[elementor-template id="5531"]

Quinto mandato de Putin consolida apoio ao Sul Global: ‘Rússia mais protagonista’

No dia 24 de março de 2024, o pesquisador Tito Pereira, membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), participou de uma análise para a Opera Mundi sobre os resultados da eleição presidencial na Rússia, que resultaram na reeleição de Vladimir Putin para o quinto mandato. Tito Pereira, geógrafo e mestre em estudos estratégicos da defesa e segurança, destacou que a vitória de Putin deve consolidar um fortalecimento da posição da Rússia no Sul Global, com um enfrentamento direto à hegemonia geopolítica do Ocidente.

Para acessar a notícia, clique aqui: Quinto mandato de Putin consolida apoio ao Sul Global: ‘Rússia mais protagonista’

#316 Eleição na Rússia: como será o próximo mandato de Putin?

No dia 18 de março de 2024, o pesquisador Tito Lívio Barcellos Pereira, membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), participou de um episódio do podcast para discutir a reeleição de Vladimir Putin como presidente da Rússia.

Com 87,28% dos votos, Putin venceu mais uma eleição presidencial, marcando 24 anos consecutivos no poder. Durante o episódio, Tito Lívio analisou:

  • O contexto político e econômico da Rússia antes do primeiro mandato de Putin, em 2000.
  • Os fatores que contribuem para sua popularidade contínua entre os eleitores russos.
  • As implicações de sua reeleição para a política interna e externa da Rússia.
  • Os possíveis rumos do novo mandato de Putin.

O episódio também contou com a presença de especialistas, incluindo João Cláudio Pitillo (analista internacional e historiador), Lola Melnyck (jornalista russa-ucraniana) e Vera Gers Dimitrov (advogada e mestra em direito político e econômico).

Para ouvir o episódio, clique aqui: #316 Eleição na Rússia: como será o próximo mandato de Putin?

As relações Rússia-Otan (1991-2023): um breve panorama histórico

Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

Trinta e dois anos após a dissolução da União Soviética, observamos o reposicionamento dos 15 países que compunham o bloco, em diferentes contextos e níveis de aproximação ou distanciamento, em relação ao chamado mundo ocidental liderado pelos Estados Unidos. Em específico, a Rússia, oficialmente o Estado sucessor da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), possui um delicado e complexo relacionamento com o assim chamado Ocidente. Nesse sentido, o objetivo do presente texto é apresentar um breve panorama sobre o desenvolvimento das relações entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em específico no que se refere aos temas de Segurança Internacional.

Em 1º de julho de 1991, antes mesmo da dissolução oficial da URSS, teve fim o Pacto de Varsóvia (PV), aliança militar criada em 14 de maio de 1955, durante o governo do líder soviético Nikita Kruschev. A aliança, composta por URSS, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia, Romênia e Albânia (até 1968), fora, sobretudo, uma reação à adesão da antiga Alemanha Ocidental, naquele mesmo ano, à aliança militar ocidental criada em 1949. É nesse contexto que se encontra um dos germes do que viria a ser uma das principais críticas de Moscou aos líderes ocidentais. 

Em 1990, durante o processo de reunificação da Alemanha, um encontro entre o Secretário de Estado dos EUA, James Baker, e o líder soviético, Mikhail Gorbachev, gerou discussão, que perdura até os dias atuais. Conforme a perspectiva dos soviéticos –  alegada pelos russos, como visto por Putin em sua mais recente entrevista com o jornalista estadunidense Tucker Carlson – Baker teria dito à Gorbachev que a OTAN não expandiria “nem um centímetro a mais para o leste”, após o governo soviético ter concordado em retirar suas tropas do território da Alemanha Oriental. A frase foi tema de disputas de narrativas desde então, mas uma série de documentos desclassificados comprovam reiteradas garantias de Baker na conversa com Gorbachev e outros memorandos e comunicações entre líderes europeus que indicariam aos soviéticos que a OTAN não iria incorporar mais Estados à leste. Ademais, a própria continuidade da existência da OTAN sempre foi vista pela Rússia como incongruente no contexto pós-Guerra Fria, uma vez que a aliança havia sido criada justamente para fazer frente à ameaça da União Soviética. Assim, não teriam motivos que justificassem a manutenção do bloco.

Não obstante, as possibilidades de cooperação entre Rússia e os países da OTAN se abriram, sobretudo durante o primeiro mandato de Boris Yeltsin. Assim, algumas iniciativas surgiram nessa direção, tais como: o Conselho de Cooperação Norte-Atlântico (NAAC, na sigla em inglês), criado em 1991  e mais tarde substituído pelo Conselho de Parceria Euro-Atlântico (EAPC, na sigla m inglês), em 1997, e a Parceria para a Paz (PfP, na sigla em inglês), em 1994. Estas iniciativas, ainda existentes, buscavam, como objetivo último, estabelecer uma base de diálogo para promover a confiança e a cooperação bilateral em assuntos militares entre os países da OTAN e os países não-membros da aliança na Europa e Ásia Central, muitos deles ex-repúblicas soviéticas. Além destas iniciativas, a participação de tropas russas em missões de peace enforcement (IFOR, 1995-1996) e peacekeeping (SFOR, 1996-2004) na Bósnia e no Kosovo (KFOR, desde 1999), sob liderança de tropas da OTAN, foram amostras da tentativa de aproximação e cooperação entre o novo Estado russo com o Ocidente. Por último, a assinatura do Ato Fundador em 27 de maio de 1997, no qual havia o reconhecimento mútuo do status de não-adversário entre as partes e a definição de princípios como o interesse comum, reciprocidade, transparência e o conceito de segurança indivisível, materializado na instituição do Conselho Permanente OTAN-Rússia, parecia ser mais um elemento que colocaria fim na lógica de dois inimigos da Guerra Fria. 

Entretanto, dois eventos do ano de 1999 podem ser entendidos pontos de virada na relação entre as partes: o bombardeio da OTAN contra as tropas sérvias durante a Guerra do Kosovo e a segunda expansão da aliança após a Guerra Fria, com a adesão da Tchéquia, Polônia e Hungria, todas ex-repúblicas soviéticas. Críticas foram feitas pelo governo russo à forma como tropas ocidentais intervieram no conflito contra o governo de Belgrado, histórico aliado da Rússia, ainda mais sem a aprovação ou anuência do Conselho de Segurança da ONU (CSNU). Soma-se a isso, o novo conceito estratégico publicado pela OTAN, em 24 de abril de 1999, o qual estabelecia a possibilidade de intervenção da aliança mesmo que não em defesa de um membro que sofrera um ataque, conforme estabelecido no Artigo 5º de seu documento fundador. Além disso, o documento deixava em aberto a possibilidade de futuro alargamento a qualquer país interessado. Como resultado, o governo russo passou a ver menor possibilidade de cooperação com o Ocidente, e a entender que seus interesses não seriam levados em consideração devido à desproporcionalidade das relações de forças militar e econômica entre Moscou e o bloco liderado por Washington. 

Na virada do século, a rápida aproximação de Putin com George W. Bush na esteira dos ataques de 11 de setembro parecem ter sido, novamente, uma tentativa de mostrar a potência russa como possível parceiro estratégico dos EUA na condução das políticas de segurança internacional. Pouco tempo depois, no entanto, novos episódios trouxeram ao Kremlin a dúvida sobre a disposição estadunidense de levar em consideração os interesses russos. A Guerra do Iraque (2003), cuja invasão da coalizão liderada pelos EUA não fora aprovada pelo CSNU; a retirada dos EUA dos Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), em vigor desde de 1972; e uma nova rodada de expansão da OTAN, em 2004 – com a adesão de Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Letônia, Lituânia, novamente todas ex-repúblicas soviéticas ou países membros do Pacto de Varsóvia – demonstraram a Putin que o contexto internacional pós-Guerra Fria era, sem dúvida alguma, marcado pela unipolaridade estadunidense e falta de capacidade russa de defender seus interesses ou participar de um concerto global da segurança internacional. Por fim, as chamadas Revoluções Coloridas que depuseram governos mais próximos a Moscou na Geórgia (2003), na Ucrânia (2004) e no Quirguistão (2005), contribuíram para o entendimento do governo russo de que o objetivo final do Ocidente era minar qualquer capacidade de influência russa no seu entorno geográfico. Todas essas críticas foram expostas e principalmente marcadas pelo célebre discurso de Putin na Conferência de Munique, em 2007. 

Depois de 2007, uma série de eventos se avolumaram para contribuir com a piora das relações entre Rússia e os países da OTAN. Através de suas incursões militares na Guerra da Geórgia (2008) e na Guerra da Síria (2011 – atualmente) em defesa do governo de Bashar al-Assad e em lado oposto ao apoio dado pelos EUA aos rebeldes sírios, bem como a anexação da Crimeia pela Rússia (2014), Moscou demonstrou que  não mais hesitaria em empregar suas forças armadas para fazer valer seus interesses em oposição aos interesses de norte-americanos e europeus. Em paralelo a este cenário, a divulgação de novos documentos oficiais de defesa e política externa da Rússia evidenciaram o aumento da insatisfação de Moscou com a contínua expansão do bloco ocidental e a definição da OTAN como principal ameaça ao país

De 2009 a 2020, outras três rodadas de expansão da OTAN incluíram a adesão de Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. Da perspectiva russa, a promessa feita pelos líderes ocidentais a Gorbachev estava claramente sacrificada. Não somente houve uma expansão à leste, como também uma incorporação considerável de novos Estados que anteriormente estavam sob influência de Moscou. Por fim, a invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 e a continuidade da guerra parecem ter colocado um fim, ao menos no presente momento, de qualquer possibilidade de cooperação entre Moscou e o bloco com sede em Bruxelas. Evidência principal dessa afirmação são as adesões de Finlândia e Suécia, tradicionais países neutros, à OTAN. 

De tal forma, a indefinição sobre as possibilidades de cooperação entre Rússia e OTAN caracterizadas pelo otimismo e institucionalização de iniciativas nos anos 1990 foi, ao longo do tempo, dando espaço a uma crescente certeza do status de adversários geopolíticos com interesses divergentes até chegar em seu momento mais crítico com a Guerra da Ucrânia. Nesse sentido, o questionamento sobre a validade da manutenção da OTAN enquanto aliança militar que fora criada na lógica da Guerra Fria é, ao mesmo tempo, a origem dos confrontos indiretos entre as duas partes e a justificativa para sua continuidade em meio a um cenário politicamente conturbado e marcado por guerras. 

 

*Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (Unesp/Unicamp/Puc-Sp). Bolsista FAPESP. Pesquisa na área de Defesa e Segurança, com enfoque na reestruturação militar russa pós-soviética como instrumento de projeção de poder e a política russa para o Ártico. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, campus de Franca – SP). Pesquisador e membro-fundador do CIRE (Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético).

Imagem: History of Nato enlargement. Por: Creative Commons 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMEIDA NETO, Getúlio. Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar. Disponível em: https://gedes-unesp.org/manifesto-moscou-o-conceito-de-politica-externa-russa-de-2023-urge-um-mundo-multipolar/. Acesso em: 14 fev. 2024.

CARLSON, Tucker. Exclusive: Tucker Carlson Interviews Vladimir Putin. Youtube, 8 de fev. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fOCWBhuDdDo&t=3s. Acesso em: 11 mar. 2024

NATIONAL SECURITY ARCHIVE . NATO Expansion: What Gorbachev Heard. Disponível em: https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early. Acesso em: 14 fev. 2024.

NATO. The Alliance’s Strategic Concept (1999). 24 April 199. Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_27433.htm. Acesso em: 14 fev. 2024.

NATO. Topic: Euro-Atlantic Partnership Council. Disponível em:https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_49276.htm. Acesso em: 14 fev. 2024

NATO. Topic: Partnership for Peace programme Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_50349.htm. Acesso em: 14 fev. 2024

PRESIDENT of Russia. Speech and the Following Discussion at the Munich Conference on Security Policy. 10 Feb. 2007. Disponível em: http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034. Acesso em: 14 fev. 2024.

 

The 2014 Russian Invasion of Crimea: Identity and Geopolitics

O artigo de Alexandre Fuccille e Danielle Makio, membro do CIRE, examina os motivos geopolíticos e identitários por trás da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. A pesquisa revela como o projeto político de Vladimir Putin se aprofundou em sua rivalidade com o Ocidente e no uso da memória histórica para fortalecer a posição da Ucrânia na agenda russa. A expansão da OTAN e o papel da identidade estatal são elementos chave na análise, que pode ser acessada integralmente no artigo completo.

Todo mundo quer um cisne negro

                                                                                   Getúlio Alves de Almeida Neto*

 

No último 23 de junho fomos pegos de surpresa por uma rebelião do Grupo Wagner, um corpo paramilitar liderado por Yevegny Prigozhin, parte importante das forças russas na Guerra na Ucrânia e também atuante em conflitos na África. O motim de aproximadamente 24 horas transcorreu a partir do avanço dos soldados do grupo Wagner ao interior do território russo, levando à tomada da cidade de Rostov-on-Don e à marcha que aproximou as tropas lideradas por Prigozhin do sul de Moscou com o intuito – até onde se sabe – de depor Sergei Shoigu, Ministro da Defesa, e Valery Gerasimov, Chefe do Estado-Maior e Comandante das forças russas na Guerra da Ucrânia. O vislumbre de que um golpe de Estado contra Vladimir Putin estaria em curso ocasionou um enorme espanto devido ao seu caráter totalmente imprevisível e até mesmo impensável. As análises que sucederam ao evento, encerrado após um acordo com o intermédio do Presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, e cujos detalhes ainda são desconhecidos, apontam com frequência que o motim é um sinal do enfraquecimento de Putin e de que seu governo estaria próximo do fim. O texto a seguir discute as análises que repercutiram os eventos e os potenciais desdobramentos envolvendo o Grupo Wagner. Devido à imprevisibilidade do que aconteceu – ou teria acontecido – o conceito de Cisne Negro, criado por Nassim Taleb, em 2007, parece interessante para análise crítica quanto a nossa percepção do evento.

Em 2007, o escritor libanês Nassim Taleb publicou o livro “A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável”, que teve grande repercussão entre economistas. Na obra, Taleb define o conceito de Cisne Negro como um evento que possui três características: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, são geradas explicações que buscam dotá-lo de sentido e possibilitar sua compreensão, como se tivesse sido possível que já prevíssemos sua ocorrência. Acima de tudo, o livro é uma crítica à forma como nós, enquanto humanos, temos a tendência de não estarmos preparados para eventos que parecem à primeira vista impossíveis. Dessa maneira, buscamos nos aprofundar em uma área do conhecimento e traçar generalizações e padrões que nos fecham para o mundo do improvável em favor da racionalidade e da lógica que impomos ao nosso objeto de estudo, e que nos faça capazes de prever acontecimentos futuros e controlarmos os riscos. Como resultado, impomos ao mundo uma ordem organizadora maior do que ele realmente possui.

Dois anos após o lançamento do livro, o cientista político Robert Jervis (2009) publicou um artigo sobre as possibilidades e limitações do uso do conceito de Cisne Negro para o campo da política, sobretudo da política internacional. Jervis considera que o conceito parece ter sido bem aceito – pelo menos à época de seu texto – já que a história do século XX gira em torno de duas grandes guerras mundiais e da Guerra Fria, cujas características de imprevisibilidade e impactos que causaram, sendo caracterizados por historiadores como “pontos de virada”, se assemelhariam ao conceito de Cisne Negro de Taleb. Ainda que o autor conceda a Taleb uma razoabilidade em sua linha argumentativa quanto a estes eventos, afirma que não é fácil de determinar se um evento no passado foi ou não antecipado. Para Jervis, ainda que surpreendentes, não foram inteiramente imprevisíveis.

A partir da definição de Taleb sobre Cisne Negros, Jervis argumenta que esta seria parcialmente vaga. Um evento em particular pode ser analisado como um Cisne Negro para um observador, enquanto para um outro faz sentido em alguma medida. Por meio de exemplos, a contra-argumentação de Jervis é afirmar que, enquanto alguns eventos históricos da política internacional podem ser considerados claramente pontos de virada, não constituem um Cisne Negro. No campo da ciência política, em específico, Jervis (1997) cita a existência de um sistema – a tese de sua obra principal – cujas interconexões são tão numerosas e diversas que traçar um caminho entre causa e efeito se torna uma tarefa extremamente complicada mesmo após a ocorrência do evento, tornando-se ainda mais complexa de fazê-lo a priori do evento. Isso decorre do fato e que o impacto causado entre as variáveis que compõe o sistema e suas respostas geram importantes não-linearidades.

A partir de sua perspectiva da psicologia política, Jervis (2009) considera que o comportamento humano é influenciado por expectativas que podem produzir profecias autorrealizáveis ou negá-las por antecipação. Assim, afirma que a ocorrência ou não de um Cisne Negro pode depender da forma como as pessoas reagem ao sinal do que é possível. Em alguns casos, o fato de que algo não aconteceu é utilizado para indicar que sua ocorrência é impossível e que, portanto, os cálculos prévios de risco estavam corretos e não precisam ser alterados. Nessa lógica, a ocorrência de um Cisne Negro só se dá se for inesperada. Se for antecipada, os atores irão se comportar de forma diferente e o evento não ocorrerá.  Por fim, a principal dúvida de Jervis quanto à possibilidade de aplicarmos o conceito de Cisne Negro para a política internacional é em razão da sugestão de Taleb de evitarmos projeções de longo prazo. Nesse caso, o autor se questiona, por exemplo, como seria possível a gestão de uma política estadunidense em relação à China que não se baseie em teorias – ainda que advirta para os riscos de sermos excessivamente orientados pela teoria – para prover expectativas quanto ao comportamento chinês ao longo dos anos. Assim, saber que em algum momento um Cisne Negro ocorrerá, não nos diz nada sobre como agir frente a ele ou simplesmente pensar sobre ele.

Na conclusão de Jervis está o cerne do meu argumento sobre os acontecimentos do último final de semana na Rússia e em relação às inúmeras análises feitas desde então. Citando o autor: “Enquanto devemos explicar o máximo que pudermos, não devemos forçar o nosso conhecimento para além do que ele pode ir. […] a melhor resposta para muitas perguntas é ‘eu não sei’. […] saber de algo que já aconteceu não nos informa sobre o que acontecerá no futuro” (JERVIS, 2009, p. 488, tradução nossa).

Nesse sentido, meu ponto central é que a maioria das análises que se avolumaram a partir do grande espanto causado pelo motim do Grupo Wagner tendem a observar o fenômeno como um claro indício de que Vladimir Putin está enfraquecido e que o fim de seu governo está próximo. Não obstante, uma outra leitura sobre os fatos de que a aparente rebelião foi desmantelada num espaço de 24 horas; seu líder, Yevgeny Prigozhin, está em aparente exílio em Belarus; o general russo Sergey Surovikin teve sua participação descoberta e está preso; e há a previsão de incorporação dos combatentes do Grupo Wagner ao Ministério da Defesa Russo como soldados voluntários poderia indicar que Putin, a depender da forma como reagir aos acontecimentos, pode sair politicamente menos enfraquecido do que se imagina, ou ao menos buscar uma demonstração de força na repressão contra aqueles que desafiam seu poder.

Aventarmos a possibilidade de queda de seu governo, após 23 anos como presidente ou primeiro-ministro, a partir de uma rebelião causada um grupo militar privado sem – pelo menos a princípio – apoio da maioria da sociedade civil e dos militares russos pouco nos diz sobre a real probabilidade que algo tão surpreendente possa ocorrer. Ademais, as repercussões negativas que a guerra na Ucrânia pode causar na sociedade russa e os impactos disso na popularidade de Putin já são discutidos muito antes da rebelião do Grupo Wagner. De fato, a acusação de que há forças externas e internas que buscam desestabilizar seu governo faz parte do discurso de Putin e do pensamento militar russo há, pelo menos, uma década. Na ocasião de uma improvável derrubada do Presidente russo, considero a marcha do Grupo Wagner apenas um elemento entre outros que poderiam auxiliar na explicação dos fatos. Mas, correndo o risco de ser enganado pelos desenvolvimentos a seguir, não consideraria a causa, nem um ponto de virada, muito menos um evento Cisne Negro que colocou fim ao governo de Vladimir Putin.

Por fim, a enorme expectativa gerada foi bem descrita por Chen Qingqing como um “wishful thinking” do Ocidente de que uma imprevisível queda de Putin poderia levar a um fim mais rápido da Guerra da Ucrânia com resultados favoráveis aos defensores, um conflito que não dá sinais de um fim próximo em meio a um impasse militar em solo ucraniano. Em suma, e compartilhando da perspectiva de Jervis, esperar por um Cisne Negro não nos diz nada sobre como agir no momento ou como compreendermos a complexidade dos fatos. Uma análise baseada no histórico de repressões a opositores de Putin me faz acreditar que temos mais motivos para acreditar que ele não cairá tão cedo do que o contrário. O que ocorrerá, no entanto, ninguém pode saber.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

Imagem: Tanque com flores durante o motim de 24 de junho de 2023. Por: Fargoh/ Wikkimedia Commons.

 

REFERÊNCIAS

CHERNOVA, Anna. Kremlin diz que combatentes do Grupo Wagner retornarão à base e assinarão contratos com militares. CNN Brasil. 24 jun. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/kremlin-diz-que-combatentes-do-grupo-wagner-retornarao-a-base-e-assinarao-contratos-com-militares/. Acesso em: 30 jun. 2023

FIX, Liana; KIMMAGE, Michael. The Beginning of the End for Putin? Foreign Affairs, 27 June 2023. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/russian-federation/beginning-end-putin-prigozhin-rebellion. Acesso em: 30 jun. 2023.

JERVIS, Robert. Black Swan in Politics. Critical Review, v. 21, n. 4, pp. 475-489, 2007. DOI: 10.1080/08913810903441419

JERVIS, Robert. System Effects: Complexity in Political and Social Life. Princeton: Princeton University Press. 1997.

QINGQING, Chen. Wagner’s revolt weakening Putin’s authority ‘wishful thinking’ of the West: experts. Global Times. 25 June 2023. Disponível: https://www.globaltimes.cn/page/202306/1293134.shtml. Acesso em: 30 jun. 2023.

TALEB, Nassim N. A lógica do Cisne Negro: o impacto do altamente improvável. 2ª Edição. Editora Objetiva. 2021.

 

Pesquisador da Unesp analisa pontos sobre as ameaças entre Grupo Wagner e o governo de Vladimir Putin

No dia 26 de junho de 2023, o pesquisador Getúlio Alves de Almeida Neto, membro do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE), participou do podcast Pod Mundo e Política, da UNESP, para analisar as tensões entre o Grupo Wagner e o governo do presidente russo Vladimir Putin.

Durante o episódio, Getúlio trouxe uma visão detalhada sobre:

  • Os embates recentes envolvendo o grupo paramilitar Wagner e o Kremlin.
  • As ameaças de insubordinação lideradas por Yevgeny Prigozhin, chefe do Grupo Wagner.
  • O impacto dessas tensões na política interna da Rússia e na estratégia militar do país.
  • As reformas militares russas e as implicações para a segurança internacional.

Getúlio, que também é membro do Observatório de Conflitos do GEDES e doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), utilizou sua experiência em pesquisas sobre estratégias e reforma militar russa para fornecer uma análise aprofundada do tema.

Para ouvir o episódio, clique aqui: Pesquisador da Unesp analisa pontos sobre as ameaças entre Grupo Wagner e o governo de Vladimir Putin

Manifesto Moscou: o Conceito de Política Externa russa de 2023 urge um mundo multipolar

Getúlio Alves de Almeida Neto*

Em 31 de março, foi publicado pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia a nova edição do documento intitulado “Conceito de Política Externa da Federação Russa”.[1] Trata-se da quinta versão do documento, após as publicações em 2000, 2008, 2013 e 2016. Em conjunto com outros documentos como a Doutrina Militar e o Conceito de Segurança Nacional da Federação Russa, o Conceito de Política Externa visa a comunicação com o público doméstico e, sobretudo, externo. Em relação ao segundo, o conjunto de documentos expõe a visão da Rússia sobre o sistema internacional, as principais ameaças e riscos definidos pelo governo para a segurança nacional do país, bem como delimita a forma de reação a estas ameaças. Ao publicar tais documentos, o Kremlin busca dotar de previsibilidade seus princípios de política externa e política de defesa. Em última análise, pode-se compreendê-los como um elemento de dissuasão da política externa russa. Nesta pequena análise, o objetivo é destacar alguns pontos de mudanças nas publicações do Conceito de Política Externa ao longo dos anos e tendo em vista o cenário atual marcado pela Guerra da Ucrânia e por perspectivas de transição hegemônica em curso no sistema internacional.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, desde a primeira versão do Conceito de Política Externa (RUSSIA, 2000) algumas linhas centrais permanecem constantes, auxiliando na compreensão da visão russa sobre o sistema internacional. Entre estas, destacam-se cinco elementos fundamentais: 1) a defesa pelo respeito ao Direito Internacional e às normas internacionais; 2) a supremacia do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) como órgão de resolução de conflitos; 3) a busca em evitar a escalada armamentista convencional e nuclear; 4) o respeito entre os interesses das potências e a não interferência em questões domésticas; 5) a crítica à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para regiões próximas à fronteira russa.

Destarte, o que se evidencia nas diferentes versões do Conceito de Política Externa é, em maior medida, uma mudança no tom adotado em suas disposições, ora mais otimista, ora mais pessimista e reativa; a forma como interesses e ameaças são definidos de maneira mais ou menos implícita; e o modo como o governo enxerga o papel de grande potência a ser exercido pela Rússia. Nessa perspectiva, observam-se algumas alterações ao longo de suas quatro primeiras edições.

No documento de 2000, destacam-se sobretudo o caráter mais pragmático quanto à possibilidade de cooperação no âmbito do Conselho Rússia-OTAN, criado em 1997, apesar da ressalva quanto à incongruência entre as diretrizes políticas e militares da aliança militar ocidental com os interesses securitários russos (RÚSSIA, 2000). Em específico, o documento apresentava o posicionamento russo contrário ao uso da força sem autorização do Conselho de Segurança da ONU em nome do uso de conceitos como “intervenção humanitária” e “soberania limitada”, em uma clara alusão ao bombardeio da OTAN na Guerra do Kosovo, em 1999. Por fim, cabe destaque ao fato de que, já em 2000, o Conceito de Política Externa ressaltava a autopercepção russa quanto ao seu status de grande potência e definia como objetivo o estabelecimento de uma ordem multipolar que levasse em conta a variedade de interesses dos Estados nas relações internacionais.

Em sua segunda edição, publicada em julho de 2008 – portanto um mês antes da Guerra da Geórgia – o documento não apenas explicitava o desejo russo por uma nova ordem internacional multipolar, mas já afirmava o início da derrocada do modelo internacional dominado pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria (RÚSSIA, 2008). Nesse sentido, destacava-se a crítica ao modelo de alianças políticas e militares – novamente em referência à OTAN – quanto a sua capacidade de lidar com os desafios securitários contemporâneos, além de uma nova crítica ao projeto de expansão da aliança militar ocidental e as negociações para adesão de Geórgia e Ucrânia. Não obstante, a Rússia ainda se mostrava disposta a cooperar no contexto do Conselho Rússia-OTAN, desde que com base no reconhecimento dos interesses das potências.

A versão de 2013 aprofundava o posicionamento russo quanto a sua percepção do fim da hegemonia estadunidense no sistema internacional, que passava a dar lugar para o surgimento de novos polos de poder, sobretudo na região Ásia-Pacífico. Em razão do declínio de seu poder relativo, o Ocidente – segundo a perspectiva russa – iria usar de medidas para manter seu poder, que por consequência tornaria o sistema internacional mais instável (RÚSSIA, 2013).

Entre a publicação do documento em 2013 e a sua quarta edição, em 2016, houve a anexação da Crimeia, em 2014, um movimento crucial da política externa russa para os desdobramentos que levaram ao atual estado das relações entre Rússia e o Ocidente. Dois anos após o ocorrido, o Conceito de Política Externa da Federação Russa pela primeira vez apontava explicitamente para a emergência de um sistema multipolar e novos modelos de desenvolvimento. Nesse sentido, além de uma disputa entre Estados no campo político, militar e econômico, o posicionamento do governo russo identificava a concorrência entre diferentes modelos na dimensão civilizacional, criticando a tentativa de imposição de valores entre as partes. Dessa forma, a busca do Ocidente de impor seu modelo ao redor do globo e impedir a ascensão de novos polos de poder seria o principal motivo para a instabilidade internacional.

A principal diferença entre o documento de 2016 e as versões anteriores, no entanto, foi a menção explícita aos Estados Unidos, no trecho que se segue:

[…] a Rússia não reconhece a política dos Estados Unidos de jurisdição extraterritorial para além dos limites da lei internacional e considera inaceitável tentativas de exercer pressões militares, políticas, econômicas, ou de qualquer outra natureza, e se reserva o direito de responder firmemente a ações hostis, incluindo o reforço de sua defesa nacional e tomando medidas retaliatórias ou assimétricas. (RÚSSIA, 2016, quarta seção, artigo 72, tradução nossa).

Nesse contexto, o Conceito de Política Externa de 2023 tem como principal diferença em relação às versões anteriores o seu caráter de manifesto que, pela primeira vez, assinala de maneira desvelada o projeto russo de estabelecimento de uma nova ordem mundial. Ainda que nas duas últimas versões já fosse possível identificar claramente a insatisfação russa com o modelo atual de configuração de forças, a versão de 2023 torna-se claramente mais propositiva e otimista em relação à capacidade russa de se estabelecer como polo de poder e à possibilidade e vontade de outros Estados do sistema internacional de se unirem em um projeto que busque repensar a estrutura política, econômica e securitária global. Destaco, a seguir, quatro pontos principais de análise que se relacionam com este objetivo.

Em primeiro lugar, há a defesa do fim da hegemonia do dólar como meio de pagamento internacional e moeda de reserva, ainda que o documento não cite de maneira explícita o nome da moeda estadunidense, como se vê nas passagens abaixo:

“[…] O facto de alguns países abusarem da sua posição dominante nalgumas áreas fomenta os processos de fragmentação da economia global e as desigualdades no desenvolvimento dos países. Novos sistemas de pagamento nacionais e transfronteiras estão a ganhar forma, há um interesse crescente em novas moedas de reserva internacionais e estão a surgir motivos para a diversificação dos mecanismos de cooperação económica internacional” (RÚSSIA, 2013, artigo 10, p. 4).

“[…] adaptar o comércio e os sistemas monetários globais às realidades de um mundo multipolar e às consequências da crise da globalização económica para, antes de mais nada, reduzir a capacidade dos países hostis de abusar do seu monopólio ou da sua posição dominante nalguns sectores da economia mundial e aumentar a participação dos países em desenvolvimento na gestão econômica global” (RÚSSIA, 2013, artigo 39, p. 17).

O segundo ponto de destaque é a menção a uma série de iniciativas multilaterais, fóruns e organizações que engloba o relacionamento com Estados em todos os continentes, dando ênfase sobretudo à África e Ásia, regiões nas quais a influência relativa dos Estados Unidos tem diminuído, tais como o Fórum de Parceria Rússia-África e a Grande Parceria Eurasiática. Além disso, o Conceito de Política Externa define como uma área prioritária o fortalecimento do papel internacional de instituições e organizações nas quais a Rússia possui participação significativa, como os BRICS, Organização de Cooperação de Xangai (OCX), Comunidade de Estados Independentes (CEI), União Econômica Eurasiática (UEE), Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), e RIC (Rússia, Índia, China). Por fim, destaca-se a menção à iniciativa do “Conceito russo de segurança coletiva no Golfo Pérsico”, proposta na qual a Rússia se vê como ator facilitador da retomada de normalidade das relações entre os países do Oriente Médio. Ao longo do texto há, de maneira velada, o principal argumento utilizado pelo governo russo no que tange à diferença entre o relacionamento dos países com Moscou e Washington: a não interferência em assuntos domésticos e relativos à estabilidade dos regimes políticos.

O terceiro tema cuja importância é ressaltada nesta análise se refere à menção explícita dos Estados Unidos como principal fonte de ameaça à segurança da Rússia, citando de maneira aberta a OTAN apenas uma única vez. Nesse sentido, a Rússia passa a definir o Ocidente não como um bloco monolítico que busca estabelecer um projeto hegemônico, mas como uma constelação dos Estados Unidos e “seus satélites”, os quais podemos inferir, principalmente, a Europa. Nesse sentido, o espaço no texto dedicado à Europa é breve e direto. No artigo 49, o documento afirma que as complicações nas relações entre Rússia e Europa se devem às concepções estratégicas e ao fomento de uma política antirrussa por parte dos Estados Unidos, que acaba por limitar a soberania dos países europeus em nome de seu projeto hegemônico. No artigo 61, o governo russo faz um convite à cooperação com países europeus ao colocar sobre eles a responsabilidade de:

     […] perceberem que não existe alternativa à coexistência pacífica e cooperação mutuamente vantajosa em pé de igualdade com a Rússia […] isso terá um impacto benéfico na segurança e bem-estar da região europeia e ajudará os países europeus a ocupar um lugar condigno na Grande Parceria Eurasiática e no mundo multipolar. (RÚSSIA, 2023, p. 30-31)

Por fim, o principal destaque em relação ao Conceito de Política Externa de 2023 está em relação ao foco dado ao processo em curso de transição do sistema internacional, que, na perspectiva russa, abandona o modelo de projeto hegemônico estadunidense em favor de um mundo multipolar. No artigo 12, o documento aponta para a crise na ordem mundial vigente e afirma que a resposta lógica a este cenário é reforçar a “cooperação entre países que estão sujeitos a pressões externas” a partir de mecanismos de integração regionais e transregionais. Pode-se sugerir que se trata de uma referência à cooperação da Rússia com Irã, China e Índia. Ademais, o documento transparece seu caráter de manifesto que busca apoio global ao projeto de transição da polaridade internacional ao afirmar, no artigo 18, que a Rússia busca um sistema de relações internacionais que “preserve a identidade cultural e civilizacional e garanta igualdade de oportunidades de desenvolvimento para todos os países, independentemente da sua posição geográfica, da dimensão do seu território, do seu potencial demográfico, de recursos e militar, e do sistema político, económico e social.”.

Por fim, cabe destacar o uso do argumento de respeito às leis internacionais e à reiterada menção ao CSNU como principal órgão responsável pela manutenção da segurança internacional, a crítica às intervenções militares unilaterais e ao processo decisório de aplicação de sanções sem a anuência do órgão. Ao analisarmos tais afirmações a partir do contexto da Guerra da Ucrânia – assim como fora o caso das versões anteriores sob a luz da Guerra da Geórgia e da anexação da Crimeia – é claro que o leitor estranhe a contradição do governo russo. Nesse sentido, o Conceito de Política Externa de 2023 novamente se diferencia dos outros ao fazer menção ao Artigo 51 da Carta da ONU , sobre o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, como uma prerrogativa legal que justificaria a invasão russa à Ucrânia para se defender das ameaças tais como percebidas por Moscou. Além desta, o documento busca resguardar o direito russo não cumprir com tratados internacionais que não estejam de acordo com a Constituição da Federação Russa, como disposto no artigo 21.

Em suma, pode-se afirmar que o novo Conceito de Política Externa da Federação Russa continua com as linhas gerais da política externa russa do século XXI. Nesse sentido, permanece como objetivo principal a transformação da arquitetura de segurança do pós-Guerra Fria e o fim da hegemonia estadunidense em prol da formação de um sistema de relações internacionais multipolar, no qual a Rússia deverá exercer um papel principal como um dos principais centros de poder em base de igualdade e reconhecimento dos interesses entre as potências. No entanto, a publicação do documento em 2023 representa o mais elevado nível de confiança – e, também, cinismo em relação ao respeito às disposições da Carta da ONU – da política externa russa em relação a este processo de transformação do sistema internacional. Enquanto as quatro primeiras versões foram gradativamente aumentando a ênfase na defesa por um mundo multipolar e possuíam um tom de prenúncio da derrocada estadunidense, o documento de março de 2023 já reconhece o cenário pós pax-americana e faz um convite aos demais Estados para participarem da construção de um sistema internacional que leve em conta os interesses dos diferentes atores que queiram se desvencilhar do modelo político-econômico estabelecido por Washington.

Por fim, o posicionamento russo não descarta a possibilidade de cooperação com os países europeus. Não obstante, Moscou busca mostrar como é cada vez menos dependente do relacionamento com seus vizinhos ocidentais, que teriam muito mais a perder com a má relação com a Rússia, em detrimento de um aprofundamento das relações com os países euroasiáticos e, principalmente, com potências como China e Índia. Em 2023 Moscou afirma abertamente que a hegemonia dos Estados Unidos deve ser encerrada em prol de um sistema multipolar com a participação russa como um dos polos de poder; coloca a responsabilidade da instabilidade internacional na recusa de Washington em aceitar o fim de sua hegemonia; e convoca outros atores a participarem da construção de um novo sistema internacional.

 

* Getúlio Alves de Almeida Neto é doutorando e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI “San Tiago Dantas” (Unesp, UNICAMP, PUC-SP). Defendeu a Dissertação de Mestrado sobre a reforma militar russa e a projeção de poder do país. Membro do Observatório de Conflitos do GEDES. Contato: getulio.neto@unesp.br

[1] A versão em português está com a grafia de Portugal, que será mantida nos trechos citados ao longo do texto.

Referências

NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2022-05/Carta-ONU.pdf. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. Ministério de Negócios Estrangeiros.  2023. Conceito de Política Externa da Federação da Rússia. Disponível em: https://mid.ru/en/foreign_policy/fundamental_documents/1860586/?lang=pt. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. President of Rússia. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2008. Disponível em: http://en.kremlin.ru/supplement/4116. Acesso em: 18 abr. 2023

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation. 2000. Federation of American Scientists. Disponível em: https://fas.org/nuke/guide/russia/doctrine/econcept.htm. Acesso em: 2 maio 2023.

RÚSSIA. The Foreign Concept of the Russian Federation, 2013. Voltaire Network. Disponível em: https://www.voltairenet.org/article202037.html. Acesso em: 2 maio 2023

RÚSSIA. The Ministry of Foreign Affairs of the Russian Federation. Concept of the Foreign Policy of the Russian Federation. 2016.  Disponível em: https://archive.mid.ru/en/foreign_policy/news/-/asset_publisher/cKNonkJE02Bw/content/id/2542248. Acesso em: 2 maio 2013

90 segundos para o fim do mundo e a carência de disposição à cooperação

Luiza Elena Januário*

 

No dia 24 de janeiro de 2023, o Bulletin of the Atomic Scientists anunciou que o Relógio do Juízo Final, ou Doomsday Clock, está marcando 90 segundos para a meia noite, o que representa o ponto mais próximo do apocalipse que a humanidade já esteve. A metáfora do relógio marcando o tempo para fim do mundo é uma figura utilizada para alertar sobre os riscos a serem enfrentados considerando a possibilidade de destruição do planeta por meio de dinâmicas relacionadas a avanços tecnológicos desenvolvidos pelo homem. Ou seja, está em pauta chamar a atenção da opinião pública e de líderes políticos para as ameaças que podem desestruturar as sociedades.

Criado em 1947, o Relógio do Juízo Final foi concebido a partir da preocupação gerada com o advento das armas nucleares. Durante a Guerra Fria, as marcações estimavam entre dois e doze minutos para o fim do mundo. Com o otimismo gerado pelo fim do conflito bipolar, foram estimados dezessete minutos para a meia noite em 1991, o ponto mais distante da aniquilação registrado desde o início da elaboração da metáfora. Vale ressaltar que a forma de sua concepção também foi alterada ao longo dos anos, sendo que em 2007 foram considerados pela primeira vez possíveis efeitos disruptivos associados à mudança climática. De qualquer forma, desde 2020 o Relógio do Juízo Final apontava cem segundos para a meia noite.

A questão nuclear foi central para acertar os ponteiros do Relógio nesse ano. Apesar de terem sido também considerados fatores relativos a ameaças biológicas, crise climática e tecnologias disruptivas, as armas nucleares representaram o cerne das preocupações, particularmente com os riscos associados à Guerra Russo-Ucrânia desencadeada em 2022. De fato, o diagnóstico hodierno é de crise da ordem nuclear. Desde o início do conflito, foram realizadas análises sobre a desestruturação de tal ordenamento e os prejuízos em termos de legitimidade do seu principal instrumento, o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), sendo também proposto que a crise atual encontra suas raízes na própria natureza da ordem nuclear, não representando uma distorção ou novidade.

De qualquer forma, entre as evidências de pontos de tensão associadas ao evento, podem ser citadas a falta de consenso na Conferência de Revisão do TNP de 2022, que foi encerrada sem aprovação de um documento final; a falta de consenso na Primeira Reunião das Partes do Tratado de Proibição das Armas Nucleares (TPAN) acerca da pertinência de se reprovar oficialmente a postura russa; a preocupação acerca da proteção de usinas nucleares em áreas de conflito e a insuficiência de meios para se lidar com tal tipo de situação; e a deterioração do diálogo estratégico entre Estados Unidos e Rússia, o que admitidamente já estava em marcha antes da deflagração do conflito na Ucrânia. O pessimismo associado à ordem nuclear global também está representado em outras facetas, como o fracasso de se relançar o Acordo Nuclear do Irã e os testes de mísseis balísticos da Coreia do Norte.

Particularmente a deterioração do diálogo estratégico entre Rússia e Estados Unidos é fonte de grande preocupação. Os panoramas de 2022 já indicavam apreensão com relação às perspectivas do Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas, conhecido como New Start, o único acordo bilateral de controle de armamentos em vigor entre os dois países com os maiores arsenais nucleares do mundo. O compromisso expiraria em 2026 e havia a sensação que estava em perigo, uma vez que era necessário que Estados Unidos e Rússia buscassem retomar negociações para manter ou aprovar novas obrigações após essa data. No anúncio do Relógio do Juízo Final de 2023, foi pontuado que o findar do tratado “iria eliminar inspeções mútuas, aprofundar a desconfiança, estimular uma corrida armamentista e aumentar a possibilidade de uso de armas nucleares”. Além disso, houve frustração diante da impossibilidade de retomada das inspeções in loco, paralisadas desde 2020 devido inicialmente à pandemia de COVID-19 e, posteriormente, à guerra na Ucrânia.

Porém, o cenário foi agravado logo na sequência. No dia 21 de fevereiro de 2023, o presidente russo Vladimir Putin anunciou que Moscou estava suspendendo sua participação no New Start, demandando esclarecimentos acerca de sua forma de implementação, ainda que o mandatário tenha ressaltado que não se tratava de uma retirada do acordo. Putin também afirmou que a Rússia retomaria a realização de testes nucleares se os Estados Unidos assim o fizessem. A decisão de suspender a participação não foi recebida com surpresa, mas pode ser considerada delicada por introduzir mais incerteza em um cenário de grande animosidade. Apesar do mal-estar gerado, há a expectativa que as obrigações básicas sejam mantidas, já que o ministério de Relações Exteriores da Rússia afirmou que o país continuaria a cumprir os limites impostos pelo tratado enquanto ele estiver em vigor, respeitando as restrições quantitativas em relação a armas estratégicas ofensivas e continuando a notificar os Estados Unidos acerca do lançamentos de mísseis balísticos.

O New Start é um acordo de 2010, em vigor desde 2011 que estabeleceu limites quantitativos para os arsenais nucleares de seus signatários, com validade prorrogada até 4 de fevereiro de 2026. Apesar de ser um tratado mais recente, pode ser inserido na lógica de compromissos bilaterais de controle de armamentos promovidos por Estados Unidos e União Soviética, e posteriormente Rússia, desde a época da Guerra Fria. A perspectiva em pauta é de promoção de estabilidade estratégica e diminuição de incertezas, com base na cooperação. As iniciativas dessa natureza constituem um elemento importante em termos das ações desenvolvidas para lidar com a questão das armas nucleares. Ressalta-se que o diálogo entre os dois Estados foi central também para a arquitetura do regime de não proliferação, já que o TNP pode ser considerado fruto de convergência de interesses entre eles.

Talvez a característica definidora do momento atual seja justamente a falta de estímulo à cooperação no que se refere à questão nuclear. Durante a Guerra Fria existiram momentos de graves tensões, sendo necessário conviver com a possibilidade de escalada acidental ou proposital. Ainda assim, a metáfora do Relógio do Juízo Final remete hoje a uma imagem mais negativa e drástica do que naquele período. Os 90 segundo para a meia noite atuais podem ser associados à necessidade de dramatizar a questão para atrair atenção para os problemas e a consideração de outros fatores, mas a questão nuclear ainda está no cerne do ajuste dos ponteiros, ou melhor, parece que a falta de disposição política dos Estados para cooperar com o intuito de encontrar soluções para problemas comuns é o grande marco para o momento atual. No próprio anúncio de 2023 foi apontado que estava em curso o desmantelamento de instituições e normas internacionais essenciais para a formulação de uma resposta apropriada aos vários riscos enfrentados pela humanidade.

A ordem nuclear global é baseada em um compromisso discriminatório e, desde o ponto de vista de diversos atores, injusto. Apesar de todos os mecanismos de sustentação do presente ordenamento, é recorrente uma sensação de crise, insatisfação e promessas não cumpridas. Entendimentos básicos entre as superpotências da Guerra Fria representam aspectos basilares sobre os quais foi gradualmente edificado e mantido o regime de não proliferação, ainda que as convergências possivelmente fossem pautadas simplesmente por um interesse de manter o status quo. O declínio da disposição à cooperação em temas estratégicos significa, assim, maior incerteza e instabilidade para a arquitetura internacional. De forma similar, as iniciativas bilaterais dos dois países em termos de controle de armamentos representavam um importante aspecto de promoção de estabilidade e construção de confiança mútua. Ainda que não fossem suficientes para contornar os problemas intrínsecos à ordem nuclear, constituíam um esforço positivo e necessário.

O cenário atual é justamente de desmantelamento dessas iniciativas e de sua racionalidade, sem apresentação de uma alternativa viável. Ainda que não fossem suficientes, as ações existentes, baseadas na cooperação, eram fundamentais para amenizar os riscos associados às armas nucleares. Assim, o desmonte não é favorável mesmo ao considerar perspectivas críticas ao ordenamento. Afinal, a construção da ordem nuclear foi baseada no sufocamento de alternativas para se lidar com tais armas e a instabilidade de componentes relevantes para seu funcionamento não aparece acompanhada de espaço para novas formulações.

 

*Luiza Elena Januário é doutora e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP). Professora da Universidade Paulista (UNIP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Imagem: Doomsday clock, positioned at 1.5 minutes to midnight. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Doomsday_clock_(1.5_minutes).svg>. Acesso em: 24 fev. 2023.

Primeiro como farsa, depois como tragédia: Crimeia, Ucrânia e as novas regiões anexadas pela Rússia

Danielle Amaral Makio*

Era março de 2014 quando Vladimir Putin, em seu segundo mandato presidencial, assinava o documento que reconhecia a anexação da península da Crimeia à Federação Russa. Oito anos mais tarde, a Ucrânia voltaria a ter parte de seu território integrado ao estado russo por decisão do Kremlin. O documento que reconhece as regiões de Kherson, da Zaporizhia e das Repúblicas Populares do Donbass, Donetsk (DNR) Luhansk (LNR), como parte da Rússia foi assinado em 29 de setembro de 2022, logo após a realização de referendos que sondaram o desejo das populações locais de serem anexadas. Segundo os resultados divulgados, respectivamente 87,05%, 93,11%, 99,23% e 98,42% dos habitantes de cada local apoiam a anexação. Apesar de terem contado com supostos observadores, as consultas populares, bem como a decisão pela violação da integridade territorial ucraniana, não conta com amplo reconhecimento internacional. Até mesmo a China, parceiro importante do governo russo, demonstrou cautela ao tratar do ocorrido, abstendo-se de abertamente condenar ou reconhecer a atitude de Putin. A decisão de Moscou acontece a despeito das afirmações feitas pelo Kremlin em 2014 e 2015, as quais garantem que a anexação da Crimeia não seria seguida por novas tomadas de território ucraniano pela Rússia. Nesse contexto, a nova onda de anexações levanta alguns questionamentos acerca de suas semelhanças em relação ao ocorrido em 2014, de suas motivações e de sua legitimidade.

Regiões anexadas pela Rússia, por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

De início, é preciso salientar que há diferenças e semelhanças fundamentais entre o contexto da Crimeia e das quatro regiões recentemente anexadas. O contexto político da primeira à época de sua anexação era razoavelmente distinto daquele que vemos nas outras. A península crimeia, em virtude de seu processo de formação populacional e política, passou por diversos períodos históricos nos quais seu pertencimento à Rússia ou Ucrânia foi contestado até chegar à situação em que gozava de relativa autonomia administrativa em relação a Kyiv. Tal “independência” era reconhecida pelas autoridades ucranianas e não tinha seu status contestado como o que ocorria em regiões do Donbass, desde 2014, quando coalizões irredentistas tomaram o poder em certas províncias e instalaram regimes próprios. Dessa forma, a península mantinha certo distanciamento, ainda que limitado, das decisões políticas da capital. É por conta destes dispositivos que, entre outros exemplos, a Crimeia foi capaz de criar diretrizes particulares acerca de algumas políticas linguísticas e educacionais.

Outro ponto de afastamento importante entre os locais aqui analisados são as vantagens estratégicas oferecidas por cada um. Ainda que Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk favoreçam Moscou na medida em que lhe oferecem maior presença nos mares de Azov e Negro e conectem a Rússia à Crimeia por terra, esta conta com atrativos únicos. Entre estes, destacamos (i) o acesso privilegiado ao Mar Negro, uma vez que a península se localiza em região muito propícia à navegação, é próxima de jazidas de hidrocarbonetos e tem boa estrutura portuária; e (ii) a presença da base naval de Sevastopol, onde se localiza o principal destacamento da Marinha russa. Para além das vantagens geopolíticas representadas pelo entreposto militar, Sevastopol é também importante para o Kremlin do ponto de vista afetivo e discursivo. Conhecida como a “cidade da glória”, o local é usualmente usado para invocar os avanços tecnológicos e militares que garantiram a grandeza do Império Russo, narrativa muito mobilizada por Vladimir Putin em sua política de grande potência.

Entre as semelhanças observadas entre a anexação das cinco regiões aqui mencionadas, podemos destacar (i) os fortes traços de russofonia e de aproximação a símbolos étnicos e culturais da Rússia; (ii) a queda nos níveis de aprovação popular em relação a Vladimir Putin, que também passava por um período de baixa popularidade às vésperas da incursão sobre a Crimeia; e (iii) a contestação da veracidade dos referendos realizados. Apesar de ter uma estrutura administrativa que permitia maior “alinhamento” à política russa, a Crimeia contou com um processo de consulta popular que, dada a ampla presença de militares russos e a rapidez com que se deu, levantou suspeitas acerca da legitimidade de seu resultado. Da mesma maneira, a ausência de cabines de votação e a intensa participação do Exército russo durante as votações nas regiões de Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Luhansk sugerem limites ao livre-arbítrio dos votantes.

Além desse contexto que torna a legitimidade dos referendos questionável, ainda deve-se considerar que, nos locais recentemente anexados, houve uma intensa onda de emigração de cidadãos e cidadãs que, podemos supor, eram em sua maioria opostos à integração à Rússia. Tal inferência é corroborada pelo resultado de pesquisas feitas antes mesmo do início da “incursão militar russa sobre a Ucrânia”, segundo as quais 80% e 90% da população de Kherson e Zaporizhia, respectivamente, era contrária à anexação. Os dados sugerem que, apesar de serem parte de uma região historicamente mais afeita a uma postura pró-Rússia, parte considerável da população local não estava disposta a renunciar à Ucrânia. Nesse contexto, na tentativa de garantir apoio irrestrito à secessão e subsequente união à Federação Russa, esta vem oferecendo uma série de benefícios aos locais, como acesso a passaporte russo, assistência social e médica, entre outros. Estas medidas, quando somadas a outras como adoção do rublo, veiculação de mídias russas e mudanças nas políticas educacionais das regiões, sugerem a estruturação de um projeto de dominação que se debruça sobre o estabelecimento de uma presença moscovita plena nos âmbitos militar, civil, burocrático e afetivo.

Apesar da legitimidade contestável do ocorrido, Vladimir Putin reiterou, à semelhança do ocorrido em 2014, que a Rússia está agindo em prol da defesa do direito de autodeterminação dos povos. A postura oficial do Kremlin se baseia em um entendimento do processo de formação estatal que julga ser a Ucrânia, sobretudo suas porções leste e sudeste – tradicionalmente mais afeitas a características etnolinguísticas tipicamente russas -, parte indissociável do estado russo. Na esteira desta narrativa, notamos também a centralidade do conceito de política externa do país, segundo o qual é dever deste proteger os povos russos e/ou russófonos, entre os quais se enquadram aqueles que habitam as regiões recém anexadas. Estas pessoas, no atual contexto de guerra que se estende desde fevereiro, estariam sob a ameaça de um governo ucraniano que persegue e intimida vida das minorias étnicas russas no país. O teor discursivo desta justificativa tem relação com a própria identidade que vem sendo promovida por Moscou sobretudo desde 2012, momento em que o Kremlin assevera sua busca por lugar de destaque na política internacional e fortalece discursos que legitimam a superioridade russa e seu dever cívico de proteger seu povo e seu Estado.

As motivações russas em relação às províncias de Kherson e Zaporizhia e às Repúblicas de Donetsk e Luhansk, porém, vão além do desejo de proteger a população. Após sofrer importantes reveses em fronts localizados na porção leste e centro-leste da Ucrânia, Moscou se vê encurralada por duas necessidades: de um lado, precisa garantir uma retomada da liderança militar do conflito, aumentando sua superioridade tática sobre a Ucrânia; do outro, precisa aumentar a moral do país perante a própria população russa, que já começa a demonstrar crescentes níveis de desaprovação das ações do governo em relação ao conflito. As anexações, nesse sentido, vêm em resposta a ambas as demandas.

Na medida em que fazem desses territórios parte da Rússia, abrem precedente para que qualquer ataque às províncias seja interpretado como um ataque ao próprio Estado russo, possibilitando, assim, uma declaração de guerra por parte do Kremlin – lembremos que, até o momento, a Rússia está oficialmente em uma “incursão militar especial”, não em guerra de fato, o que limita o número de efetivo militar que pode ser mobilizado pelo país e as armas que podem ser usadas. Uma declaração de guerra oficial, portanto, levaria ao uso total da capacidade militar de Moscou, possibilitando, inclusive, o uso de armamento nuclear. Ademais, como já mencionado, as anexações facilitam o estabelecimento de um corredor terrestre ligando Rússia à Crimeia, o que traz benefícios econômicos e militares à primeira. Do ponto de vista doméstico, a expectativa é que a união das províncias à Federação Russa aumente a aprovação do governo, seguindo os resultados positivos da guerra na Geórgia de 2008 e da anexação da Crimeia em 2014.

Os resultados de médio e longo prazo referentes aos recentes desdobramentos da guerra russo-ucraniana ainda são incertos. À semelhança do ocorrido em 2014, o Kremlin parece agir a partir de um cálculo que envolve interesses estratégicos, necessidade de garantir alta nos níveis de aprovação interna e desejo por tomar para si – ou retomar se considerarmos a visão do governo russo – regiões historicamente pertencentes ao Estado russo. Do complexo universo de razões que explicam os eventos aqui comentados, portanto, forma-se uma amálgama de identidade, afetos, memória, geopolítica e tentativa de sustentação de regime político. Nesse ínterim, ainda que Vladimir Putin tenha se declarado aberto a negociações, as recentes manobras de Moscou parecem afastá-lo de obter alguns de seus objetivos iniciais, como a desmilitarização da Ucrânia e a não adesão desta à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), de forma menos traumática.

 

Danielle Amaral Makio é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa de mestrado internacional CEERES (Central and East European, Erausian and Russian Estudies). É também pesquisadora do Gedes e do Observatório de Conflitos.

Imagem em destaque: Putin em fevereiro de 2022, por Kremlin.ru, CC BY 4.0.

Imagem no corpo do texto: Regiões da Ucrânia anexadas pela Rússia. Por SyntaxTerror/Wikimedia Commons.

Geopolítica e identidade: dimensões do conflito russo-ucraniano

Danielle Amaral Makio*

     Gabriela Aparecida de Oliveira**

Helena Salim de Castro***

Em fevereiro de 2022, Vladimir Putin deu início a um conflito militar na Ucrânia. A decisão do presidente vem anos após a anexação da Crimeia em 2014, ano em que a soberania do Estado ucraniano também foi colocada em xeque pelo Kremlin. Agora, Moscou volta a marchar sobre solo ucraniano, alegando, inicialmente, a necessidade de enviar apoio tático às regiões separatistas do leste, que, segundo o presidente russo, estariam sob intenso ataque de Kyiv, assim como a necessidade de “desnazificar” o país vizinho. O conflito atual chama atenção por sua rápida escalada e pela simultânea guerra de narrativas entre os atores envolvidos. Se de início os objetivos russos pareciam ser claros e geograficamente localizados, agora, semanas após o estopim dos embates, as justificativas iniciais de Putin já não parecem suficientes para compreender os motivadores que levaram a Rússia a iniciar e expandir sua operação sobre todo o território da Ucrânia. A disputa discursiva que se estabelece sobretudo entre Rússia e Ocidente sugere que o universo de razões que explica a guerra que agora se desenrola é muito mais amplo do que afirma o Kremlin. Para proporcionar um debate mais informado acerca das muitas dimensões do conflito russo-ucraniano, buscaremos responder ao seguinte questionamento: quais são as razões que justificam a decisão de Putin pela guerra?

A posição geográfica estratégica da Ucrânia e a localização da base militar russa de Sebastopol justificam o interesse militar de Putin sobre o país, que permite o acesso russo a mares quentes e à Europa ocidental. Além disso, a Ucrânia é hoje o principal local de passagem de dutos que conectam a produção de Moscou ao seu maior consumidor, a União Europeia. Ademais, os laços históricos compartilhados por ambos os países envolvidos na guerra atual são também usados pelo Kremlin como elemento discursivo para justificar a invasão. Nesse contexto, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a manutenção dos separatismos ucranianos no leste são recorrentemente usados por Moscou para justificar suas ações militares. À luz destas e de outras questões, a opção russa pelo atual conflito pode ser compreendida por meio  de um viés geopolítico/econômico e também a partir de um ponto de vista ideológico/identitário (LAURELLE, 2019; TOAL, 2017). 

Em 2014, temendo que o novo governo ucraniano pró-Ocidente pudesse aprofundar políticas discriminatórias que prejudicassem a livre expressão étnica e cultural das populações russas, e em vista da anexação da Crimeia, movimentos separatistas se mobilizaram em Donbass. É neste contexto que surgem as repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, as quais, discursivamente apoiadas por Moscou, lutam por secessão em relação à Ucrânia desde então. A partir disso, o fracasso parcial dos acordos de Minsk e as recorrentes denúncias de quebra do cessar-fogo por parte dos separatistas e de Kyiv impuseram novos desafios ao compêndio e permitiram a manutenção dos irredentismos que viriam a justificar a invasão russa (KUBICEK, 2008).

A resposta de Lugansk e Donetsk à eleição de um governo pró-Ocidente na Ucrânia em 2014 tem, ainda, relações com outra questão central para o entendimento do atual conflito que se estende entre Moscou e Kyiv: o papel do Ocidente. A deposição de Viktor Yanukovich, político pró-Rússia, e a reorientação da política nacional a Oeste trouxeram à tona o aumento da influência ocidental sobre a Ucrânia e sobre todo o exterior próximo russo. O interesse ucraniano em integrar a União Europeia e a sinalização estadunidense acerca de uma possível integração do país à OTAN, nesse ínterim, ressoaram nos recentes discursos de Vladimir Putin acerca da expansão irrestrita da aliança ocidental. Em diversos momentos, o presidente russo reiterou receio acerca da aproximação do Ocidente, que desde o fim da URSS vem integrando cada vez mais países do leste e centro europeus à sua zona de influência, cerceando a Rússia do ponto de vista geopolítico. 

Uma possível adesão da Ucrânia aos blocos ocidentais aqui destacados representa uma ameaça ainda mais séria para a Rússia tendo em vista a quantidade de dutos russos que atravessam o território ucraniano e a posição geográfica do país, que não somente representa a “entrada” para a Europa, mas também dá acesso ao Mar Negro. Dessa maneira, a expansão das operações militares russas para além do leste ucraniano é, para Vladimir Putin, uma opção estratégica por conta da relevância do território ucraniano em sua totalidade. Além disso, uma presença russa mais ampla concede maior influência do país sobre o futuro da política ucraniana na medida em que oferece ao Kremlin maior margem para fazer uma série de exigências a Volodomyr Zelensky, tais quais: (i) a garantia de que a Ucrânia não irá aderir à OTAN; e (ii) a desmilitarização da Ucrânia (TOAL, 2017).

Outra característica que distingue o lugar da Ucrânia para a Rússia diz respeito à sua posição na formação da identidade russa atual. Ao longo das mais de duas décadas na liderança do Kremlin, Vladimir Putin alterou pontos-chave na construção da narrativa política que embasa suas decisões no comando russo. Destes, dois são especialmente importantes para que possamos compreender o conflito atual: (i) a oposição do Ocidente; e (ii) a noção de “mundo russo/eslavo”. O primeiro diz respeito à rivalização com atores como Estados Unidos e União Europeia. Ainda que nos primeiros anos na presidência Putin tenha tentado acomodar a Rússia ao mundo ocidental, sua abordagem progressivamente deu lugar a um discurso de alterização do Ocidente, que passa a ser considerado a ameaça absoluta à segurança ontológica russa. Assim, eventos como a expansão da OTAN em direção à fronteira russo-ucraniana tornam-se especialmente preocupantes e ganham novas dimensões em meio à postura anti-ocidental promovida por Moscou (SECCHES; BERNARDES; ROCHA, 2021).

Junto da rivalidade em relação ao Ocidente, a atual identidade russa promovida oficialmente conta com uma interpretação muito particular de povo e território. Nesse contexto, Putin tem um apelo muito grande aos russos étnicos que não habitam os limites territoriais de seu país e aos povos eslavos. Segundo o discurso oficial de Moscou, é dever da Rússia prestar ajuda a todas essas comunidades, as quais, segundo o comando do Kremlin, são parte da nação e do Estado  russos. Considerando a composição étnica da Ucrânia, tal abordagem ideológica/estatal reitera o local de destaque da Ucrânia na política moscovita. Este fato é ainda corroborado pela narrativa histórica de Putin, que concede grande importância ao episódio do nascimento de ambos os Estados, que partilham um mito fundador único que remonta à Rus Kievana do século VIII, primeira formação política de povos eslavos.

A complexidade do conflito russo-ucraniano em curso reside na sobreposição de fatores geopolíticos e identitários. Se por um lado a Rússia não está disposta a ceder sua influência sobre a Ucrânia por conta da localização e da relevância econômica do país; por outro, Putin também depende do vizinho para legitimar a identidade que busca performar na comunidade de Estados. A incursão sobre o território ucraniano, nesse contexto, permite ao Kremlin não somente corroborar a antagonização do Ocidente, mas, também, reiterar seu papel de grande protetor do povo russo e afirmar a posição da Rússia como um importante agente decisor na política internacional. O entrelaçamento de fatores e interesses em jogo dificulta o sucesso das diversas tentativas de negociação e, enquanto ambos os países não acordam um fim para a guerra, observamos a escalada dos conflitos e, consequentemente, da violência contra os civis. Nesse contexto, as reportagens sobre centenas de corpos pelas ruas de Bucha e do recente ataque de mísseis russos em uma estação ferroviária no leste da Ucrânia evidenciam o lado mais terrível da guerra, que acomete a vida de centenas de civis e impulsiona um cenário de violência e violações de direito que é atravessado por questões raciais e de gênero. 

 

*Danielle Makio é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP) e bolsista Erasmus Mundus no programa International Master in Central and East European, Russian and Eurasian Studies, na Universidade de Glasgow.

**Gabriela Aparecida Oliveira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Iaras – Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Iaras-Gedes) e do Grupo de Pesquisa em Gênero e Relações Internacionais MaRIas do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP).

***Helena Salim de Castro é doutora e mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, Puc-SP). Pesquisadora do Gedes, do Iaras-Gedes e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Imagem: Bandeiras da Rússia e da Ucrânia, por iStock.

Referências 

KUBICEK, Paul. The History of Ukraine. Westport: Greenwood Publishing Group, 2008.

LAURELLE, Marlene. Russian Nationalism: Imaginaries, Doctrines, and Political Battlefields. New York: Routledge, 2019.

SECCHES, Daniela Vieira; BERNARDES, Marina Nunes; ROCHA, Pedro Diniz. A Construção do Pensamento sobre o Internacional na Rússia: identidades, projetos político-pragmáticos e o Ocidente. Carta Internacional: Belo Horizonte, v. 16, n. 1, e1000, 2021.

TOAL, Gerard. Near Abroad: Putin, the West, and the contest over Ukraine and the Caucasus. New York: Oxford University Press, 2017.