Dicionário de Gênero e Segurança

FEMINISMO DECOLONIAL

Brenda de Paula Mendes Dominguez
Gabriela Aparecida de Oliveira
Isabella Anselmo Raymundo
Laís Gomes Sartori
Luiza Caroline Silva Batista
Maria Eduarda Kobayashi Rossi

25 de novembro de 2021

O Feminismo Decolonial[i], enunciado como tal, surge na primeira década do século XXI[ii] como um desdobramento dos estudos do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), dos feminismos latino-americanos e feminismos pós-coloniais (BALLESTRIN, 2020). Essa abordagem propõe a análise e a denúncia das opressões sentidas principalmente por mulheres racializadas da América Latina a partir de uma crítica aos efeitos da colonialidade  e do capitalismo (responsáveis por difundir globalmente formas interconectadas de exploração) sobre suas vidas (SEGATO, 2014; VERGÈS, 2020). Vale destacar que as “mulheres racializadas” são compreendidas nesse verbete como “mulheres não-brancas”, pretas e indígenas, cujas vivências são ignoradas pelo feminismo hegemônico.

A socióloga argentina María Lugones (2008) foi responsável por forjar o termo “Feminismo Decolonial”, iniciando a construção dessa corrente teórica. Ao criticar as limitações do conceito de colonialidade, de Aníbal Quijano (2005), no que se refere às discussões de gênero, a autora desenvolve a noção de colonialidade de gênero. Assim, rompe com a perspectiva biológica e essencialista de gênero de Quijano (2005), a interpretando como uma imposição colonial responsável por criar hierarquias e antagonismos sociais. A introdução do gênero como forma de organização social nas colônias durante a colonização fez com que homens colonizados, mancomunados com colonizadores, praticassem uma série de violências contra as mulheres colonizadas (SEGATO, 2012; LUGONES, 2008). Essas violências foram, consequentemente, internalizadas e passaram a estruturar as relações sociais.

Enquanto Lugones (2008) compreende que a divisão e hierarquização social por gênero não eram uma realidade nas sociedades indígenas pré-coloniais, Julieta Paredes (2008) e Rita Segato (2012) falam da existência de um “patriarcado de baixa intensidade”. Nele, as relações entre homens e mulheres eram menos assimétricas e violentas se comparadas às do “patriarcado de alta intensidade”, dos europeus. Nesse sentido, Paredes (2008) refere-se à associação entre homens colonizadores e colonizados como um “entroncamento de patriarcados”.

Sobre a relação das feministas decoloniais com o Estado, podemos dizer que ela é de extrema desconfiança. Como, em sua genealogia, o Estado é colonial, capitalista, racista, machista e LGBTQIA+fóbico, elas o reconhecem, sobretudo, pelas violências que perpetra contra corpos feminizados, racializados e transgressores da heterocisnormatividade. Essas violências são diretas (violência policial e militarizada) ou estruturais (falta de oportunidades, políticas públicas e serviços básicos, que as torna mais vulneráveis à violência de gênero em suas casas e nas ruas).

Existe um esforço teórico de identificar os problemas de segurança que as mulheres latino-americanas e caribenhas racializadas enfrentam e, embora sejam diversos, eles coincidem por conta das estruturas de opressão que os produzem. A América Latina e Caribe figuram como o lugar mais letal para as mulheres fora de uma zona de guerra (UN WOMEN, 2018), o que Rita Segato (2016) caracteriza como um “femigenocídio” em curso. O índice de feminicídios e de violências no geral podem ser explicadas pela pobreza e falta de oportunidades que levam as mulheres a se envolverem em atividades econômicas informais, ilegais e mal remuneradas, como é o caso da tráfico de drogas e a prostituição. O cenário bélico informal e difuso que Segato (2014) caracteriza como as “novas guerras”, em que atores estatais, paraestatais e criminosos (como é o caso de narcotraficantes) criam um ambiente de insegurança, também contribui para o aumento exacerbado de violações das mulheres.

Os corpos feminizados e racializados são os principais alvos e sua violação sistemática é tida como uma “estratégia deliberada” de guerra (KALDOR, 2013; SEGATO, 2014). Segundo a noção de “corpo-território”, os corpos das mulheres não constituem apenas um lugar físico demarcado, mas um espaço de disputa de poder que carrega uma grande carga simbólica e cultural. A sua violação (naturalizada desde a colonização) serve, portanto, para sinalizar o pertencimento de um grupo sobre determinado território (ESCOBAR, 2018; ALMEIDA, 2020; GOHN, 1997; ZARAGOCIN, 2019).

Apesar de coagidas por estruturas de poder que as violentam e as matam, essas mulheres conseguem agir infrapoliticamente (ou seja, a partir de práticas de resistência cotidianas), ressignificando suas existências e “sendo diferentes daquilo que o hegemônico as torna” (LUGONES, 2014, p. 940). Em resposta à política de morte conduzida pelo Estado moderno, colonial e capitalista, traduzido por Sayak Valencia (2010) no conceito de “capitalismo gore”, o Feminismo Decolonial – e os feminismos indígenas e comunitários de Abya Yala – propõe o “buen vivir”, um apelo à centralidade da vida humana e não-humana na política, que considera outras fontes de ameaça para além da militar, como a pobreza, a baixa escolaridade e a opressão política. O “buen vivir” surge de uma proposta de construir conhecimentos e práticas fora da modernidade, sendo esse o ponto de intersecção com o Feminismo Decolonial (ZARAGOCIN, 2017). Ele confronta o modelo econômico desenvolvimentista como fonte de emancipação humana e defende alternativas radicalmente opostas a medidas de austeridade, tendo como foco a completa satisfação das necessidades humanas (CHUJI et. al., 2019).

Dotado de grande riqueza teórica e prática, o Feminismo Decolonial parte, desta forma, de diversas experiências e localidades. Embora algumas mulheres não se identifiquem como feministas decoloniais ou que o conceito em si não seja contemporâneo à elas, é possível identificar em seus escritos e práticas aproximações com a teoria feminista decolonial, principalmente no que se refere às tentativas de resistência e desprendimento do colonialismo e da colonialidade. Como exemplo, podemos citar as lutas de mulheres quechua que sofreram estirilização forçada na década de 1990 por parte do Estado peruano; das índígenas bolivianas contra a privatização dos recursos hídricos durante a “guerra da água” no ano 2000; das zapatistas que desde 1994 se opõem à exclusão e às violências do Estado mexicano; das cocaleras do sul da Colômbia que pedem o fim da “guerra às drogas”, a qual ameaça as suas existências; e das mulheres do Movimento Atingidos por Barragens, cujas famílias foram e são afetadas negativamente por empreendimentos hidrelétricos, mineradores e hidroviários no Brasil.

De um ponto de vista mais teórico-acadêmico, temos o “feminismo afrolatino-caribenho” da  dominicana Ochy Curiel (2005, 2019) e o “feminismo de fronteira” da chicana Gloria Anzaldúa (1987) desenvolvidos desde uma perspectiva interseccional que alia gênero, raça, sexualidade e colonialismo; o conceito de “amefricanidade” da brasileira Lélia Gonzalez (2020) e a proposta de “enegrecer” o feminismo latino-americano de Sueli Carneiro (2003), que contribuem para pensar as interações entre gênero e raça no Brasil e América Latina; as teorizações das bolivianas Julieta Paredes (2008) e Silvia Rivera Cusicanqui (2018) que refletem sobre a despatriarcalização das comunidades indígenas aymaras e propõem metodologias feministas descolonizadoras. Apesar de separarmos, com propósitos didáticos, ações e teorias feministas decoloniais, é importante ressaltar que elas andam juntas, se construindo dialeticamente.

Referências

ALMEIDA, Paul. Movimientos sociales: la estructura de la acción colectiva. CLACSO. 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires. 2020.

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: The new mestiza. 1987.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o Giro Decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11, Brasília, 2013, p. 89-117.

_________. Feminismo de (s) colonial como feminismo subalterno Latino-Americano. Revista Estudos Feministas, v. 28, 2020.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 49-58, 2003.

CHUJI, Mónica et. al. Buen Vivir. In: KOTHARI, Ashish et al. (Ed.). Pluriverse: A post-development dictionary. Tulika Books and Authorsupfront, 2019.

CRUZ HERNÁNDEZ, D. T. 2017. Una mirada muy otra a los territorios-cuerpos femeninos. Solar, vol. 12, n. 1, p. 35-46.

CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas desde o feminismo decolonial. In: BALDUINO, Paula de Melo et. al. (org.). Descolonizar o feminismo. Brasília : Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, 2019. Disponível em: <http://revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/editoraifb /issue/view/115/47> Acesso em: 13 ago. 2021.

CURIEL, Ochy et al. Feminismos disidentes en América Latina y el Caribe. Ediciones fem-e-libros, vol 24, n° 2. 2005.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: A Reflection on the Practices and Discourses of Decolonization. South Atlantic Quarterly, v. 111, n. 1, p. 95-109, 2012.

_________. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.

ESCOBAR, A. 2018. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: UNAULA

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KALDOR, Mary. New and old wars: Organised violence in a global era. John Wiley & Sons, 2013.

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MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Tradução de Marco Oliveira. 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v32n94/0102-6909-rbcsoc-3294022017.pdf>. Acesso em: 08 ago. 2020.

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_________. La opción de-colonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto y un caso. Tabula Rasa. Bogotá – Colombia, No.8: 243-281,  2008.

PAREDES, Julieta. Hilando Fino (Desde el feminismo comunitario). La Paz: CEDEC, 2008.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2005.

_________. Colonialidade do poder e classificação social. Epistemologias do Sul/ org. Boaventura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses. Edições Almeida. Coimbra. 2005.

 

SANTOS, Vívian Matias dos. Notas desobedientes: decolonialidade e a contribuição para a crítica feminista à ciência. Psicologia & Sociedade, v. 30, 2018. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30200112> Acesso em: 14 ago. 2021.

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ZARAGOCIN, Sofía. Feminismo decolonial y buen vivir. In: VAREA, Soldad; ZARAGOCIN, Sofia (Ed.). Feminismo y buen vivir: utopías decoloniales. Pydlos Ediciones, 2017. Pp. 17-25.

[i] Além do termo “descolonial”, temos o “decolonial”. Enquanto o primeiro existe em contraposição ao colonialismo ou ao processo de dominação de uma sociedade em relação à outra (QUIJANO, 2005), o segundo opõe-se à colonialidade, que se refere à continuidade dos efeitos e estruturas de poder da colonização nas ex-colônias (SANTOS, 2021). Ou seja, o termo descolonial diz respeito apenas a uma ruptura formal com a metrópole; ao passo que o decolonial diz da ruptura com a colônia e com os resquícios da colonização.

[ii] Embora a teoria decolonial, enquanto corrente teórica, tenha ganhado força na América Latina apenas no século XXI (BALLESTRIN, 2013),  as ações e perspectivas decoloniais — como forma de resistência e tentativa de desprendimento do colonialismo e colonialidade — podem ser observadas desde o século XVI, como ressalta Walter Mignolo (2007, 2008, 2017). O objetivo das ações, perspectivas e teorias decoloniais é desvincular-se das lógicas opressivas da colonialidade. Para atingi-lo, destaca-se a necessidade de engajar novas vozes (principalmente das pessoas e grupos mais oprimidos e subalternos da sociedade), bem como resgatar e/ou criar metodologias para além do que foi (e ainda é) imposto pela cultura dominante.

25 de novembro de 2021

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