People_on_a_metro_station_during_Russian_invasion,_Kyiv,_2022

Consequências para as populações civis e os limites legais humanitários na guerra Rússia-Ucrânia

Beatrice Daudt Bandeira* 

Após meses de tensão nas relações Rússia-Ucrânia e aproximação das tropas russas das fronteiras do país vizinho, iniciou-se, no último dia 24 de fevereiro, uma guerra na Europa, autorizada pelo presidente russo, Vladimir Putin.  O ato, que é reconhecido por Putin como uma “operação militar especial”, gera reações e preocupações internacionais, além de efeitos potenciais para a política de segurança na Europa, bem como para a balança de poder mundial vigente. Para as populações presentes na Ucrânia, restam os custos da guerra: aumento generalizado de suas vulnerabilidades e baixas de civis. Cenário que deve se agravar conforme a escalada do conflito. O risco humanitário decorrente do uso da força em um conflito armado internacional é uma discussão fundamental, mas tradicionalmente deixada em segundo plano pelos combatentes. Em contraponto, sugerimos uma análise que se concentre nas consequências de hostilidades às populações civis na Ucrânia, discussão que se apoia nos relatos de organizações humanitárias e de direitos humanos internacionais, que estão atuando in loco, e que têm se preocupado com possíveis violações das leis internacionais da guerra pelos combatentes.

Os dilemas acerca da coexistência entre a Rússia e a Ucrânia são de longa data. A preocupação da Rússia com a Ucrânia consiste no temor de uma expansão ocidental para os países do leste-europeu e os espaços pós-soviéticos. O que, de fato, aconteceu com o estabelecimento de alianças entre os atuais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os esforços de consolidação da defesa, segurança e alcance da esfera de influência ocidental na região. Para contextualizar, em dezembro de 2021, a Rússia apresentou à OTAN e aos Estados Unidos um conjunto de exigências, entre as quais a garantia de que a Ucrânia não se junte à aliança militar, o que, caso concretizado, como alega Putin, seria uma ameaça crítica à dimensão política da segurança nacional russa. O acordo foi rejeitado.

A retórica russa versa sobre a preocupação de que a Ucrânia se torne, portanto, uma nação “anti-Rússia”. Além disso, os interesses russos na região partem, também, de perspectivas geopolíticas, bem como laços históricos comuns aos dois países e o elemento identitário. A Ucrânia está localizada em uma região estratégica de acesso ao Mar Negro pelo Porto de Sebastopol e Putin reconhece o país como vital para a preservação do nacionalismo e a unidade nacional russa – o idioma russo é, inclusive, falado na Ucrânia, principalmente no leste do país. O que, todavia, não serve em hipótese alguma como justificativa para as agressões que caracterizam o cenário atual.

Afora as possibilidades de resolução das controvérsias por meios diplomáticos, a medida prática de contenção adotada pelas autoridades do Ocidente (como o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e líderes da União Europeia) tem sido, até o momento, a imposição de sanções e pressões financeiras, inclusive penalidades a bancos russos, mas para as quais a Rússia parece ter se preparado, em maior ou menor grau. No âmbito da comunidade internacional, a Rússia, como um dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, exerce seu poder de veto sobre resoluções que condenem a invasão, como aconteceu no dia 25 de fevereiro.

Do ponto de vista do escopo legal e humanitário, diversas organizações internacionais têm buscado chamar atenção para a necessidade de que as forças ofensivas no conflito cumpram com as normas do Direito Internacional Humanitário sobre meios e métodos de guerra.  Pronunciaram-se acerca do tema: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, International Rescue Committee, Human Rights Watch (HRW), Anistia Internacional, além de agências das Nações Unidas, como Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), por exemplo.

À medida que a crise se prolonga, as vulnerabilidades das populações presentes na Ucrânia tendem a ser rapidamente agravadas assim como a dificuldade de suprir suas necessidades básicas o que terá impacto, especialmente, sobre grupos como os de crianças, mulheres, idosos e enfermos. Deve-se considerar que as ameaças à dignidade humana dos afetados por qualquer conflito armado são reais e urgentes. Lógica que serve para destacar os possíveis impactos humanos, sociais, psicológicos, políticos e financeiros no curto e longo prazo.

As longas filas de carros que deixam a Ucrânia evidenciam a situação dramática, marcada pela preocupação da população com sua segurança, pelo reconhecimento, por parte da Rússia, da integridade territorial do país e o inadiável apelo para o restabelecimento da paz. As consequências da guerra devem afetar o fluxo de deslocados internos (que já atinge o número de 160 mil) e de refugiados ucranianos: ao menos 875 mil pessoas que, apesar das condições meteorológicas, deixaram seu país desde o início da invasão russa com destino aos países vizinhos, Polônia, Moldávia, Romênia e Hungria. Tais números devem aumentar rapidamente nos próximos dias.

Para as comunidades que permanecem nas zonas de conflito (que têm recorrido às estações subterrâneas de metrô como abrigo contra bombas) está em jogo o acesso aos bens básicos de sobrevivência, como atendimento médico seguro e eficaz. E serão por elas testemunhados os impactos que ataques militares, quando feitos de forma indiscriminada – o que descumpre as leis da guerra, inclusive -, têm sobre infraestruturas civis essenciais, incluindo instalações de saneamento, distribuição de eletricidade e transmissão, bem como serviços de distribuição de alimentos e água, prédios habitacionais, hospitais e escolas. Tipo de ataque ilustrado pelas imagens de um míssil, disparado pela Rússia, que destruiu parte de um prédio residencial, na madrugada do dia 26, na cidade de Kiev, onde as  tropas ucranianas (e civis) defendem o país contra a escalada de violência por parte da Rússia, que tem como objetivo o controle político da capital e a ambição de derrubar o governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Até o momento, as consequências desta guerra para a população civil não têm sido suficientemente vislumbradas pelas partes políticas envolvidas. Organizações humanitárias e de direitos humanos internacionais, a exemplo da Anistia Internacional, a própria ONU e a HRW, citadas anteriormente, alertam para a preocupação com possíveis ataques que violem as leis internacionais. Destaca-se que o Direito Internacional Humanitário (ou leis da guerra), apesar de não proibir que a escalada de violência armada tenha lugar no espaço urbano, apresenta como obrigação legal e moral dos combatentes não realizar ataques deliberados e imprudentes que atinjam pessoas e infraestruturas civis. Além disso, o uso de arsenal, que inclui munições de fragmentação, também é proibido por sua capacidade de gerar danos generalizados a civis.

Relatos feitos por trabalhadores das organizações têm informado sobre a dificuldade do monitoramento da violência e de supostas violações do Direito Internacional Humanitário, que podem estar acontecendo por todo o país. A HRW, por exemplo, apurou um caso em que um míssil balístico russo, com munição de fragmentação, atingiu um hospital na cidade de Vuhledar. Como bem lembra a Anistia Internacional: “Alegações por parte da Rússia que apenas utilizam armas guiadas de precisão são manifestamente falsas”.

Conforme a ONU ao menos 136 civis (sendo 13 crianças) foram mortos até o dia 1 de março. Número que, assim como o de casos de feridos pelos ataques – registrado até o momento como sendo de 400 pessoas -, ainda permanece incerto. O Ministério da Saúde da Ucrânia estimou que, até o dia 27 de fevereiro, o número de vítimas foi de 352 civis mortos (sendo 14 crianças) e 1.684 feridos. A constante desinformação disposta em relatórios não oficiais, as dúvidas sobre a extensão da invasão russa, e a falta de segurança para que os profissionais humanitários realizem seus trabalhos devem contribuir diretamente para o agravamento da situação no país.

Enquanto Putin indica um posicionamento ainda mais agressivo, ao colocar em alerta as força nucleares do país, a comunidade internacional permanece buscando mecanismos de sanção na tentativa de minar a incursão russa sobre o país vizinho. Protestos pró-Ucrânia e em solidariedade às vítimas têm sido registrados ao redor do mundo, inclusive no Brasil. No escopo do humanitarismo internacional, as organizações pedem, de forma urgente, para que as partes ofensivas reconheçam e ofereçam garantias – e demonstrem tal compromisso na prática – de que trabalhadores humanitários, pessoas e instalações civis não serão alvos.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Seus interesses de pesquisa incluem as áreas de ação humanitária e análise de conflitos armados internacionais. Contato: beatricedaudtb@gmail.com.

Imagem: Pessoas se abrigam no metro de Kiev, 2022. Divulgado por: Wikimedia Commons.

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