nas palavras de Segato: “O acesso sexual está contaminado pelo universo do dano e da crueldade — não apenas apropriação dos corpos, sua anexação enquanto territórios, mas sua destruição. Como os danos, conquista, roubo e estupro estão associados, eles permanecem, portanto, como ideias correlatas ao longo do período de instalação das repúblicas e até a atualidade[1]” (SEGATO, 2016, p. 21, tradução nossa).

No atual contexto de pandemia e ascensão de governos mais autoritários na região, a violência contra mulheres ganha requintes de crueldade. Desamparadas pelo Estado, elas sofrem uma sobrecarga com os serviços domésticos e de cuidado ⎼ aderindo a jornadas duplas ou triplas de trabalho, e ficando mais expostas à violência doméstica por passarem mais tempo em casa. Observa-se, portanto, uma forte relação entre a perpetuação da violência e exploração dos corpos feminilizados ⎼ principalmente de mulheres não brancas e periféricas, como ressaltado por Françoise Versés (2021) e, na realidade brasileira, por autoras como Sueli Carneiro (2011), Lélia Gonzalez (2020) ⎼ e a lógica capitalista de  histórica acumulação de capital.

Como ressaltado por Silvia Federici (2019), o trabalho não-remunerado ou “trabalho reprodutivo” refere-se a uma série de atividades relacionadas à educação, ao cuidado e à reprodução biológica, os quais são imprescindíveis para a reprodução da força de trabalho que mantém as engrenagens do capitalismo funcionando.

A lógica neoliberal também cria seu próprio discurso acerca do trabalho feminino, salientando que a solução para libertar-se da opressão está no abandono das tediosas tarefas domésticas e na inserção das mulheres no mercado de trabalho. Entretanto, estes discursos conhecidos como “feminismo liberal” escondem o fato de que a sua “libertação” só pode acontecer mediante a exploração da mão-de-obra feminina não-branca, e muitas vezes migrante, que passa a desempenhar essas tarefas indesejadas (HOOKS, 2020). Em contextos de crise socioeconômica e desamparo do Estado, as mulheres não-brancas são as mais afetadas, pois devem ocupar-se de atividades reprodutivas e de cuidado que, em outros momentos, poderiam ser desempenhadas pelo próprio Estado por meio de políticas públicas. Como exemplo, podemos citar as políticas públicas para a concessão de apoios financeiros, além do oferecimento e melhoria de serviços públicos de cuidado, como asilos para idosos, creches e escolas integrais para crianças (ILO, 2018). No que se refere às questões reprodutivas, as políticas oferecidas pelo Estado contam com a oferta de anticoncepcionais, capacitação dos profissionais de saúde para assistência em planejamento familiar, programas de saúde e prevenção nas escolas, bem como a garantia de uma boa saúde e atendimento (BRASIL, 2005).

Segundo a Oxfam Brasil (2020), durante a pandemia, o desemprego atingiu principalmente mulheres negras (babás, empregadas domésticas, motoristas, profissionais da saúde) que não tiveram a opção de ficar em casa e seguiram trabalhando sob condições insalubres e com alto risco de contaminação. Não à toa, a primeira vítima do coronavírus detectada no Brasil foi uma mulher negra de 57 anos e empregada doméstica. A ONU Mulheres (2021) observa que, na região Norte do Brasil, as mulheres indígenas foram as mais impactadas, pois “são elas que acessam políticas públicas, vão à cidade e se expõem ao cuidar de vários assuntos da família, tendo que sair das aldeias”.

No que se refere à maior exposição à violência durante a pandemia, os índices de agressões, estupros e feminicídios aumentaram no Brasil e ao redor do mundo. Em 2019, três em cada dez mulheres foram violentadas e 1.326 feminicídios foram registrados no país (um aumento de 7,1% em comparação aos índices de 2018), além de um estupro a cada oito minutos. Em 2020, o número de feminicídios teve um pequeno acréscimo, o que não significa que seja um cenário menos alarmante: foram 1.350 casos que correspondem a uma mulher morta a cada seis horas.

Além de o fator étnico-racial ter uma importante influência sobre esses índices (as mulheres negras e indígenas são as mais expostas à violência), destacamos também a questão das mulheres transexuais e travestis. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), aproximadamente 70% da população trans do país não conseguiu acesso às políticas emergenciais do Estado, por conta da sua situação de vulnerabilidade social que inclui a falta de documentos e acesso à moradia e serviços básicos de saúde e educação. Muitas mulheres trans continuaram se prostituindo para manter sua renda, ficando mais expostas ao vírus. O isolamento social tampouco evitou violências, pois é dentro de suas casas – que deveriam ser, a princípio, o lugar mais seguro – que muitas mulheres são agredidas e mortas. No caso das mulheres trans, houve um acréscimo de 43% de assassinatos no ano de início da pandemia. Essa situação evidencia como a vulnerabilidade socioeconômica de mulheres está profundamente relacionada à violência sofrida por elas.

 

Realidades latino-americanas e perspectivas futuras

Perante a ineficiência dos Estados latino-americanos em promover boas condições de vida para a sua população (sobretudo feminina, negra, indígena e LGBTQIA+) em um contexto de crise econômica e pandemia, movimentos feministas da Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e México têm resistido e se organizado para cobrar ações dos governos, além de recorrer a redes de apoio comunitário. Na realidade, tratam-se de demandas históricas que se tornaram ainda mais urgentes, senão, inadiáveis.

Nas manifestações do Dia Internacional da Mulher (8 de Março de 2021), as argentinas pediam a visibilização e a elaboração de políticas públicas para diminuir a superexploração das mulheres; o direito a uma lei trabalhista para travestis e transexuais e uma reforma judicial feminista contra a violência. Em complemento, sob o lema “A pandemia não é desculpa”, as uruguaias tomaram as ruas, mostrando o protagonismo das mulheres na mitigação da pobreza na pandemia. As chamadas “ollas populares” (“panelas populares”), refeitórios populares coletivos, atenderam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade no país.

Também se destacam movimentações no Chile, onde mulheres percorreram as ruas de Santiago em um movimento pela construção coletiva de uma nova constituinte, buscando enterrar a constituição neoliberal, autoritária e excludente da ditadura de Augusto Pinochet. Uma das características da nova constituição seria a “criação de um governo feminista que combata a violência de gênero e garanta o direito de cada mulher decidir sobre o seu corpo”. Nos dias atuais, as perspectivas são positivas para o Chile, onde o segundo turno das eleições presidenciais, realizado no dia 19 de dezembro, foi disputado por José Antonio Kast, um candidato pinochetista e ultraliberal (o conhecido “Bolsonaro chileno”), e Gabriel Boric,  representante da esquerda política nacional, terminando com a vitória desse último. A presença da extrema direita no país aparenta ser uma reação conservadora (ou “backlash”) a uma constituição que, dentre outras coisas, pretende incorporar uma perspectiva de gênero e objetivos feministas que podem abalar as estruturas vigentes. A conquista da esquerda, porém, traz esperança para outras eleições presidenciais, como a que ocorrerá no Brasil em 2022.

Tanto no Chile, quanto no Brasil e outros lugares do mundo, presenciamos a precarização das vidas de milhões de mulheres que continuam resistindo dentro de um sistema patriarcal, machista, misógino, racista e que ainda cultiva uma série de preconceitos contra a população LGBTQIA. Portanto, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher nos suscita reflexões que vão além da conscientização da sociedade e operacionalização de medidas a curto prazo: nos faz questionar toda a dinâmica capitalista que tem o poder de decidir quais corpos são dignos de viver e quais são matáveis (MBEMBE, 2016; BUTLER, 2020), e vislumbrar alternativas dentro e fora do Estado.

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] No original “El acceso sexual se ve contaminado por el universo del daño y la crueldad —no solo apropiación de los cuerpos, su anexión a territorios, sino su damnación —. Conquista, rapiña y violación como damnificación se asocian y así permanecen como ideas correlativas atra- vesando el periodo de la instalación de las repúblicas y hasta el presente” (SEGATO, 2016, p. 21).

 

Referências Bibliográficas

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Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher: origens, avanços e retrocessos na América Latina e no Brasil sob a pandemia (Parte I)

Gabriela Aparecida de Oliveira *

Maria Eduarda Kobayashi Rossi **

 

O Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra a Mulher (25 de novembro) foi instituído em 17 de dezembro de 1999, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, e homenageia as irmãs Pátria, Minerva e Maria Teresa Mirabal. Elas foram assassinadas por seu ativismo contra a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo (1930-1961), na República Dominicana. A criação da data pode ser vista como um reflexo dos esforços de movimentos feministas, os quais objetivam operacionalizar transformações sociais pelo fim da violência de gênero ⎼ que atinge não apenas mulheres e meninas, mas também homens, meninos e a população LGBTQIA +.

O contexto de sua criação foi marcado por uma série de avanços sobre as questões de gênero na agenda internacional. Destaca-se, em ordem cronológica: a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, 1979), a Declaração sobre Eliminação da Violência Contra a Mulher (1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995), bem como a elaboração da Resolução 1325/2000. Essa última originou a Agenda Mulheres, Paz e Segurança, ressaltando a necessidade da participação de mulheres nos espaços políticos, nos processos de resolução de conflitos e construção da paz.

Desde sua origem, a data objetiva mobilizar a consciência social crítica, estimulando a efetivação de projetos, políticas públicas e planos de ação nacionais para prevenir as violências contra as mulheres e meninas, bem como proporcionar a igualdade de gênero na política[1]. Incentiva-se, também, a realização de pesquisas e a difusão de dados sobre o tema em questão. Vale mencionar que, no âmbito da ONU, muitos projetos são financiados pelo Fundo internacional para a eliminação da violência contra as mulheres e pelo Fundo para a Igualdade de gênero, os quais foram criados, respectivamente, em 1996 e 2009.

No Brasil, desde 1997, tais órgãos contribuíram para o financiamento de diversos projetos como o “Iyà Àgbá – Rede de Mulheres Negras Contra a Violência”, realizado pela Fundação Criola em 2005, e o projeto “Juventude e Arte para qualquer parte: pelo fim da Violência contra as Mulheres” realizado pela Casa da Mulher Trabalhadora – CAMTRA, em 2017. Além disso, há cada vez mais iniciativas que buscam envolver os homens nas ações transformativas, incentivando a construção de masculinidades positivas. Nesse sentido, uma das instituições brasileiras que mais se destacou foi o Promundo, com os projetos “Engajando Homens para Acabar com a Violência Baseada em Gênero: um Estudo de Intervenção e Avaliação de Impacto em Vários Países” (2008) e “Envolvendo os jovens para acabar com a violência contra mulheres e meninas no Brasil e na República Democrática do Congo” (2016-2017).

No ano de 2021, em homenagem às pautas trazidas pelo dia 25 de novembro, a ONU Mulheres criou a campanha “Una-se pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, realizada entre os dias 20 de novembro e 10 de dezembro. As ações buscaram reduzir as violências que se manifestam das formas: direta (agressão física), estrutural, psíquica, sexual (como o estupro, mutilação genital), obstétrica e política. Tais violações cresceram durante o período da pandemia de COVID 19, e merecem atenção nacional e internacional. De acordo com a ONU Mulheres (2021): “A pandemia exacerbou fatores de risco para a violência contra mulheres e meninas, incluindo desemprego e pobreza, e reforçou muitas das causas profundas, como estereótipos de gênero e normas sociais preconceituosas. Estima-se que 11 milhões de meninas podem não retornar à escola por causa da COVID-19, o que aumenta o risco de casamento infantil. Estima-se também que os efeitos econômicos prejudiquem mais de 47 milhões de mulheres e meninas vivendo em situação de pobreza extrema em 2021, revertendo décadas de progresso e perpetuando desigualdades estruturais que reforçam a violência contra as mulheres e meninas”.

Na América Latina, o alto índice de violências de gênero e feminicídios – que coloca a região como o lugar mais perigoso no mundo para as mulheres – também sofreu um acréscimo durante a pandemia (TRICONTINENTAL, 2020). Em um contexto de crise econômica e ascensão de governos de direita e extrema direita na região, as violências contra mulheres e outros grupos marginalizados aumentam em número e crueldade. Observa-se, na América Latina, uma alta instabilidade política e econômica, bem como um acirramento do conservadorismo religioso (principalmente neopentecostal) e do neoliberalismo. Nesse contexto, atores de distintos perfis ideológicos coincidem no desprezo aos direitos humanos e aos tratados internacionais assinados para a garantia de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ainda que o período anterior, marcado por governos de esquerda e centro esquerda, não tenha, necessariamente, promovido um avanço desses direitos, hoje vemos o fortalecimento da atuação de grupos conservadores religiosos e seculares. Assim, além da retirada de direitos de mulheres e outros grupos vulnerabilizados, presenciamos, em muitos países, a transformação de movimentos sociais em inimigos políticos. Como consequência, temos a deslegitimação de suas pautas e atos violentos dirigidos a ativistas (BIROLI et. al., 2020).

No Brasil, o projeto “Elas no Congresso” do Instituto AzMina, divulgou um levantamento das ações do governo de Jair Bolsonaro, constatando que os discursos misóginos, machistas, racistas e LGBTQIA+fóbicos do presidente de extrema-direita têm sido, de fato, colocados em prática. Em uma análise profunda de decretos, portarias, medidas provisórias, cartilhas de campanhas governamentais, direcionamento orçamentário, execução orçamentária e propostas legislativas, o AzMina concluiu que o ataque aos direitos das mulheres tem caracterizado as ações do atual governo.

Dentre essas ações, destacamos a perda de status ministerial por parte da antiga Secretaria de Políticas para Mulheres, a criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (cujos discursos restringem a concepção de “família” à família patriarcal e heteronormativa, também conhecida como “família triangular”: composta por pai, mãe e filhos, na qual a mulher deve desempenhar papéis de gênero tradicionais como cuidar da casa e dos filhos), e a extinção do programa “Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência” (que foi substituído pelo programa “Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos”). Também se destaca a má gestão dos recursos que seriam destinados às políticas voltadas para a promoção de direitos e oportunidades sociais para mulheres. Dados mostram que o governo deixou de usar um terço dos recursos aprovados entre 2019 e o primeiro semestre de 2021, uma cifra de quase R$ 400 milhões que poderiam ter sido gastos no combate à violência de gênero, incentivo à autonomia e saúde feminina.

Ainda que o panorama das lutas feministas mostrem um avanço de suas conquistas e impactos sobre a sociedade, os dados recentes deixam evidente que muitas ações e políticas públicas devem ser feitas. Nesse sentido, é importante refletir sobre o papel do Estado na promoção da igualdade de gênero. Essa questão é assunto do artigo “Reflexões acerca das raízes da violência contra as mulheres e a questão do Estado” (clique aqui para ler!).

 

* Mestranda em Paz, Defesa e Segurança Internacional pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e pesquisadora do IARAS – Núcleo de Estudos de Gênero do GEDES.

** Graduanda em Relações Internacionais pela UNESP, bolsista FAPESP (processo 2021/04480-3).

Imagem por: UN WOMEN.

 

[1] Sobre este tema, é importante ressaltar  que a ONU Mulheres da América Latina e Caribe publicou, em 2020,  o documento “Rumo à paridade e à participação inclusiva na América Latina e no Caribe”, o qual foi elaborado em preparação para a 65º Comissão da ONU sobre a Situação da Mulher (CSW), trazendo avanços e desafios sobre a participação das mulheres em espaços públicos. Além disso, em 2020, a ONU esquematizou um mapa sobre a participação das mulheres na política, o qual pode ser consultado pelo link: <https://lac.unwomen.org/en/digiteca/publicaciones/2020/03/women-in-politics-map-2020>. Acesso em dezembro de 2021.

 

A relação entre direitos humanos e segurança humana

 

Giovanna Ayres Arantes de Paiva*

Kimberly Alves Digolin **

 

No último dia 10 de dezembro celebramos o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A data foi estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1950, em referência à Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada dois anos antes. Mesmo após sete décadas, ainda enfrentamos grandes desafios relacionados à defesa dos direitos humanos em âmbito internacional. Como exemplo, podemos citar o tráfico de pessoas, o trabalho escravo, a desigualdade de gênero, a prisão e perseguição de ativistas, o assassinato e assédio de jornalistas, o desrespeito e perseguição a minorias religiosas.

Por vezes, tais questões são abordadas sob o viés da segurança, sobretudo por meio da chamada segurança humana, cujo objeto referente é o próprio indivíduo e suas necessidades. Entretanto, é importante compreender o arcabouço dos direitos humanos e sua associação com a segurança de modo crítico, questionando sua frequente instrumentalização em prol de interesses individuais por alguns atores internacionais. Para isso, sugerimos uma análise que considere a relação entre direitos humanos e segurança humana, destacando a forma como se complementam, mas também os possíveis desafios e críticas a esses paralelos.

Embora a noção de que os seres humanos possuem direitos inalienáveis já existisse há bastante tempo, o esforço de sistematização e reconhecimento internacional desses direitos ocorreu apenas no século XX, culminando na assinatura de tratados e também na maior incorporação dessa temática nas agendas de política externa dos Estados. A percepção de urgência para se criar um regime internacional sobre os direitos humanos ganhou escala após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o Holocausto e o posterior julgamento da Alemanha nazista mobilizaram as potências vencedoras em torno da proteção humana no Ocidente. Soma-se a isso o acentuado número de refugiados e apátridas observado nesse período. De modo geral, esses eventos deixaram latente que a responsabilidade de garantir tais direitos aos indivíduos não poderia ser apenas do Estado, pois eram palpáveis os casos de falha e violação. Era necessário um arcabouço internacional que estabelecesse normas e parâmetros gerais a serem seguidos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, portanto, é considerada esse pontapé inicial na formalização de um regime internacional sobre a temática, ainda que não tivesse força de lei. A partir dela podemos notar uma sequência de pactos e convenções no âmbito dos direitos humanos, como a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), entre outras.

Outro resultado desse movimento de caracterização do indivíduo como um ator do sistema internacional é uma mudança – ou talvez o mais adequado seja dizer uma ampliação – do foco nos debates sobre política internacional e, mais especificamente, sobre segurança internacional. Diferente das análises centradas apenas na figura do Estado, sobretudo a partir dos anos 1990 ganha força uma linha de pensamento que vai centrar sua análise na figura do indivíduo. Esse movimento foi reflexo de uma ampliação das dimensões da segurança, ocorrida ainda durante a década de 1980. Ou seja, deixa de se limitar ao âmbito militar de sobrevivência do Estado em um ambiente anárquico, e passa a incorporar aspectos de segurança societal e até ambiental (BUZAN; WÆVER; WILDE, 1998).

O conceito de “segurança humana” – que aparece pela primeira vez em um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 1994 – surge então em um contexto de busca por maior diversidade de atores na segurança e tem o seu nascimento em um programa das Nações Unidas que visava estabelecer um tipo específico de desenvolvimento humano após décadas de Guerra Fria e em meio a instabilidades e conflitos. Dessa forma, mais que um conceito, a segurança humana foi formulada como um guia para ações de segurança, sobretudo, nos países em desenvolvimento.

Em uma abordagem ampla, a noção de segurança humana envolve a garantia de que o indivíduo desfrute de todos os requisitos básicos para a dignidade e o desenvolvimento humano. Quando ele desfruta de segurança econômica, política, pessoal, alimentar, comunitária, ambiental e de saúde é possível afirmar que a segurança humana desse indivíduo está garantida (PAIVA, 2018).

Por um lado, trata-se de um conceito importante para se compreender os direitos humanos, porque nos ajuda a inserir problematizações específicas, principalmente no que se refere à discussão sobre oportunidades e bem-estar em uma perspectiva mais holística, que compreenda as várias faces do desenvolvimento humano. O fato de colocar o foco no indivíduo como objeto da segurança também é relevante, pois centra o ser humano como um ator significativo nas Relações Internacionais.

Por outro lado, a segurança humana é alvo de diversas críticas. Pelo fato de o conceito ser muito amplo e vago, o olhar para as particularidades humanas é prejudicado (PARIS, 2001). Apesar de exaltar o “humano”, não se coloca tanta ênfase em abordagens que seriam essenciais para se chegar a alguma dignidade humana, estabelecer equidade e reparar injustiças históricas – como uma análise mais aprofundada envolvendo questões de raça e gênero. Outra crítica é que, ao tratar questões humanas sob a lente da segurança, abre-se espaço para que intervenções arbitrárias sejam feitas mais em nome de interesses geopolíticos e menos em nome da proteção dos direitos humanos. Além disso, muitas vezes, a garantia desses requisitos básicos para a dignidade humana envolve soluções que deveriam passar mais pelo desenvolvimento de políticas públicas (por exemplo, políticas de saúde e educação) do que pelo caminho securitário (ARMIÑO, 2007; DUFFIELD, 2006).

O século XXI tem nos mostrado que a luta por direitos humanos é incompleta se não for acompanhada da desconstrução de estruturas sociais que perpetuam as desigualdades. A pandemia de Covid-19 explicitou e aprofundou o abismo entre ricos e pobres, principalmente na América Latina. A gestão da pandemia deixa evidente as desigualdades entre os países, em que os mais pobres ainda estão longe de ter uma cobertura vacinal ampla. Além disso, os impactos das mudanças climáticas – outro assunto urgente que requer ação internacional – incidem mais fortemente em comunidades marginalizadas. Tudo isso revela um falso humanismo e a normalização da injustiça social. Apesar de apontar para os diferentes aspectos que afetam a vida humana (como os níveis social, ambiental e econômico), a proposta de segurança humana não parece ter esse potencial de questionar estruturas, tampouco propor a emancipação dos indivíduos como agentes de mudança.

A noção de direitos humanos traz o desafio de pensar a coletividade sem apagar as diferentes necessidades que cada grupo humano possui, isto é, sem diluir as particularidades no “universal” ou no “humano”, ressaltando exclusões e desigualdades históricas que ainda não foram reparadas. Segundo Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. Mas temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades” (2003, p. 56).

Analisar a temática de direitos humanos, portanto, deve envolver uma estratégia de longo prazo para a prevenção do conflito e manutenção da paz, incluindo um olhar mais multidimensional sobre o que significa igualdade. Em suma, ao invés de considerar igualdade como um apagamento das diferenças, esse olhar crítico sobre os direitos humanos e os diversos níveis de segurança nos permite compreender que o problema em si não são as diferenças, mas sim as desigualdades. O problema está na instrumentalização dessas diferenças – de gênero, raciais ou culturais – para legitimar que algumas pessoas tenham menos acesso a determinadas oportunidades e direitos.

Esse olhar mais abrangente sobre o que é igualdade nos permite questionar se o conjunto de normas, convenções e mecanismos internacionais sobre direitos humanos tem alcançado seu papel transformador na política internacional ou se tem se resumido a uma interpretação retórica para legitimar interesses particulares. Ou seja, funciona apenas como uma justificativa retórica para legitimar eventuais ações por parte, especialmente, das grandes potências internacionais. Nesse sentido, existem diversas críticas a respeito desses documentos, apontando que eles compõem apenas um regime de “soft law”. Isto é, que funcionam para guiar e monitorar, mas não para garantir que essas normas sejam cumpridas, ou penalizar de modo efetivo as eventuais violações que possam ocorrer com todos os povos (REIS, 2006).

A partir de um olhar mais crítico sobre esse regime internacional dos direitos humanos, em conjunto com a noção de segurança humana e uma problematização mais profunda sobre igualdade, é possível não apenas uma análise mais abrangente sobre o processo de violência, mas também a elaboração de políticas e práticas mais eficientes no combate a esses diversos tipos de desigualdades que, muitas vezes, não passam necessariamente pelo campo da segurança. Especialmente quando consideramos que as últimas décadas vêm apresentando um movimento de maior complexidade nos conflitos internacionais e também de maior impacto sobre a população civil, esses debates se tornam cada vez mais latentes. É necessário levar em consideração essas reflexões sobre segurança e direitos humanos para que os próximos aniversários da Declaração Universal dos Direitos Humanos não sejam apenas simbólicos, mas sim reflexos de mudanças e avanços.

Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). E-mail: giovanna.aap@gmail.com.

Kimberly Alves Digolin é professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista. Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). E-mail: kimberly.alves.digolin@hotmail.com.

Imagem: Humanity wall. Por: Matteo Paganelli/Unsplash.

Referências bibliográficas:

ARMIÑO, Karlos. Pérez de. El concepto y el uso de la seguridade humana: análisis crítico de sus potencialidades y riesgos. Revista Cidob d’Afers Internacionals, n.76, p.59-77, dez. 2006-jan. 2007.

BUZAN; WÆVER; WILDE. Security: A New Framework for Analysis. Colorado: Lynne Rinner Publishers Inc., 1998.

DUFFIELD, Mark. Human Security: Linking Development and Security in an Age of Terror. In: KLINGEBIEL, S. (Ed.). New Interfaces between Security and Development: Changing Concepts and Approaches. Bonn: German Development Institute, 2006.

PAIVA, Giovanna A. A. Segurança Humana. In. SAINT-PIERRE, Héctor Luis; VITELLI, Marina Gisela (Orgs.). Dicionário de Segurança e Defesa. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

PARIS, Roland. Human Security: Paradigm Shift or Hot Air? International Security, v.26, n.2, p.87-102, outono 2001.

REIS, Rossana Rocha. Os direitos humanos e a política internacional. Revista Sociol. Polít., Curitiba, v. 27, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.