Dicionário de Gênero e Segurança

SUBALTERNIDADE(S)

Carolina Antunes Condé de Lima
Isabella Marin Garrido
Kimberly Alves Digolin
Letícia Gimenez
Sara Amélia Nóbrega da Costa

02 de maio de 2024

O termo “subalterno” é utilizado para se referir a grupos marginalizados que não possuem voz ou representatividade em decorrência de sua etnia, casta, classe, idade, gênero ou trabalho. Nesse sentido, a condição de subalternidade é a condição do silêncio (Figueiredo, 2010, p. 83-84) ou, mais especificamente, do silenciamento de alguns grupos a partir de uma hierarquização artificial da diferença.

O primeiro uso do termo foi feito pelo filósofo marxista Antonio Gramsci, na obra Cartas do Cárcere, publicada em 1947. Na ocasião, Gramsci se referiu aos subalternos como uma categoria alijada de poder e cuja voz não pode ser ouvida, em uma referência direta ao proletariado. Contudo, foi a partir de 1985, com as primeiras elaborações sobre o conceito de subalternidade por Gayatri Spivak, que o termo ganhou o mundo e transformou a autora indiana em referência internacional por questionar se o subalterno pode falar.

A fim de desenvolver a questão do subalterno, Spivak (2010) aborda a prática de autossacrifício das mulheres viúvas na Índia. Também conhecido como Sati, a prática consistia na imolação das viúvas junto às piras dos corpos de seus falecidos esposos. A partir do Sati, a autora destaca o quanto a “voz-consciência” das mulheres indianas era duplamente silenciada. Por um lado, pelos homens da elite indiana que, inseridos em uma estrutura patriarcal, viam naquela decisão o correto a ser feito pelas mulheres. E, por outro, pelos colonizadores que, ao proibirem a cerimônia no século XIX, entendiam que estavam salvando as chamadas “mulheres marrons” da opressão de “homens marrons”. Ou seja, pelo próprio processo de questionamento imperialista sobre a legitimidade do ritual, uma vez que, “além de serem silenciadas pelo imperialismo europeu, as mulheres não possuem o direito de voz nem mesmo quando são confrontadas com suas tradições, […] [não sendo] possível encontrar propriamente a voz das viúvas e suas perspectivas” (Chedid; Hemais; 2022, p. 4).

É a partir dessa concepção que Spivak (2010) inicia seus questionamentos a respeito da subalternidade, sendo o primeiro deles uma crítica ao conceito elaborado pelo italiano Gramsci. De acordo com a autora, não é possível tratar a categoria de subalterno como uma categoria monolítica e uni-los sob um conceito uníssono; para Spivak, “subalterno” é um grupo heterogêneo, que “descreve as camadas mais baixas da sociedade construídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos do estrato social dominante” (Spivak, 2010, p. 12).

Somado a isso, a autora afirma que a manutenção e reprodução de estruturas de poder e opressão que mantêm o subalterno silenciado estão assentadas sob uma retratação desses grupos como “objetos de conhecimento por parte de intelectuais que almejam meramente falar pelo outro” (Spivak, 2010, p. 13). Desse modo, Spivak argumenta que a objetificação do subalterno deveria ser combatida com a criação de espaços e condições de autorrepresentação.

Instigados pelos grupos de estudos sul-asiáticos, e sua repercussão, pensadores da América Latina na década de 1990 passaram a desenvolver seus próprios estudos acerca do continente americano, formando o Grupo Latino-Americano dos Estudos Subalternos. Entretanto, identificaram-se singularidades entre os dois territórios. Segundo Walter Mignolo (2017), o fato da colonização latino-americana e a sul-asiática não compartilharem o mesmo ator colonizador tornava impossível a teorização conjunta, uma vez que a repressão da subjetividade indígena na América Ibérica teria sido “mais violenta, profunda e duradoura” (Quijano, 2013. p. 121), assim como na África. Outro aspecto fundamental para pensar a diferenciação entre os estudos subalternos dos dois locais é que, diferente do que ocorreu na América Latina, a memória escrita ainda pode ser preservada na Ásia (Quijano, 2013).

Nesse sentido, a necessidade de se pensar numa teoria cujo locus fosse de fato a América Latina possibilitou a formação do Grupo Modernidade/Colonialidade. Os estudos do grupo propunham a intrínseca relação da Modernidade com a colonização das Américas; ou seja, baseada na dominação racial, a Modernidade seria “o princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do sistema-mundo” (Grosfoguel, 2008, p. 123). Essa articulação racial permanece influente na ordem capitalista global, considerando que ela já foi constituída visando o atendimento ao mercado mundial e outorgada na América colonial de modo a atribuir legitimidade durante o projeto de dominação (Quijano, 2005). No entanto, é relevante pontuar que, além da racialidade, o gênero e a sexualidade são aspectos igualmente manipulados, sendo os três interdependentes na garantia de preservação desse sistema e na promoção do controle racial, étnico, patriarcal e imperialista.

Assim, conforme apresentado previamente, o desenvolvimento do conceito de subalternidade foi articulado por estudiosos sul-asiáticos e, posteriormente, tomou forma e especificidade dentro da América Latina. Dentre as principais contribuições deste conceito é válido destacar a forma como os estudos subalternos lançaram luz sobre a recorrência de uma narrativa unilateral da história, possibilitando acesso a uma pluralidade de perspectivas, histórias e falas. Em outras palavras, sistematiza uma maior preocupação em escutar grupos que antes eram “ocultados, escondidos, calados, emudecidos, silenciados, censurados” pelos “paradigmas hegemônicos” (Mancilla, 2016, p. 49).

Dessa forma, houve um aumento gradativo de pesquisas que passaram a colocar em evidência o abismo existente entre as perspectivas vivenciadas pelo indivíduo subalterno e aquelas pautadas e promovidas pela elite dominante. Estes estudos permitiram, primordialmente, apontar a existência de uma dominação intrínseca, moldada e mantida pelo que Edward Said (2007) apontou, previamente, como “o poder da narrativa”. Assim, essa construção do outro baseia-se em colocá-lo na posição de subserviência, na qual os indivíduos que a ela pertencem são vistos como incapazes de produzir seu próprio conhecimento.

Essa hierarquização cultural, linguística e intelectual foi a base para a deslegitimação da alteridade do indivíduo e, simultaneamente, base para a construção de um ideal de superioridade frente à diversidade do Sul Global, especificamente aos latino-americanos e aos sul-asiáticos. O autor palestino, Edward Said (2007), aborda como o Orientalismo, decorrente do colonialismo europeu, classifica o Oriente com inferioridade. Segundo o autor, o Orientalismo foi, por um longo período, uma corrente teórica vigente de estudos do Ocidente acerca do Oriente, a qual mantinha-se não apenas a partir de uma distinção geográfica entre Ocidente e Oriente, mas também, e principalmente, a partir de uma hierarquização entre Leste e Oeste, a fim de dominar o Oriente.

E de que forma os debates em torno da subalternidade nos ajudam a compreender as dinâmicas contemporâneas como, por exemplo, da política internacional ou da segurança internacional? As práticas e os estudos das relações internacionais estão amplamente baseados em concepções binárias. Em outras palavras, mais do que baseados na oposição de determinados grupos entre si, essas práticas e estudos baseiam-se na categorização de um grupo enquanto superior ao outro.

É o que ocorre quando pensamos na diferenciação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, uma vez que não se trata apenas de uma separação horizontal entre esses países, mas de uma percepção embutida de que um grupo de países é melhor, em absoluto, do que o outro. O mesmo ocorre quando traçamos paralelos entre Norte e Sul; Ocidente e Oriente; Homem e Mulher. Em síntese, as análises desses grupos não são realizadas de modo autônomo, mas sim dentro de um processo relacional e artificialmente hierarquizado, em que um se apresenta como mais avançado ou mais completo do que o outro e, portanto, deveria atuar como modelo a ser seguido ou mesmo como tutor a ser respeitado.

Essas concepções de hierarquia entre grupos não podem ser profundamente compreendidas sem levarmos dois fatores em consideração. O primeiro, é que essas hierarquias não são naturais; elas são fruto de narrativas construídas e reproduzidas a partir de determinados locais e contextos de fala. O segundo fator é que esse processo de “construção do outro” (Hall, 2003), no qual o enunciador se coloca em um patamar superior ao seu objeto referido, envolve determinadas relações de poder – que autores como Michel Foucault (1979) vão intitular de “poder de nomeação”. Nesse sentido, a questão da subalternidade é incorporada às Relações Internacionais a partir de uma preocupação com a forma como as percepções entre os povos são co-constituídas pelas dinâmicas no sistema internacional e pelo silenciamento que alguns grupos sofrem ao não possuírem autonomia suficiente para se autorreferenciar.

Embora a incorporação da noção de subalternidade nos estudos de Relações Internacionais possa ser remontada de modo específico à década de 1980, com os Estudos Subalternos do Sul Asiático anteriormente apresentados, ela vem sendo sistematizada de modo mais abrangente pelas perspectivas pós-coloniais e decoloniais (Mignolo, 2017; Quijano, 2007; Toledo, 2021; Ballestrin, 2013). Em suma, essas abordagens destacam que o processo de colonização não representou apenas uma experiência temporalmente demarcada e finalizada; trata-se, na verdade, de uma relação de poder que ainda se mantém presente nas dinâmicas da política internacional e que é reproduzida a partir de pressupostos baseados no eurocentrismo, no falocentrismo e na branquitude. É nesse ponto que a noção de subalternidade contribui com a área, pois oferece ferramentas para compreender essa hierarquização artificial da diferença, onde determinada representação de um grupo é instrumentalizada para o controle sobre esse grupo e para a manutenção de uma visão de mundo hegemônica auto interessada.

No que se refere ao campo específico da Segurança Internacional, é possível notar que o conceito contribui com o movimento de ampliação do objeto de estudo, extrapolando o enfoque antes mais restrito aos Estados enquanto organismos homogêneos. Ao se preocupar com a violência inerente à imposição dessas narrativas parciais, a noção de subalternidade traz consigo uma maior preocupação em analisar os grupos de indivíduos e os corpos marginalizados. Além disso, é comum que a subalternização desses grupos envolva sua alocação em uma das seguintes categorias: a tutelagem, quando o grupo é percebido como inferior, porém passivo; e a aniquilação, quando o grupo considerado inferior é percebido como perigoso e, portanto, incapaz de ser corrigido a não ser por meio da violência letal. Com isso, a noção de subalternidade nos oferece instrumentos muito valiosos para compreender, por exemplo, os processos de intervenções militares e/ou humanitárias.

Assim, podemos resgatar as palavras de Spivak ao afirmar que o novo subalterno do mundo contemporâneo é o migrante ou a migrante internacional, afinal são estes os atores impactados e submetidos pelas decisões de Estados e Organizações Internacionais sobre seus status. De acordo com a autora, os migrantes internacionais acabam hierarquicamente subjugados pela posição binária da condição de “ser humana politicamente significada e ser humana politicamente in-significada” (Yamato, 2021, p. 170). Em outras palavras, se a própria existência do ser humano já é pré-definida pela condição social atribuída a si, esse condicionamento ganha camadas a partir da hierarquização do ser como “cidadão, nacional, estrangeiro, exilado, asilado político, refugiado, solicitante de refúgio, deslocado interno, migrante regular e migrante irregular” (Yamato, 2021, p. 166). Tal categorização é essencial para pensar nos “foras constitutivos” do sistema internacional, resultado de práticas soberanas que permitem e traçam esses limites (Walker, 2010), de modo a definir aqueles que podem ou não exercer a liberdade (Butler; Spivak, 2010) de se autorreferenciar e autorrepresentar.

Referências

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/agosto 2013.

BUTLER, J.; SPIVAK, G. C. Who Sings the Nation-State? Language, politics, belonging. London, New York and Calcutta: Seagull Books, 2010.

CHEDID, Y. A.; HEMAIS, M. W. (2022). Subalternização de mulheres brasileiras em contextos de turismo: uma análise pós-colonial com base em Spivak. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 16, e-2357. http://doi.org/10.7784/rbtur.v16.2357

FIGUEIREDO, Carlos Vinícius da Silva. Estudos Subalternos: uma introdução. Raído, Dourados, v. 4, n. 7, p. 83-92, jun. 2010.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MANCILLA, Henry Alexander. Decolonialidad Y Subalternidad En El Cine Latinoamericano: Desde La Tierra Prometida, También La Lluvia Y El Abrazo De La Serpiente. Orientadora: Ángela Milena Niño Castro. 2016. 108 f. Tese de Mestrado (Magister en Filosofía Latinoamericana) – Universidad Santo Tomás Facultad De Filosofía Y Letras, Bogotá, 2016. Disponível em: https://repository.usta.edu.co/bitstream/handle/11634/3371/ram%EDrezhenry2016.pdf;jsessionid=DEC2A73C5DFA74BAA28DAC68F83B1000?sequence=1. Acesso em: 15 fev. 2023.

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, [S.L.], v. 32, n. 94, p. 01, 2017. FapUNIFESP (SciELO).

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142.

SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Companhia das Letras, 2007.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

TOLEDO, Aureo (org.). Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador: EDUFBA, 2021.

WALKER, R. B. J. After the Globe, Before the World. London: Routledge, 2010.

YAMATO, Roberto Sanchez. Pode a migrante falar? Um exercício de rearranjar desejos, escavar o eu, e tornar delirante o outro em nós. In. TOLEDO, A. (Org.) Perspectivas pós-coloniais e decoloniais em Relações Internacionais. Salvador: EDUFBA, 2021.

SUGESTÕES DE MATERIAIS DE APOIO

MÚSICAS E CLIPES

BELCHIOR. 1992 (Quinhentos anos de que?). Movieplay, 1993 (3m20s). Álbum: Baihuno.

BUARQUE, Chico. As Caravanas. Biscoito Fino, 2017 (2m47s). Álbum: Caravanas.

BUARQUE, Chico. O velho Francisco. Rio de Janeiro: RCA, 1987 (2m56s). Álbum: Francisco.

CALLE 13. Latinoamerica. Sony Music, 2010 (4m58s). Álbum: Entren los que quieran.

EMICIDA. Boa esperança. Laboratório Fantasma/Sony Music, 2015 (3m02s). Álbum: Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa.

MARLEY, Bob. Redemption Song. Island Records/ Tuff Gong, 1980 (3m47s) Álbum: Uprising.

PALESTRAS:

ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única história. TED Talk, 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br>.

EXPOSIÇÕES:

Exposição MASP sobre Brasis

LIVROS:

Adichie, C. N. Americanah. São Paulo: Companhia das Letras, 2014

Rufino, L. Pedagogia das encruzilhadas. Petrópolis: Vozes, 2012.

FILMES:

AMARELO – É tudo pra ontem. Produção de Evandro Fióti. Direção de Fred Ouro Preto. Brasil, 2020 (89 min).

COISAS BELAS E SUJAS. Produção de Tracey Seaward. Direção de Stephen Frears. Reino Unido, 2003 (97 min).

FALSA LOURA. Produção de Sara Silveira. Direção de Carlos Reichenbach. Brasil, 2007 (103 min).

FANTASMA NEON. Produção de Leonardo Martinelli, Ayssa Yamaguti Norek e Rafael Teixeira. Direção de Leonardo Martinelli. Brasil, 2021 (20 min).

FOR SAMA. Produção de Waad Al-Kateab. Direção de Waad Al-Kateab e Edward Watts. Estados Unidos, Reino Unido e Síria, 2019 (100min).

HOLY SPIDER. Produção de Sol Bondy, Jacob Jarek e Ali Abbasi. Direção de Ali Abbasi. Alemanha, França, Dinamarca e Suécia, 2022 (117 min).

MINARI. Produção de Dede Gardner, Jeremy Kleiner e Christina Oh. Direção de Lee Isaac Chung. Estados Unidos, 2020 (115 min).

NOMADLAND. Produção de Frances McDormand. Direção de Chloé Zhao. Estados Unidos, 2020 (108 min).

WADJDA. Produção de Gerhard Meixner e Roman Paul. Direção de Haifaa al-Mansour. Arábia Saudita, 2012 (98 min).

SÉRIES:

ESTADO Zero. Direção: Andrij Parekh. Canadá, 2019 (Original Netflix).

REALIDADE Não Documentada. Direção: Aaron Saidman, Anna Chai. Estados Unidos, 2021 (Original Netflix).

EXTERMINE todos os brutos. Direção: Raoul Peck. Estados Unidos, 2021 (HBO Max).

 

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