Dicionário de Gênero e Segurança

FEMINISMO LIBERAL

Beatriz Vieira Rauber
Cristian Daniel Valdivieso
Maria Aparecida Felix Mercadante
Rafaela Duarte Rodrigues

25 de novembro de 2021

O feminismo liberal surgiu como reivindicação das mulheres, em um primeiro momento localizadas na Inglaterra e nos Estados Unidos, frente à dominação histórica dos homens nos espaços de poder e no controle político, social e econômico, como corroboram os escritos de Mary Wollstonecraft, que datam de 1792. Em decorrência das persistentes desigualdades vivenciadas pelas mulheres, esta corrente é também conhecida como feminismo da igualdade, já que denuncia sua exclusão sistemática na esfera pública, sendo condenadas a permanecer no espaço privado e afastadas de exercer qualquer forma de influência política nas sociedades. Questões como o voto feminino, o acesso ao mercado de trabalho formal com igualdade salarial, bem como o reconhecimento de direitos civis e a participação e representação política são algumas das pautas centrais desta vertente e que estende a procura dessa inclusão social na esfera internacional, principalmente sob o amparo de instituições internacionais como as Nações Unidas. A discriminação contra as mulheres, de acordo com essa corrente, derivaria da sub-representação e/ou privação de sua participação seja ela nos espaços públicos tradicionais (política representativa), em cargos de liderança em instituições internacionais e organizações privadas. Entende-se, portanto, que retirando as barreiras legais, as mulheres adquirem os mesmos direitos e oportunidades concedidas historicamente aos homens.

Com relação à interpretação do conceito “gênero” dentro do feminismo liberal, é importante destacar que, apesar de ser utilizado como categoria de análise, esse conceito não é explorado ou definido de forma crítica pelas teóricas da vertente. Mediante leitura de pesquisadoras que tendem a se identificar com o feminismo liberal, percebe-se um enfoque dicotômico do que seria gênero por meio da interpretação masculino versus feminino, ou homem versus mulher (CAPRIOLI; BOYER, 2001). Muitas vezes, apesar do destaque para o uso da palavra gênero, essa classificação basicamente remonta a um sinônimo do que se entende por sexo biológico. Assim, ainda que por vezes se apresente um debate teórico sobre a formação dessa ideia do que seria o papel “de homem” e “de mulher”, ou no caso da segurança o que formaria o belicismo masculino e o pacifismo feminino, essa discussão é limitada a um entendimento sobre essências biológicas e comportamentais determinadas pelo sexo no nascimento (CONOVER; SAPIRO, 1993; WHITWORTH, 1997).

Na luta contra a discriminação das mulheres, o feminismo liberal elevou duas ferramentas analíticas ao nível global: mulheres e experiência. As frases “the personal is political” (HANISCH, 1970, p. 76, apud CERQUEIRA DO CARMO, 2017, p. 50) e “sisterhood is global” (BUNJUN, 2010, p. 118 apud CERQUEIRA DO CARMO, 2017, p. 52) foram utilizadas com frequência para delinear uma experiência de opressão individual e particular como componente universal a fim de homogeneizar estrategicamente as diferenças entre as mulheres em prol da igualdade e de maior participação no ambiente público (CERQUEIRA DO CARMO, 2017). De forma mais prática do que teórica, a simples adição das mulheres aos postos de decisão política e o alcance da igualdade representativa contribuiria para a resolução das questões relacionadas à opressão feminina. Entende-se que há a necessidade de valorização das experiências femininas, tradicionalmente inferiorizadas. E, nesse sentido, o Estado é visto como agente potencial de promoção da igualdade, um aliado nas reivindicações e capaz de engajar práticas de garantia desses direitos – como as leis de paridade de gênero. A perspectiva feminista liberal, portanto, pressupõe a transformação no nível institucional e não estrutural. 

Parte-se da ideia de que todas as mulheres não apenas estão igualmente sujeitas à opressão de uma estrutura sexista composta por padrões de gênero binários como compartilham as mesmas opressões independentemente de sua localização geográfica, sua religião, sua raça e sua classe social. Por não realizar um debate crítico a respeito das múltiplas violências estruturais que estão presentes no sistema capitalista, as correntes críticas ao feminismo liberal questionam a existência de uma experiência unitária a todas as mulheres. E, nesse sentido, desafiam o pressuposto de que a simples incorporação de mulheres nas estruturas institucionais já existentes promoveria a igualdade entre homens e mulheres. Para essas perspectivas, não existe somente o sistema de opressão sexista, mas sim múltiplos sistemas de opressão que advém da inter-relação entre sexismo, capitalismo, colonialismo, imperialismo e racismo (Cf TICKNER, 2001, p. 13). 

Como visto, há, por parte da corrente feminista liberal, o reconhecimento da diferença comportamental entre homens e mulheres, de modo a valorizar as características e experiências singulares das mulheres. Elas são constantemente apresentadas como seres mais cooperativos, comunitários e ligados à paz dada a sua socialização e a maternidade. Ideia que reforça estereótipos de gênero essencialistas associados ao sexo biológico. Pode-se citar a Resolução 1325 (2000) das Nações Unidas que versa sobre mulheres, paz e segurança  e que representa um marco ‘divisor de águas’ nos estudos feministas por reconhecer que os conflitos armados impactam de forma desigual na vida de mulheres e crianças, assumindo em seu preâmbulo a defesa da aplicação de uma perspectiva de gênero na resolução dos conflitos internacionais que dê especial atenção às necessidades específicas desses sujeitos (NAÇÕES UNIDAS, 2000). Esta representa ainda o ponto inicial para a Agenda Mulheres, Paz e Segurança desenvolvida e impulsionada por outras oito resoluções posteriores[1].

A Resolução 1325 orienta a inclusão de mulheres nas negociações de paz e nos processos decisórios de reconstrução pós-conflito e foi resultado do fortalecimento do reconhecimento e da defesa dos direitos das mulheres dentro da ONU e do trabalho de organizações da sociedade civil em países em situação de conflito armado. Ainda que como marco normativo a Resolução seja considerada mais um instrumento político e não vinculante, a promoção das mulheres como agentes construtoras da paz representa a institucionalização de sua inserção nos assuntos considerados ‘hard politics’. Sob um viés que vai ao encontro da noção de igualdade institucional do feminismo liberal, a resolução propõe diversas vezes o aumento quantitativo das mulheres em diferentes etapas do processo de construção de paz. A ideia de que somente a inserção de mulheres nos processos de decisão modificaria a conflitualidade remete à ideia essencialista de pacificidade – sendo esta, claro, em oposição à suposta agressividade inerente aos homens, os responsáveis por ‘fazer’ a guerra.

As Nações Unidas também têm buscado a implementação dessa agenda no âmbito de missões de paz por meio dos escritórios que compõem a organização, como o Departamento de Operações de Paz (UNITED NATIONS PEACEKEEPING, [2021]) e a ONU Mulheres (UN WOMEN, [2021]), bem como por meio de incentivos para a maior participação de mulheres nas missões tanto nas esferas civil quanto militar. O objetivo geral é a transversalização da perspectiva de gênero em toda a missão, tomando como base a agenda Mulheres, Paz e Segurança. Para tal, investe-se em materiais de apoio e treinamentos para o corpo da missão, assim como conselheiros de gênero para dar apoio técnico às lideranças para implementação dessas medidas tanto no âmbito interno das missões, como no país ocupado (UN DPKO, s/d).

[1] Resolução 1820 (2008); Resolução 1888 (2009); Resolução 1889 (2009); Resolução 1960 (2010); Resolução 2106 (2013); Resolução 2122 (2013); Resolução 2242 (2015); Resolução 2467 (2019); Resolução 2493 (2019). 

Referências:  

CERQUEIRA DO CARMO, Jhader. “GIRLS, WHO RUN THIS MOTHA?” Feminismos Em Processos De Concertação Internacional. Orientador: Prof. Dr. Daniel Maurício Cavalcanti de Aragão. 2017. 170f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/26960. Acesso em: 20 jan. 2021.

TICKNER, J. Ann. Gendering World Politics: issues and approaches in the post-Cold War era. Nova York: Columbia University Press, 2001.

UN, DPKO. Gender Mainstreaming in Peacekeeping Operation: Progress Report. s/d. New York.

UNITED WOMEN. About UN Women, [2021]. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/about-us/about-un-women. Acesso em: 20 out. 2021.

UNITED NATIONS PEACEKEEPING. Department of Peace Operations (DPO). [2021]. Disponível em:https://peacekeeping.un.org/en/department-of-peace-operations. Acesso em: 10 out. 2021. 

WHITWORTH, Sandra. Feminist Theories and International Relations In:  WHITWORTH, Sandra. Feminism and International Relations: towards a political economy of gender in interstate and non-governmental institutions. London: Macmillan Press LTD,  1994. 

NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução 1325 (2000). [s,l]. 18 out. 2000. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_pazeseg/Mulheres_paz/1325-2000-PT.pdf. Acesso em: 16 ago. 2021. 

XAVIER, Izadora. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 21, n.1, pp.59-80, 2013. 

Wollstonecraft, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.

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