Dicionário de Gênero e Segurança
MASCULINIDADES
Cristian Daniel Valdivieso*
*O autor agradece à Maria Eduarda Kobayashi Rossi e à Rafaela Duarte Lopes pelas sugestões e reflexões que ajudaram a construir este verbete.
22 de abril de 2024
Os estudos sobre masculinidades nas Relações Internacionais podem ser localizados no seio dos avanços das agendas feministas na década de 1980. As rupturas ontológicas e epistemológicas da disciplina, a partir da operacionalização do gênero como categoria de análise (Hekman, 2013; Scott, 2018), permitiram a consolidação de novas pesquisas direcionadas ao entendimento das estruturas organizadas nas práticas sociais baseadas no gênero (Messner, 1989). Assim, as masculinidades podem ser definidas como configurações que operam na ordem de gênero estabelecido em um contexto específico (Connell, 1997, p. 8). Para Raewyn Connell, a masculinidade possui uma relação direta com os corpos masculinos, mas “não é determinada pela biologia masculina” (Connell, 2000, p. 29-30). Ela habita tanto o espaço físico e simbólico, da cultura, da representação, como o das estruturas de linguagem, que operam no âmbito subjetivo.
Pode-se observar que a masculinidade não necessariamente se vincula à compreensão biológica do sujeito historicamente constituído como masculino: o homem. Mesmo assim, nas origens do conceito, o dimorfismo sexual permaneceu como elemento codificador das práticas sociais, ou seja, a diferenciação determinada pelo sexo biológico na estrutura dicotômica macho/fêmea. Com o avanço da área, as perspectivas sociológicas contribuíram para substituir determinismos biológicos por perspectivas de construção social (Valdés; Olavarría, 1997) e, posteriormente, vertentes como o pós-estruturalismo permitiram levar as masculinidades ao campo discursivo da composição das estruturas cotidianas, institucionais e, também, internacionais (Connell, 2012; Via, 2010).
O sociólogo Josep Vincent Marqués apresenta a masculinidade como a outra cara da moeda da ruptura iniciada por Simone de Beauvoir. Assim como a mulher não nasce mulher, mas torna-se, o homem também é produto de uma série de elementos subjetivos e concretos que modulam seu comportamento, sua identidade e suas práticas (Marqués, 1997, p. 18). Lembre-se, no entanto, que a masculinidade não constitui um atributo biológico do homem, e sim corresponde a uma série de qualidades a ele atribuídas pelo simples fato de possuir um corpo associado ao masculino.
A masculinidade, nesse sentido, implica o ordenamento do gênero como uma estrutura assimétrica que organiza relações de poder. A organização desse sistema sobrepõe o masculino ao feminino, antagonizando as relações entre ambos componentes. De forma semelhante, a masculinidade também conflitua com outras categorias do seu próprio espectro, sendo necessário levar em consideração que ela não é generalizável. A sujeição da masculinidade à dinâmica própria da organização da prática social, distribuída em diversos espaços geográficos, institucionais, culturais, outorga ao conceito um sentido de pluralidade, característica defendida por diversos autores (Beasley, 2008; Connell, 1997; Messner, 1989; Viveros, 2018).
Nesse sentido, é prudente falarmos de tipos de masculinidades. A dinâmica relacional da estrutura de gênero revela que as masculinidades não apenas se constroem a partir da negação daquilo que social e historicamente se convencionou como o critério de menor relevância (o feminino), mas também em disputa com masculinidades diversas. Para Mónica de Martino (2013), as relações de poder e dominação masculinas se organizam em torno a três formas de masculinidades: as hegemônicas, as conservadoras e as subordinadas.
As masculinidades hegemônicas, como argumenta R. Connell, são compreendidas como aquelas que alcançam destaque nas dinâmicas das forças sociais (Connell, 1997). Elas atuam como modelos representativos de características naturalizadas como masculinas. Assim, o poder, o reconhecimento, a importância, o controle, a virilidade, a agressividade constituem etiquetas que outorgam aos sujeitos um status de superioridade (Kimmel, 1997, p. 51). É importante destacar que a concepção de masculinidades da R. Connell responde à estrutura patriarcal ocidental. Segundo a autora, o poder da masculinidade opera na lógica de “subordinação geral das mulheres” (Connell, 1997, p. 37). Como veremos depois, essa mesma lógica ajuda a estruturar a dominação não só das mulheres e homens de masculinidades disruptivas, mas também homens e mulheres atravessadas por opressões interseccionais de raça e por fatores histórico-sociais como as experiências coloniais e escravagistas, situação presente na América Latina (Viveros, 2018).
As masculinidades conservadoras se enquadram no que Marqués determina como a vantagem do “ser importante” que reveste ao sujeito socializado como homem. Nesse sentido, o sistema patriarcal se sustenta na aparente divisão biológica imprimida pela natureza aos homens e às mulheres. Cabe à lógica patriarcal radicalizar essa distinção, agindo como reforço cultural que exacerba as diferenças entre homens e mulheres e reduz as diferenças entre os homens. Assim, o “ser importante” constitui na formação masculina do homem uma vantagem simbólica que o aproxima do que o autor denomina modelo-imagem (tipo de masculinidade hegemônica). Mesmo não conseguindo atingir o modelo esperado de masculinidade, o fato de ser homem constitui em si uma demonstração e obtenção de importância perante as mulheres (Marqués, 1997, p. 25).
Por fim, as masculinidades subordinadas abraçam um espectro amplo e diverso de sujeitos. Assim como as hegemônicas se manifestam em locais específicos, as subordinadas respondem à dominação exercida pela masculinidade imperante. Em espaços militares, Helena Carreiras argumenta que existe uma predominância ao sentido físico do desempenho militar (Carreiras, 2009). Marqués também aborda essa questão ao mencionar que “[n]o homem, a identidade de gênero é um espírito de corpo” (Marqués, 1997, p. 19). Nos espaços militares e esportivos (Messner, 1989), as características físicas se tornam centrais e costumam sustentar relações de gênero com tendências à violência contra homens e mulheres que ocupam os espaços subordinados.
A perspectiva hegemônica de masculinidade, até agora amparada na visão patriarcal ocidental, para alguns autores, apresenta complicações. Yuchen Yang (2020) argumenta ser necessária uma reinterpretação do conceito de hegemonia, que bebe da compreensão teórica do Gramsci, e questiona sobre a possibilidade de uma masculinidade hegemónica não reafirmar necessariamente a base de dominação patriarcal de opressão de homens contra mulheres. Essa crítica abre passo a disputas de masculinidades presentes em espaços não heteronormativos e permite questionamentos sobre o sentido de dominação delimitado na ordem de homens sobre mulheres e não sobre outros homens. Yang argumenta então que Connell emprega uma perspectiva estreita do conceito de hegemonia vinculada ao sistema patriarcal de dominação exclusiva das mulheres.
Um tensionamento importante ao conceito de masculinidades provém da colombiana Mara Viveros, que emprega uma perspectiva interseccional para abordar o que ela denomina as “cores da masculinidade”. A autora defende que em regiões diversas como a América Latina, as masculinidades operam sob critérios de etnia, raça, sexualidade, e que, por sua vez, inserem-se em contextos marcados por processos violentos que estabeleceram hierarquias sociais, como aconteceu com a colonização. Às pessoas caracterizadas como a negação do homem branco, as “não-brancas” (pessoas de cor), foi-lhes negado domínio hierárquico de gênero, sendo também dominados e oprimidos. Viveros compreende que na região a raça constitui uma ideologia de conexão entre o controle da sexualidade das mulheres e a subordinação dos homens racializados (Viveros, 2018, p. 29). Essa junção de opressões radicalmente violentas tem marcado a região como o “berço do machismo” e uma “versão regional da dominação patriarcal” (Valdés; Olavarría, 1997, p. 9). Esse legado histórico cobra a vida de milhares de mulheres vítimas de feminicídios e violência de gênero na América Latina, região com uma extensa concentração de casos (García, 2018).
No âmbito da Segurança Internacional, a operacionalização de dinâmicas sociais pautadas no gênero gera situações preocupantes em termos de violência. A guerra, compreendida ainda como uma prática política, continua a ser feita por homens em sua maioria, no entanto, lembrando a Marqués, ela também molda o comportamento masculino. Assim, o homem faz a guerra e a guerra faz o homem (Hooper, 1999). A masculinidade é um ponto-chave de análise principalmente quando versa sobre a cultura militar que é, até hoje, essencialmente masculinizada e acaba estruturando um ideal de soldado que coloca, compulsoriamente, homens nessa posição, obrigando-os a assumir papéis e comportamentos.
Para além do militarismo, as problemáticas da masculinidade se estendem em âmbitos decisórios, principalmente políticos, em que se percebe a predominância androcêntrica, o que limita e restringe políticas, iniciativas e decisões que levem em consideração outros grupos que não se inserem nos ideais masculinos. Retornando às masculinidades associadas ao campo militar, Mark Neocleus (2011) assinala a virtude marcial como sustento do status quo castrense, situação que evitaria a feminização das forças armadas. Desse modo, a masculinidade constitui elemento central para a manutenção do ethos do soldado e da instituição.
Entretanto, como argumentamos anteriormente, as masculinidades são configurações dinâmicas. Ainda no eixo militar, Maya Eichler (2014) argumenta que nas forças armadas impera um tipo específico que ela denomina masculinidades militarizadas. Para a autora, essa categoria, constituída como hegemônica nos espaços castrenses, sustenta-se nos ideais do militarismo e da masculinidade levada ao rigor do “espírito de corpo” (Marqués, 1997). Isto quer dizer que, quanto mais aptidões físicas se apresenta, maiores as possibilidades de hierarquia e de aproximação do modelo-imagem do soldado. Carreiras, nessa mesma linha, argumenta que as instituições militares empregam critérios de masculinidade para determinar quem faz o que, estabelecendo que os sujeitos menos masculinos desempenhem tarefas consideradas femininas no âmbito institucional. Desse modo, o combate continua a ser uma tarefa específica dos sujeitos mais varonis (Carreiras, 2009), pois a guerra não é associada aos corpos femininos (Giannini; Kalil Mathias, 2018).
As masculinidades militarizadas então se apoiam na performatividade física do sujeito. Entretanto, Eichler argumenta que o ingresso feminino de mulheres nas forças militares tem tensionado a estrutura de gênero dominante. Nesse sentido, pode-se esperar que as masculinidades venham a sofrer alterações tanto no sentido de ceder às pressões globais como de resistir ao ingresso dessas mulheres militares.
É necessário também considerarmos o fato de que a presença das mulheres nos quartéis é um fato, ainda que em número minoritário. Muitas delas, assim como muitos homens, encontram no modelo militarizado da masculinidade uma barreira para o desempenho das funções institucionais estabelecidas, pois a aproximação ao modelo-imagem de soldado constitui em si uma contradição para os sujeitos que não encarnam o tipo ideal de ser humano masculino.
REFERÊNCIAS
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SUGESTÕES DE MATERIAIS DE APOIO
MÚSICAS
ELI-T. No Rules No Roles. [2020]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0jvFXyIHw8k
DOCUMENTÁRIOS
COISA de menino. Direção de Guto Barra e Tatiana Issa. Brasil: HBO e Producing Partners, 2023.
CUERPO, territorios y soberanía: violencia contra las mujeres. Direção de Universidad de Costa Rica. Costa Rica: Canal UCR, 2017. (26 min)
O silêncio dos homens. Direção de Ian Leite e Luiza de Castro. Produção de PapodeHomem e Instituto PdH. Brasil: Monstro Filmes, 2019. (60 min)
PRECISAMOS falar com os homens? Direção de Ian Leite e Luiza de Castro. Produção de PapodeHomem e Instituto PdH. Brasil: Monstro Filmes e Questto | Nó Research, 2016. (51 min)