faixa de gaza

Não há segurança, tampouco humanitarismo, na Faixa de Gaza

Isabela Agostinelli*

 

Em 30 de janeiro de 2024, diversos veículos de comunicação, nacionais e internacionais, divulgaram a notícia de que, em Gaza, crianças estavam comendo grama, ração de animais e bebendo água poluída para tentar sobreviver. Em meio aos constantes bombardeios israelenses à Faixa de Gaza desde o fatídico 7 de outubro de 2023, a situação humanitária da região, que antes já era extremamente precária, atingiu níveis sem precedentes.

Este ensaio propõe uma avaliação e reflexão crítica da situação humanitária de Gaza, com vistas a elucidar de que forma os argumentos ditos humanitaristas de Israel, antes mesmo do 07/10, são, em essência, medidas de controle populacional que visam à eliminação gradual da população nativa, ao impedir o desenvolvimento da vida em Gaza.

O argumento central é de que, embora tenha atingido níveis sem precedentes na história da Questão Palestina, a atual situação humanitária em Gaza não é uma crise ou algo conjuntural, mas uma política deliberada e sistemática de privação da vida e produção da morte de uma determinada população, com base em argumentos de segurança nacional e contraterrorismo.

A situação humanitária em Gaza

Os dados mais recentes – de 15 de fevereiro de 2024 – apontam que, desde o 7/10, mais de 28,5 mil palestinos de Gaza foram mortos pelas ações israelenses, incluindo 12 mil crianças; mais de 67 mil feridos; 7 mil desaparecidos; 85% dos 2,3 milhões de habitantes foram forçadamente deslocados; cerca de 360 casos de doenças infecciosas foram identificados; 122 jornalistas e 101 trabalhadores humanitários das Nações Unidas foram mortos; entre tantos outros dados alarmantes.

Em termos de infraestrutura e recursos, aspectos-chave da dominação israelense em Gaza após o “desengajamento” de 2005[1], os números não são menos surpreendentes: mais de 360 mil unidades residenciais (60% do total), 392 unidades educacionais e 297 instalações religiosas foram destruídas ou danificadas; apenas 11 dos 35 hospitais estão funcionando parcialmente; 123 ambulâncias foram atacadas; houve casos recorrentes de cortes nas redes de telecomunicação (telefone e internet); há cortes no fornecimento de energia elétrica e o impedimento na entrada de combustível; o acesso à água é de menos de 1,5 litro por dia, por pessoa, enquanto o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a sobrevivência é de 3 litros por dia.

Restam poucas dúvidas de que se trata de um cenário de terra arrasada. Para além das mortes diretamente causadas pelos bombardeios, a destruição da infraestrutura e a restrição da entrada de alimentos, água e medicamentos reduzem drasticamente a possibilidade de sobrevivência em Gaza.

De-desenvolvimento e dependência: a assistência humanitária em Gaza

A sobrevivência em Gaza é, há décadas, limitada. Muito antes do 7/10, a vida em Gaza mais se assemelhava a uma morte lenta. A ajuda humanitária, por sua vez, também já enfrentava diversos limites. Aliás, desde a criação do Estado de Israel em 1948, a população palestina de Gaza se tornou altamente dependente da ajuda humanitária internacional.

Na ocasião da Nakba (1948), dos 700 mil palestinos expulsos de suas terras, 200 mil se refugiaram na região de Gaza, que na época contava com cerca de 80 mil habitantes. Desde então, o território que conhecemos como Faixa de Gaza – delimitado pelas fronteiras do Acordo de Armistício de 1949 – é majoritariamente composto por refugiados palestinos (Filiu, 2014).

De 1948 até 1967, quando se deu início à ocupação militar israelense dos territórios palestinos, Gaza ficou sob administração egípcia, em uma espécie de regime de tutela. Esse momento ficou marcado por um “duplo governo”: de um lado, as autoridades egípcias, que controlavam as fronteiras e organizavam a segurança pública por meio do policiamento; de outro, as organizações internacionais de assistência humanitária, que ofereciam serviços públicos como educação e saúde para os refugiados. Isto porque, quando passou a ser composta em dois terços por refugiados, Gaza começou a necessitar de ajuda em diversos setores da sociedade. As agências internacionais de ajuda humanitária, nesse cenário, se tornaram as principais fontes de assistência para a população de Gaza (Feldman, 2007; 2008).

A mais importante dessas organizações é a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), criada em 1950 para oferecer serviços aos refugiados palestinos nos diversos campos instaurados, inclusive aqueles sediados na Faixa de Gaza, até que uma solução política para o problema do refúgio e o direito de retorno fosse alcançada. Como essa solução nunca se materializou na realidade, a UNRWA continua em atividade. Os serviços prestados incluem, por exemplo, fornecimento de alimentos básicos (como farinha e cereais), serviços educacionais e instalações de saúde.

Importante notar que, antes mesmo do 07/10, 80% dos habitantes de Gaza dependiam da assistência humanitária internacional e dois terços viviam em situação de pobreza. Pode-se dizer que essa dependência crônica dos habitantes de Gaza em relação à ajuda humanitária internacional não é um efeito colateral da ocupação israelense, mas uma política que dá sustento a ela.

Desde 1967, Israel passou a implementar nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) o chamado de-desenvolvimento, conceito elaborado pela economista Sara Roy (1987, p. 33, tradução nossa) e que significa “o desmembramento deliberado, sistemático e progressivo de uma economia nativa por uma [economia] dominante, onde o potencial econômico – e por extensão, social – não é apenas distorcido, mas negado”. Em outras palavras, trata-se de uma política que mina qualquer possibilidade de desenvolvimento social e econômico de uma sociedade, colocando-a em um elo de dependência crônica em relação à economia do poder ocupante.

No caso de Gaza, o de-desenvolvimento e a dependência da ajuda humanitária internacional atingiram proporções catastróficas a partir de 2007, quando se deu início ao bloqueio israelense da Faixa de Gaza.

Segurança x Humanitarismo

É comum encontrar análises sobre a situação humanitária da Faixa de Gaza que adotam o ano de 2007 como o ponto de partida da catastrofização da vida na região. De fato, o bloqueio instaurado há mais de 16 anos por Israel e Egito transformou Gaza em uma prisão a céu aberto. Desde então, o nexo segurança-humanitarismo vem sendo mobilizado de forma recorrente pelas autoridades israelenses para justificar uma série de medidas de controle populacional que transformam o cotidiano em uma espécie de morte lenta aos palestinos de Gaza (Winter, 2016).

Uma dimensão importante do funcionamento do bloqueio israelense é a justificativa de que ele estaria sendo feito para combater o terrorismo do Hamas. Porém, ao classificar a Faixa de Gaza como uma entidade hostil, Israel acabou equalizando a população ao Hamas e, dessa forma, conduzindo uma punição coletiva. Com isso, a grande maioria que sofre com essas atrocidades é a população civil, e não os “terroristas” que o Estado de Israel promete eliminar a todo custo.

Após o 07/10, as diversas medidas impostas pelas forças israelenses – forte restrição na mobilidade e cortes na eletricidade e comunicação -, somadas aos bombardeios, fizeram com que o Israel fosse acusado de praticar crimes de guerra e até mesmo genocídio, conforme argumentado pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça (CIJ), em janeiro de 2024. Já organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch e a israelense B’Tselem, apontaram que a fome em Gaza está sendo usada como arma de guerra pelos israelenses. Em novembro de 2023, cerca de 93% da população da Faixa de Gaza estava sofrendo de insegurança alimentar aguda.

No dia 14 de dezembro de 2023, as autoridades israelenses afirmaram estar realizando “esforços significativos para aliviar a situação humanitária em Gaza”, entre eles: fortalecer os serviços médicos; facilitar o estabelecimento de hospitais de campo em Gaza; facilitar a entrada de água e o concerto de instalações destruídas durante as hostilidades; empregar pausas humanitárias regulares; designar uma zona humanitária ao sul de Gaza; entre outras.

Apesar das promessas de alívio anunciadas pelas autoridades israelenses, críticas contundentes foram levantadas por jornalistas, analistas internacionais e trabalhadores de organizações humanitárias em relação às ações efetivas e à continuidade dos problemas humanitários em Gaza.

Isto porque estas mesmas autoridades são as responsáveis pela destruição de dezenas de hospitais e por restringir a entrada de alimento e medicamento para os feridos da guerra. Além disso, em 19 de fevereiro de 2024, soldados israelenses atiraram em palestinos que estavam se aproximando dos caminhões que levavam comida para a região, cuja população, como já mencionado, está sofrendo diariamente com a falta de alimentos e água.

Logo, é imprescindível questionar que tipo de humanitarismo é anunciado por Israel e respaldado pela comunidade internacional. Esta mesma “comunidade internacional” (liderada por EUA e União Europeia), que se diz preocupada com os direitos humanos, cortou as doações à UNRWA após acusações sem evidências comprovadas, por parte de Israel, de que a organização teria funcionários ligados ao Hamas. Ironicamente, quando Israel foi levado à CIJ por acusação de genocídio, nenhum ator desta comunidade internacional suspendeu suas relações comerciais com o país.

Enquanto isso, a Faixa de Gaza vai se tornando paulatinamente uma terra arrasada. Como argumenta Lisa Hajjar, Gaza passou de uma prisão a céu aberto para uma cena de crime. O nível de destruição é tamanho que a Faixa de Gaza se tornará inabitável por diversas gerações futuras. Israel tem inundado os túneis com esgoto, destruído as áreas de agricultura e utilizado fósforo branco. Além de atingir a população local, essas medidas afetam o solo, a vida vegetal e os animais da região, no que seria uma destruição do próprio ecossistema de Gaza.

Até o momento, ao contrário do que foi prometido, Israel não atingiu nenhum de seus objetivos de segurança: destruir o Hamas e resgatar todos os reféns israelenses sequestrados pelo grupo no 7/10. Portanto, qualquer justificativa humanista anunciada pelo Estado de Israel e seus aliados deve ser analisada com cautela. Afinal, não há segurança, tampouco humanitarismo na Faixa de Gaza.

 

[1] Em agosto de 2005, o Estado de Israel retirou todos os assentamentos israelenses da Faixa de Gaza, argumentando que não mais ocupava aquela região e que Gaza seria “autônoma”. Ao mesmo tempo, Israel continuou controlando as fronteiras terrestres, o espaço aéreo e o espaço marítimo. Portanto, pode-se dizer que Israel não se desengajou realmente de Gaza, mas sim reorientou as suas formas de controle, agora feito à distância. Descrevo e analiso em detalhes essas formas de controle em minha tese de doutorado “Morte e vida palestina: a reorientação tática do colonialismo israelense na Faixa de Gaza” (2023), disponível em: https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/1f80edc2-7cdf-437c-8b89-60361d5577f0/content.

 

*Isabela Agostinelli é pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Doutora em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação “San Tiago Dantas” (Unesp, Unicamp, PUC-SP). Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Especialista em estudos sobre Palestina/Israel, com foco na Faixa de Gaza. Seus interesses de pesquisa incluem estudos sobre colonialismo e pós-colonialismo, violência e conflitos na sociedade internacional contemporânea, segurança internacional e estudos sobre Oriente Médio.

Imagem: February 3, 2024, UNRWA-run Sheikh Radwan Clinic, destroyed during Israeli bombardment on Gaza City. Por: The New Arab/Getty.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FELDMAN, Ilana. Governing Gaza: Bureaucracy, authority, and the work of rule, 1917– 1967. Duke University Press, 2007.

FELDMAN, Ilana. Mercy Trains And Ration Rolls: Between Government And Humanitarianism In Gaza (1948–67). In: NAGUIB, Nefissa; OKKENHAUG, Inger Marie (Ed.s). Interpreting welfare and relief in the Middle East. Brill, 2008ª.

FILIU, Jean-Pierre. Gaza: A History. Oxford University Press, 2014.

ROY, Sara. The Gaza Strip: A case of economic de-development. Journal of Palestine Studies, v. 17, n. 1, p. 56-88, 1987.

SANTOS, Isabela Agostinelli dos. Morte e vida palestina: a reorientação tática do colonialismo israelense na Faixa de Gaza. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, 2023.

WINTER, Yves. The siege of Gaza: Spatial violence, humanitarian strategies, and the biopolitics of punishment. Constellations, v. 23, n. 2, p. 308-319, 2016.

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