Dicionário de Gênero e Segurança

INTERSECCIONALIDADE

Bianca Regina Poltronieri
Lorena dos Santos Roberts
Karine Yukari Shiroma

22 de abril de 2024

A interseccionalidade é uma ferramenta de análise que nos permite compreender e identificar as interconexões e intersecções entre as diversas categorias de opressão (Kyrilos, 2020). O emprego da interseccionalidade como uma ferramenta analítica permite-nos examinar os processos discriminatórios de forma simultânea, considerando a complexidade dessas interações e compreendendo as condições específicas em que eles se entrelaçam e se manifestam nas experiências individuais e coletivas dos sujeitos, reconhecendo que diferentes categorias sociais, tais como raça, gênero, sexualidade, classe social e religião, podem servir como elementos de opressão (Politize, 2020; Kyrillos, 2022).

A criação do termo “interseccionalidade” é muitas vezes atribuída à advogada e ativista norte-americana, Kimberlé Crenshaw, em 1989. Porém, é importante destacar que, apesar de não haver um termo específico para descrever o fenômeno da interseccionalidade antes da década de 1980, já pairava na sociedade civil norte-americana, bem como brasileira, a percepção de que as opressões operam em conjunto sobre certos corpos, principalmente sobre o das mulheres. Assim, as décadas de 1960 e 1970 foram significativas para a elaboração das ideias centrais da interseccionalidade no campo político do ativismo social.

Dentre as principais autoras que trabalham com o conceito destacam-se Kimberlé Crenshaw, com suas obras “Demarginalizing the Intersections of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracists Politics” (1989) e “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color” (1991), June Jordan em sua obra “Civil Wars”, Audre Lorde em sua obra “Irmã Outside” e Angela Davis com seu livro inovador “Mulheres, raça e classe”. Destacam-se também os nomes de Alice Walker, Nikki Giovanni, Barbara Smith e Gloria Anzaldúa (Collins, 2021), além de Ochy Curiel.

No Brasil, especificamente, há um apagamento na história dos debates teóricos que antecedem a nomeação da interseccionalidade por Kimberlé Crenshaw. Esse apagamento é preocupante, considerando que a origem desse conceito está intrinsecamente ligada às lutas sociais e aos pensamentos teóricos das mulheres negras (Kyrillos, 2020). Isso apenas exemplifica a importância de uma análise crítica sobre a origem da interseccionalidade, a qual deve partir do entendimento de que a ideia fundamental transmitida pela interseccionalidade é uma preocupação que já existia nos movimentos sociais e textos teóricos muito antes do surgimento do próprio conceito e de sua adoção pela comunidade acadêmica (Kyrillos, 2020).

Muito antes da década de 1980, Lélia Gonzalez já pensava e trazia contribuições sobre a interseccionalidade, destacando-se como uma das precursoras dessa problematização e abordando-a em três dimensões: categorias de análise (como raça, sexo e classe, entre outras); nos fenômenos sociais de opressão e discriminação (incluindo racismo, sexismo e segregação, entre outros); e na articulação entre movimentos sociais (negro, feminista e LGBTQI+)  (Rios; Ratts, 2016, p. 10).

Gonzalez desempenhou um papel fundamental na liderança da reorganização do ativismo político antirracista, durante o período da ditadura militar (1964-1985), sobretudo na fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). Ainda durante esse período, a autora também trouxe contribuições em artigos e periódicos negros, feministas e homossexuais, explorando o tema da mulher negra e estabelecendo conexões significativas entre raça, gênero e classe. Ainda em seus escritos, Lélia Gonzalez demonstrava a necessidade do feminismo se atentar às múltiplas formas de opressão da mulher, dentre elas, a questão da raça e da classe social (Rios; Ratts, 2016, p. 10).

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelo aperfeiçoamento e tradução dos entendimentos sobre a interseccionalidade no campo teórico-científico. De modo que a incorporação das ideias de interseccionalidade, formuladas no campo dos movimentos sociais de mulheres de cor, ganha força no campo acadêmico com a publicação das obras de Kimberlé Crenshaw[1]. A autora expôs como as relações de poder são legitimadas pelas instituições sociais e buscou demonstrar como o surgimento de discursos de resistência, tais como o feminismo e o antirracismo, podem também produzir e legitimar a marginalização de diversos grupos sociais (Carbado et al., 2013).

As publicações de Crenshaw analisam o desenvolvimento da noção de interseccionalidade como forma de investigação e práxis, demonstrando como a sua incorporação na Academia permitiu novos debates e análises críticas em relação ao modo como os diferentes sistemas de opressão operam com a marginalização de diversos grupos sociais (Collins, 2021).

Como estratégia analítica usada para investigar a multidimensionalidade da experiência humana, a interseccionalidade deve ser encarada como ferramenta que vincula teoria e prática, rechaçando-se, então, percepções generalizadas que subestimam a possibilidade do exercício da prática com a teoria, ou da academia com o ativismo. Nesse sentido, o próprio ato de estudar a interseccionalidade exige um esforço tanto teórico quanto prático, visto que esta ferramenta analítica abrange um variado e complexo leque de fenômenos sociais, que demandam uma pedagogia que seja por si própria interseccional. Só assim pode-se lançar luz sobre as bases da interseccionalidade no que tange a diversas áreas de estudos no âmbito social (Bilge; Collins, 2021, p. 59-65).

Dessa forma, ao construir a interseccionalidade como forma de investigação crítica, é possível verificar a sua intencionalidade em “[…] entender a vida e o comportamento humano enraizados nas experiências e lutas de pessoas privadas de direitos”, além de ajudar no empoderamento de pessoas e grupos sociais (Bilge; Collins, 2021, p. 56). Assim, a aplicabilidade da interseccionalidade como práxis crítica atesta que, quando se trata da resolução de problemáticas sociais, esta deve rejeitar percepções binárias e compor o conhecimento a partir da soma da teoria com a ação. Isto é, ao constatar a onipresença da violência nas mais variadas dimensões da esfera humana, é notável o desenvolvimento da relação sinérgica entre práxis e investigação, sendo, então, fundamental a abordagem interseccional na elaboração de políticas públicas.

À vista disso, a constatação do atravessamento da violência tanto nos sistemas de poder (racismo, sexismo, capacitismo) quanto nos domínios do poder (interpessoais, estruturais, disciplinares e culturais), feita pela ferramenta analítica da interseccionalidade, evidencia a importância da instrumentalização da lente da interseccionalidade para o estudo de casos que envolvam a violência, uma vez que esta não é meramente praticada dentro de sistemas estáticos de poder (Bilge; Collins, 2021, p. 79).   

Ao buscar por iniciativas heterogêneas de combate à violência, o movimento Ni Una Menos, a título de exemplo, lança-se como um coletivo feminista na Argentina, em 2014, a fim de alcançar a justiça social por meio da aplicação da ferramenta interseccional. Inicialmente agregando mulheres de diferentes áreas, como acadêmicas, ativistas e jornalistas, o movimento construiu uma estratégia política de atuação que angariou canais de participação política, que contemplavam desde a sociedade civil até atores estatais e a mídia para dentro das discussões contra a violência de gênero. Com o emprego eficaz do ciberespaço, como uma arena de ação discursiva vinculada às malhas das redes sociais na América Latina, promoveu-se maior senso de conectividade entre as pessoas afetadas pelas violências de gênero e, assim, fortaleceram-se processos de auto-identificação cultural e feminista na comunidade internacional (Marques, 2019, p. 78).

A imprescindibilidade da aplicação da ferramenta interseccional, portanto, fez-se visível na compreensão da violência contra os corpos feminizados para além de segmentações de violência que culminem em um sistema estático de poder. Uma vez compreendido que os processos de violência são múltiplos e entrecruzados, as estratégias de resistência do Ni Una Menos também precisaram detectar a inter-relação entre os sistemas de opressão e, desse modo, partir de uma abordagem interseccional das injustiças sociais para estabelecer condições de solidariedade (Marques, 2019, p. 82-84).

Nesse sentido, é possível pensar a interseccionalidade a partir das mobilizações transnacionais por justiça social como ferramentas globais (Kyrillos, 2022). Isto é, o termo “justiça social”, cunhado por Nancy Fraser como um “conceito amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis de igualdade social quanto as reivindicações defensáveis de reconhecimento da diferença” (2007, p. 103), permite uma compreensão ampla do modus operandi da justiça, estendendo o campo de ação das reivindicações políticas para além das questões de classe. Desse modo, a interseccionalidade como ferramenta analítica e como teoria social crítica contribui para a análise tanto das ações sociais quanto das teorias e atores das Relações Internacionais (RI).

Para Kyrillos, os movimentos sociais são agentes do campo das RI, tendo como ponto de partida a globalização neoliberal, que impactou as formas de organização das redes, de construção das agendas do sistema internacional e de comunicação “entre feministas e os questionamentos sobre suas realidades locais e fronteiriças” (2022, p. 115), intensificando as articulações transnacionais. Assim, os movimentos sociais identificam as possibilidades emancipatórias através da “condição para mudanças normativas internacionais e constituição de estratégias simbólicas de oposição” (Kyrillos, 2007, p. 116 apud Devies; Pena, 2019).

A interseccionalidade propõe, portanto, uma análise do entrecruzamento dos marcadores sociais de subordinação, como as questões de raça, sexualidade, nacionalidade e gênero, assim como dos marcadores de privilégio e poder predominantes nas sociedades capitalistas, brancas e sexistas. Pode-se, assim, aplicar a interseccionalidade como uma ferramenta para identificar não só os modos como as mobilizações sociais no campo internacional possuem características e origens particulares, mas também como possuem em comum o aporte interseccional. Buscando a construção das pautas coletivas e reivindicações políticas necessárias para o questionamento da realidade social, bem como a promoção de políticas contra as diferentes formas de violência direcionadas às mulheres e aos corpos feminizados.

[1]Segundo Patrícia Hill Collins (2021), Crenshaw se baseia nas ideias do“Combahee River Collective Statement” (CRC), cujo principal argumento consistia na ideia de que os sistemas de opressão estão interligados e devem ser analisados em conjunto. Assim, Crenshaw baseia-se nas ideias do CRC não apenas para nomear a interseccionalidade mas também para 1) estabelecer vínculos entre identidade individual e identidade coletiva; 2) manter o foco nas estruturas sociais; 3) teorizar as relações de poder na violência contra as mulheres de cor a fim de destacar a dinâmica estrutural, política e representacional de poder; e 4) lembrar que o objetivo dos estudos interseccionais é contribuir para iniciativas de justiça social.

REFERÊNCIAS

CARBADO, Devon W; CRENSHAW, Kimberlé Williams; et al. “Intersectionality: Mapping the Movements of a Theory.” Du Bois Review: Social Science Research on Race. vol. 10, n.2. 2013.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Tradução de Rane Souza, 2-ed. São Paulo: Boitempo, 2021.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, n. 70, p. 101-138, 2007

IGNACIO, Julia. O que é interseccionalidade? Politize. 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/interseccionalidade-o-que-e/ . Acesso em: 22.maio.2023.

KYRILLOS. Gabriela M. Relações Internacionais e interseccionalidade: primeiras aproximações a partir de mobilizações transnacionais. Revista Conjuntura Austral. vo.13, n. 63. 2022.  

KYRILLOS. Gabriela M. Uma análise crítica sobre os antecedentes da interseccionalidade. Revista Estudos Feministas. vol. 1, n.28. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/zbRMRDkHJtkTsRzPzWTH4Zj/?format=pdf&lang=pt

MARQUES, B. M. A atuação do movimento Ni Una Menos como rede (feminista) de ativismo transnacional na luta contra a violência de gênero na Argentina (2014-2016): Fronteira: revista de iniciação científica em Relações Internacionais, v. 18, n. 35, p. 62–87, 30 abr. 2019.

RIOS, Flavia; RATTS, Alex. A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez. in: PINTO, Ana Flávia; CHALHOUB, Sidney (Org.).  Pensadores Negros- Pensadoras Negras. vol.11. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.

SUGESTÕES DE MATERIAIS DE APOIO

COEL, Michaela (Criadora e Diretora). I May Destroy You [Seriado]. Londres: HBO Max, 2020.

FEMINISMOS e Interseccionalidades. Podcast: Senta Que Lá Vem História, jul. 2020. (29 min.).

MURPHY, R.; CANALS, S.; FALCHUK, B. Pose [Seriado]. Estados Unidos: FX Networks, 2018.

OYA, Berkun. 8 em Istambul [Seriado]. Turquia: Netflix, 2020.

PINHEIRO, Luís; TOFFOLI, Dainara (Diretores). Manhãs de Setembro [Seriado]. São Paulo: Prime Video, 2021.

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