Dicionário de Gênero e Segurança

PATRIARCADO

Gabriela Aparecida de Oliveira
Helena Salim de Castro
Luana Ribeiro Capela
Maria Paula Morabito Pimentel

22 de abril de 2024

“El patriarcado es un juez,
que nos juzga por nacer
y nuestro castigo es
la violencia que no ves.”
Las Tesis

De maneira geral, o patriarcado pode ser definido como um sistema de subordinação, opressão e exploração das mulheres pelos homens, que pode ocorrer de variadas formas e em diversos âmbitos da vida em sociedade. Sendo um sistema, ele é histórico; ou seja, surgiu em um determinado momento, mas passou (e ainda passa) por um processo de (re)estabelecimento e (re)institucionalização. Apesar da ausência de um consenso a respeito da origem do patriarcado, é possível observar que, como conceito, ele começou a ser difundido por movimentos pela liberação das mulheres no Norte global entre as décadas de 1960 e 1970. Em paralelo, as acadêmicas feministas se apropriaram da palavra para teorizar sobre a desigualdade das mulheres em relação aos homens em um nível sistêmico (Quek, 2019).

Para Lerner (2019), o estabelecimento do patriarcado ocorreu em diferentes momentos e ritmos a depender da sociedade. O patriarcado teria se instituído a partir da apropriação da função sexual e da sexualidade das mulheres, sendo, portanto, anterior à formação da propriedade privada e da sociedade de classes, manifestando-se em diversos âmbitos, como na organização familiar, nas relações econômicas e nas instituições religiosas e governamentais (Lerner, 2019)

Observando o contexto latino-americano, Segato (2016), em consonância com as feministas comunitárias da Bolívia e a partir da observação das experiências de mulheres zapatistas, explora a existência de um “patriarcado de baixa-intensidade” nas comunidades originárias, ainda antes da colonização. Segundo a autora, nessas comunidades havia uma estrutura dual, em que os homens ocupavam os espaços públicos e as mulheres os espaços domésticos. No entanto, ambos os espaços eram ontologicamente completos, uma vez que não se constituíam em relações de opressão, e era possível transitar entre eles. Com a colonização e a instituição de um sistema moderno-capitalista na América Latina, houve a imposição de uma estrutura binária de gênero dentro das comunidades que antagonizou homens e mulheres indígenas. Uma das implicações foi a perpetração de violências contra elas por parte destes homens, como uma forma de expressarem a emasculação (ou perda de poder) sofrida em relação aos brancos no ambiente extra-comunitário (Segato, 2016).

Se para essas análises o patriarcado existia antes mesmo do sistema moderno/colonial — embora em outras roupagens —, para as teóricas do feminismo marxista seu surgimento está vinculado à existência do sistema capitalista. Para essa vertente, segundo Walby (1990), a dominação das mulheres pelos homens seria um subproduto da dominação do capital sobre o trabalho. Nesse sentido, a desigualdade de gênero seria uma resultante do capitalismo. Considerando a realidade latino-americana, a feminista decolonial María Lugones afirma que o patriarcado e as hierarquias de gênero são imposições coloniais e estão vinculados ao sistema moderno capitalista (Sousa; Selis, 2023).

Lerner (2019) considera que um dos efeitos do patriarcado, ou do pensamento patriarcal, foi o apagamento da História das Mulheres. Suas vivências foram ignoradas e elas não participaram do processo de escrita da história. Desse modo, compreender a origem do patriarcado e os mecanismos que permitem a sua institucionalização abre espaço para questionarmos suas estruturas e, assim, permitir às mulheres a (re)escrita da história (Lerner, 1983).

Pateman (2019) faz um exercício de recuperação dessa história na obra “El contrato sexual”. Para a autora, a construção de conceitos e teorias políticas foi realizada por meio de categorias patriarcais. A distinção público-privado foi baseada em uma divisão sexual, que relegou as mulheres para o âmbito doméstico, então fora do debate e conceituação político-social. A partir de uma releitura de autores clássicos contratualistas, a autora lançou luz para a exclusão das mulheres do contrato original, patriarcal em sua essência. Pateman (2019) trabalha, assim, com a ideia de “contrato sexual”, um mecanismo que tem levado à incorporação distinta das mulheres no mundo público, bem como ao acesso controlado de seus corpos.

Tendo isso em vista, compreender o que é o patriarcado e como suas estruturas operam permite visualizar a gama de opressões exercidas sobre as mulheres, e entender sobre quais grupos esse processo é intensificado: por exemplo, as mulheres transexuais, não-brancas, indígenas, lésbicas, bissexuais, pansexuais, intersexuais, PCDS, entre outros. A partir desse entendimento, podem-se destrinchar algumas opressões ou problemáticas características desse sistema, que anteriormente se mantinham ignoradas, em especial pelo ambiente acadêmico. Até em correntes teóricas mais revolucionárias, como no Marxismo, não se dava a devida atenção às problemáticas de gênero. Por exemplo, a maioria dos estudos marxistas tinha como enfoque o trabalho assalariado e, dessa forma, ignorava os trabalhadores e trabalhadoras não assalariados, perdendo de vista questões relativas ao trabalho doméstico. Silvia Federici (2021) chama a atenção para essa questão e expõe os fatores ignorados pelo marxismo quanto ao trabalho doméstico, que consistia, dentre outras coisas, no “cuidado” com a força de trabalho assalariada — em sua maioria, composta pelos homens —, bem como na manutenção do lar e no exercício de atividades reprodutivas, responsáveis por gerar mais força de trabalho.

Nesse prisma, Walby (1990) contribui para a análise da extensão do sistema patriarcal, e faz importantes distinções entre o “patriarcado privado” e o “patriarcado público”. O primeiro opera sobretudo no ambiente doméstico, tendo a exploração do trabalho nessa esfera como sua principal forma de opressão; já o segundo engloba aspectos públicos como os empregos e o Estado, bem como a segregação e subordinação das mulheres nesses espaços. De acordo com a autora há diferentes formas de patriarcado, a depender da relação entre as estruturas sociais que o compõem: “o trabalho pago, o trabalho doméstico, a sexualidade, a cultura, a violência e o Estado” (Walby, 1990, p. 16, tradução nossa). Embora expressados em diferentes espaços, essas dimensões do patriarcado se conectam (Walby, 1990).

Walby (1990) também aborda as contribuições das diversas perspectivas feministas (ocidentais) a respeito do patriarcado. O feminismo liberal, por exemplo, enfatiza as várias privações às quais as mulheres seriam submetidas, como no caso do acesso desigual à educação e desigualdades de emprego — ou ainda, pensando desde as Relações Internacionais (RI), as dificuldades que as mulheres enfrentam para ocupar postos de liderança na política mundial. Para o feminismo radical, por sua vez, o patriarcado é um sistema de dominação das mulheres, como grupo, pelos homens. A supremacia masculina envolve, principalmente, a apropriação dos corpos e da sexualidade das mulheres, por meio do uso da violência (Walby, 1990).

Enquanto tais perspectivas focam na relação entre homens e mulheres como grupos coesos, o Feminismo Marxista lança luz para as diferenças de classe. Para essa vertente, o patriarcado é um subproduto da dominação do capital sobre o trabalho. Conforme escreve Walby (1990, p. 4, tradução nossa), as “relações de classe e a exploração de uma classe sobre outra são as características centrais da estrutura social, e essas determinam a natureza das relações de gênero”. Nessa perspectiva podemos refletir, como nos incita o trabalho de Federici (2021), sobre a divisão sexual do trabalho, a relação hierárquica entre o trabalho (considerado) produtivo/assalariado (aquele que produz riqueza nos padrões capitalistas) e o reprodutivo (o trabalho de cuidado exercido em grande parte por mulheres).

Por fim, as vertentes interseccionais do feminismo (feminismo negro, feminismo indígena, feminismo comunitário, feminismo lésbico, feminismo queer, entre outros) iluminam o conceito para além da esfera do gênero. Para elas, as dinâmicas de opressões patriarcais variam — conforme raça, classe e sexualidade —, refletindo de forma diferente   nas vivências de mulheres não-brancas, periféricas, e LGBTQIAPN+, em relação àquelas de mulheres brancas, de classe média, cis e heterossexuais, por exemplo.

Ademais, como ressalta bell hooks (2004), devemos compreender como o      patriarcado impacta a vida de meninos e homens, bem como as mulheres podem reproduzir e legitimar tal sistema. De acordo com a autora, o estabelecimento e reforço de papeis      patriarcais de gênero é realizado, também, por meio de uma prática de “traumatização normal” dos meninos. Enquanto as meninas são ensinadas a serem pacíficas e a não expressarem sentimento de raiva, nos meninos tal sentimento é incentivado, principalmente para que exerçam o papel de protetores. Desse modo, a criação dos meninos, dentro de famílias e sociedades patriarcais, é baseada na exposição a situações de violência, nas quais eles devem saber usar da força e da raiva, mas sem expressar sentimentos de medo e insegurança. Essa estrutura é reproduzida, inclusive, em lares chefiados por mulheres, e a ausência de uma figura masculina paternal não significa a ausência de uma criação patriarcal (hooks, 2004).

Assim, entende-se que não existe uma verdadeira emancipação das mulheres e um rompimento das estruturas patriarcais sem que elas sejam analisadas em todos seus âmbitos, sobre todos os grupos em que elas ocorrem. É necessário ampliar o escopo de estudos e fugir das teorias hegemônicas do feminismo (leia-se: feminismo liberal) que recorrentemente se apoia em discursos essencialistas e a-históricos sobre a violência de gênero.

A violência de gênero é reconhecida como um produto do patriarcado, tendo um papel fundamental para a sua manutenção. No entanto, é comum os discursos sobre tal violência não estarem atentos às especificidades da cultura e de contexto, às diferenças entre os homens como um grupo (assim como entre as mulheres enquanto grupo), e ao papel da agência do indivíduo em resistir à violência de gênero (Quek, 2019). Como pontuam as feministas negras e feministas marxistas, o patriarcado é um conceito essencialista, que invisibiliza as diferenças sociais, culturais, históricas e étnicas (Walby, 1990).

Nas RI e Segurança Internacional as discussões acerca do patriarcado ganharam força a partir da inserção das teorias feministas nas décadas de 1980 e 1990, com a expansão de novas agendas e problemáticas de pesquisa nesses campos. Assim como o gênero, o patriarcado é tratado como um conceito capaz de elucidar as opressões e violências sofridas pelas mulheres nos contextos da política internacional, da diplomacia, do militarismo, da guerra, da paz, etc.

Analisando o tema da violência sexual nos conflitos internacionais, Meger (2016) ressalta, como o patriarcado, bem como a existência de uma economia política que estrutura os conflitos, permite compreender a perversidade das violências perpetradas nesses cenários. A autora considera que a violência sexual em conflitos armados é efetiva “devido às múltiplas maneiras em que constitui a masculinidade do homem e atende aos interesses das estruturas do capitalismo, patriarcado e colonialismo” (Meger, 2016, p. 168, tradução nossa).

Como analisado por Segato (2016), a intervenção colonial e o capitalismo contemporâneo, na sua fase apocalíptica e psicótica, impulsionam a “minorização” das mulheres ao “[encará-las] como seres inferiores e relegá-las ao campo do íntimo, do privado, do particular, tratando-as como problemas de minorias (e, consequentemente, menores)” (Segato, 2016, p. 615, tradução nossa). Complementarmente, a antropóloga fala da existência de uma “pedagogia da crueldade”, em que as práticas de violência contra as mulheres possuem um caráter funcional por atenderem ao sistema moderno-capitalista e aos interesses do Estado e de atores (lícitos e ilícitos) vinculados a ele. A violência perpetrada contra os corpos das mulheres colombianas, no contexto da política de “guerra às drogas”, exemplifica como essa prática institui relações hierárquicas de poder entre os grupos armados e garante a expropriação dos territórios, que serão explorados por atores transnacionais (De Castro; De Oliveira, 2022).

Essas análises refletem, portanto, uma necessidade de se criar percepções e enfrentamentos às violências contra as mulheres. Como conclui Segato (2016), para conceber essas novas percepções, é vital assimilar a relação intrínseca da história do patriarcado com a história da esfera pública, ou seja, “compreender as formas de violência de gênero hoje é compreender as transformações na sociedade como um todo” (p. 619, tradução nossa). Nesse sentido, é preciso retomar a história a fim de encontrar as experiências e vivências de mulheres e outros sujeitos marginalizados; assim como reescrever essa história, para a construção de relações não-hierárquicas e inclusivas.

REFERÊNCIAS

DE CASTRO, Helena S.; DE OLIVEIRA, Gabriela Aparecida. Drogas e violência contra as mulheres no sul da Colômbia: uma análise a partir do Feminismo Decolonial. Conjuntura Austral, [S. l.], v. 13, n. 61, p. 80–92, 2022.

FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo. Vol. 1. Boitempo Editorial, 2021.

HOOKS, bell. The will to change: men, masculinity and love. New York: Washington Square Press, 2004.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix 2019.

MEGER, Sara. Rape loot pillage. The political economy of sexual violence in armed conflict. New York: Oxford University Press, 2016.

MIES, Maria. Patriarchy and accumulation on a world scale: Women in the international division of labour. Bloomsbury Publishing, 2014.

PATEMAN, Carole. El contrato sexual. Ménades Editorial, 2019.

QUEK, Kaye. Patriarchy. In: SHEPHERD, Laura J. (ed.). Handbook on gender and violence. Cheltenham, UK e Northampton, MA, USA: Edward Elgar Publishing, 2019. p. 115–130.

SEGATO, Rita Laura. Patriarchy from margin to center: discipline, territoriality, and cruelty in the apocalyptic phase of capital. South Atlantic Quarterly, v. 115, n. 3, p. 615-624, 2016.    

SOUSA, Natália Félix de; SELIS, Lara Rodrigues. Gender violence, colonialism, and coloniality. Oxford Research Encyclopedia of International Studies, 2023. Disponível em: https://oxfordre.com/internationalstudies/display/10.1093/acrefore/9780190846626.001.0001/acrefore-9780190846626-e-729. Acesso em: 13 ago. 2023.    

WALBY, Sylvia. Theorising patriarchy. Cambridge: Basil Blackwell, 1990.

SUGESTÕES DE MATERIAIS DE APOIO

DOCUMENTÁRIOS E FILMES:

A GANHA-PÃO. Direção de Nora Twomey. Irlanda, Canadá e Luxemburgo, 2017. (94 min).

BARBIE. Direção de Greta Gerwig. Estados Unidos, 2023. (115 min).

HE NAMED me Malala. Direção de Davis Guggenheim. Emirados Árabes e Estados Unidos, 2015. (87 min).

MÚSICAS:

Francisco, El Hombre. Triste, Louca ou Má [2016]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lKmYTHgBNoE. Acesso em 21 março 2024.

SOARES, Elza. Deus é Mulher [2018]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Kw9ke8zt7XA. Acesso em: 13 ago. 2023.

ROMANCES:

CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.     

EMECHETA, Buchi. As alegrias da maternidade [tradução de Heloisa Jahn]. Porto Alegre: Editora Dublinense, 2ª ed., 2018

HOSSEINI, Khaled. A Cidade do Sol [tradução de Claudio Carina]. Rio de Janeiro: Editora Globo Livros, 2007.

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